De minha parte, maldigo baixinho, e de brincadeirinha, meu editor que acordou hoje e, assim como não quer nada, sugeriu que eu me expusesse a Bacurau. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff Jr. (eu não veria esse filmeco, puro cine trash, nem sob vara):
Logo
mais à noite, depois da novela, todo mundo deve se sentar em frente à
televisão, fazer uma pipoquinha e se servir-se de um refrigerante bem
gelado para assistir a Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. Não para fazer
um “exame de consciência de classe” acompanhando as aventuras de uma
turminha do barulho que vai aprontar todas na caatinga. E sim para
entender quão monolítica, superficial, frágil e maniqueísta é essa visão
de mundo que opõe opressores e oprimidos – e da qual Mendonça Filho é
um expoente.
Demorei
para assistir a Bacurau. E, no entanto, dez minutos depois de iniciado o
filme eu sentia que já tinha assistido ao filme de Kleber Mendonça
Filho umas dez vezes – a última delas há uns 20 anos, na sala com cheiro
de mofo da Cinemateca. Foi lá que, numa noite inesquecível em que
entendi quão raso é o raciocínio dos cineastas brasileiros, assisti ao
filme Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi.
Ao
ver subirem os créditos de Bacurau, a sensação foi a mesma. Exceto pela
falta de novidade e pela perda de vigor e cabelos deste que escreve. E
que, naquele tempo que agora parece tão remoto, ainda acreditava que o
talento e a beleza sempre se sobreporiam ao proselitismo estéril e à
exaltação da miséria. Vinte anos e três mandatos e meio de petistas no
Planalto separam a obra de Bianchi da de Mendonça Filho. E, no entanto, a
mentalidade ressentida, vingativa e acovardada continua a mesma.
Mesmíssima.
Antes
de ser um filme de resistência e exaltação de um espírito coletivista
amoral, capaz de incluir todas as minorias oprimidas pelo capitalismo
malvadão e pelo imperialismo norte-americano estadunidense, Bacurau é um
filme que, para existir, depende da estética da miséria. Mendonça
Filho, que para chegar aos pés do esquerdismo piradão de um Glauber
Rocha ainda tem que comer muita carne-seca com farinha nas caatingas da
vida, vê na beleza o vilão absoluto de sua luta. Daí porque precisa
compor um universo feio, mas cheio de pretensas virtudes progressistas.
Este
é o grande dilema de Bacurau: como pode a comunidade progressista ser
tão miserável, habitada por gente miserável? E aqui uso com parcimônia
uma palavra que não costumo sair verbalizando por aí. A miséria, na
história tarantinesca de Mendonça Filho, é condição natural e eterna do
homem. Miséria física, sim, mas também espiritual. Os corpos nus,
naturalmente repugnantes, não estão ali por acaso. É com um nojo mal
disfarçado que o diretor e roteirista vê os seres humanos, aos quais
chama de companheiros ou irmãos, como convém.
Em
meio a essas vítimas repugnantes do sistema opressor estão todos os
seres de um cangaço mitológico e mitômano. As mulheres são Marias
Bonitas (mulher macho, sim, senhor). Há até um Lampião de mullets, sem
falar nos cangaceiros que passaram tanto tempo no semiárido que já não
sabem se são homens ou mulheres, muito pelo contrário. Uma análise mais
generosa poderia dizer que Kleber Mendonça Filho faz um aceno a
Guimarães Rosa. Mas essa generosidade só renderia mentira. Não há em
Bacurau um só grama de resignação sábia ou aspiração à redenção.
Tudo
é luta, sangue e maniqueísmo de almanaque no filme que, diz o
anedotário, foi aplaudido de pé em Cannes. Não há qualquer possibilidade
de inteligência entre os personagens do filme, que se expressam por
tiros ou palavrões ou caretas ou pelancas expostas ou ainda por infantis
“afrontas à sociedade conservadora”, como uns peitos gordos à mostra.
As falas são constrangedoramente teatrais e esquematizadas. O que,
pensando agora, já no final do parágrafo, talvez possa ser visto como
uma qualidade improvável.
Sim,
porque com o incensado Bacurau, o cineasta-ativista Kleber Mendonça
Filho acaba por desnudar sua visão de mundo (e a visão de mundo do
público que o elogia) para os espectadores. Afinal, o filme é, o tempo
todo, uma tentativa de transformar seres tridimensionais em
bidimensionais, a fim de, talvez, categorizá-los numa planilha do Excel a
ser usada por um supercomputador que nos conduzirá àquele Paraíso que
já foi tentado lá atrás, em 1917, nas planícies geladas da minha
ancestral Rússia.
Nesse
mundo idealmente planificado, onde oração é heresia e onde o homem é o
lobo do homem, há lugar até mesmo para um professor que faz as vezes de
oráculo sábio, de crianças muito curiosas e puras, do cantor-profeta e
da ciência com sangue inocente no jaleco. É no meio dessa fauna velha e
cansada (e derrotada nas urnas) que o espectador tem de passar para,
duas horas mais tarde, quem sabe, sair do cinema (ou levantar do sofá)
com a sensação de que é preciso resistir e fundar, de uma vez por todas,
e em plena caatinga, um paraíso igualitário quente e cheio de
mosquitos. Mas silvicolamente feliz.
De
minha parte, maldigo baixinho, e de brincadeirinha, meu editor que
acordou hoje e, assim como não quer nada, sugeriu que eu me expusesse a
Bacurau. E logo em seguida agradeço pela oportunidade de ver a bênção de
não compartilhar da mesma realidade político-filosófica de Kleber
Mendonça Filho. Afinal, deve ser muito difícil se ver como um herói
solitário, munido de uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, e
destinado a ensinar as hordas ignorantes da Vila Madalena ou do Leblon
que “o homem vale mais pelo mal do que pelo bem que pode fazer”.
Há
20 anos, em pleno governo “neoliberal” de Fernando Henrique Cardoso,
Cronicamente Inviável talvez fizesse algum sentido com seu mundinho
dividido entre ricos maus e pobres bons. Hoje, Bacurau não faz sentido
algum com seu disquinho voador à la Ed Wood, seu povoado autossuficiente
em miséria e seus americanos estadunidenses sedentos de sangue. Tamanho
descolamento da realidade acaba por se refletir na fantasia. E, não por
acaso, nas urnas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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