Não tem vírgula para controvérsia de reeleição de presidentes da Câmara e do Senado. Não pode. Carlos Andreazza para o jornal O Globo:
Está
marcado para a próxima sexta, dia 4 de dezembro, o início do julgamento
— no plenário virtual do Supremo — de uma ação por meio da qual o PTB
questiona a constitucionalidade da reeleição (qualquer uma, mesmo aquela
prevista na Constituição) de presidentes da Câmara e do Senado.
Não
é banal que a coisa se dê no plenário virtual, em que os ministros
somente depositam os votos. Sem enfrentamento de mérito. Sem debate. É o
paraíso — a arena dos sonhos — para que se consolide o golpe, golpe
contra a Constituição Federal, urdido, sem muita cerimônia, por Davi
Alcolumbre.
Golpe
que o sujeito costura desde meados de 2019, agora finalmente à custa de
um Parlamento paralisado; que — sequestrado por disputas de poder
antecipadas para muito além de qualquer padrão de irresponsabilidade da
política brasileira — nem sequer consegue cuidar do Orçamento de 2021.
Para
que fique claro: o Brasil não está parado, com uma pandemia a
corroê-lo, em decorrência das eleições municipais. Isso é desculpa. E é
mentira. O país está travado porque tem um governo incompetente, incapaz
de propor agendas e formular políticas públicas; e porque o Congresso,
até anteontem a engrenagem que fazia algo andar, foi contaminado pela
endemia sucessória, agravada pelo vírus da incerteza. Terá ou não
sucesso o golpe de Alcolumbre, de resto a mexer num xadrez de
expectativas de poder ainda a ecoar longamente no Parlamento?
Obra
do golpe de Alcolumbre. Golpe pelo direito de se reeleger à presidência
do Senado numa mesma legislatura; contra o quê, sem margem para
interpretação rebolativa, é expressa a Carta que se tenta violar. Está
lá, no parágrafo 4º do artigo 57. Não pode. Não tem vírgula para
controvérsia. Golpe.
Daí
por que seja tão importante — para o êxito golpista — escapar da
discussão de mérito. Porque isso equivaleria a escapar do que versa a
Constituição. Porque bastaria que um ministro a abrisse, passando-lhe os
olhos, para que tivéssemos um destaque e o caso, deixando a imobilidade
muda do plenário virtual, fosse para a deliberação do colegiado. Ou
seja: para que a tara de Alcolumbre fosse contida.
Mas
não. O STF integra o jogo político; e isso significa atalhar a Lei
Maior. Nesse caso, para fugir da apreciação do mérito. Não poderia ser
diferente num tribunal cheio de agentes políticos. Que fazem cálculos
típicos de um operador político. Logo, se os togados avaliam que o
arranjo com Alcolumbre e Maia (que surfaria a onda para ser também
beneficiado) serve bem ao equilíbrio da República, ambos se concertando —
segundo consideram os supremos — para frear os ímpetos autocráticos de
Jair Bolsonaro, por que não encontrar uma solução casuística, por que
não erguer um puxadinho oportunista e fulanizado, que lhes permita
continuar à frente das casas legislativas?
Contra
o temor de um hipotético grande golpe bolsonarista, um golpe de
verdade, um golpinho virtuoso, impingido via Senado e chancelado pela
corte constitucional. Que tal? E como não projetar que o STF,
deixando-se penetrar pelo que supõe jeitinho pontual e por boa causa,
estará forjando as condições para o arrombamento de reeleições infinitas
no Parlamento?
A
estratégia golpista é engenhosa; e terá como fundamento — tudo assim
indica — o Supremo liberando ao Congresso, como se matéria interna
corporis, o condão de decidir sobre as eleições de suas mesas diretoras.
O
STF lava as mãos, pautado pelos interesses da política. Adotará —
ministros já vazaram a tática — a postura cínica, covarde, de alegar que
a ação do PTB consistiria numa espécie de consulta prévia; a respeito,
pois, de algo ainda não ocorrido, um caso hipotético, sendo impossível,
por falta de concretude, tratar do mérito. Balela! Mas também puro
adiamento; sendo questão de tempo até que se tenha de deparar com uma
chuva de reclamações, quando o golpe já estiver aplicado, e o tribunal
for obrigado a se lembrar da Constituição.
O
STF lavará as mãos. Se entender — já entendeu, todos entendidos — que o
assunto é de alçada do Parlamento, dirá que o desejo de Alcolumbre
poderá prosperar driblando a única maneira republicana de postular o
direito à reeleição numa mesma legislatura: uma emenda constitucional —
para a qual seriam necessários três quintos do Congresso. Se decidir,
portanto, que Alcolumbre pode chegar lá sem uma PEC, por meio de um
golpe mesmo, dirá que lhe bastaria providenciar uma revisão do regimento
interno do Senado; para o que precisaria de maioria simples entre os
pares.
Ah,
os pares... Alcolumbre os trata como bocós. Os senadores, contudo, não
protestam. Talvez até gostem do balé desse golpe sui generis; dado que
endossam a agenda personalista de um presidente do Senado que, para
conseguir a prerrogativa de se reeleger, sumiu do Congresso, tirando o
pé de qualquer bola dividida e abandonando a Casa ao apagão. Um
presidente do Senado que, para não desagradar ao Supremo de que tanto
depende, escondeu-se de ser presidente do Senado. Um presidente do
Senado que abandonou a presidência que formalmente exerce para lutar, ao
custo do Parlamento de hoje, por uma presidência futura.
Já ganhou.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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