terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Por que "Bacurau" é cronicamente inviável

 



De minha parte, maldigo baixinho, e de brincadeirinha, meu editor que acordou hoje e, assim como não quer nada, sugeriu que eu me expusesse a Bacurau. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff Jr. (eu não veria esse filmeco, puro cine trash, nem sob vara):


Logo mais à noite, depois da novela, todo mundo deve se sentar em frente à televisão, fazer uma pipoquinha e se servir-se de um refrigerante bem gelado para assistir a Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. Não para fazer um “exame de consciência de classe” acompanhando as aventuras de uma turminha do barulho que vai aprontar todas na caatinga. E sim para entender quão monolítica, superficial, frágil e maniqueísta é essa visão de mundo que opõe opressores e oprimidos – e da qual Mendonça Filho é um expoente.

Demorei para assistir a Bacurau. E, no entanto, dez minutos depois de iniciado o filme eu sentia que já tinha assistido ao filme de Kleber Mendonça Filho umas dez vezes – a última delas há uns 20 anos, na sala com cheiro de mofo da Cinemateca. Foi lá que, numa noite inesquecível em que entendi quão raso é o raciocínio dos cineastas brasileiros, assisti ao filme Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi.

Ao ver subirem os créditos de Bacurau, a sensação foi a mesma. Exceto pela falta de novidade e pela perda de vigor e cabelos deste que escreve. E que, naquele tempo que agora parece tão remoto, ainda acreditava que o talento e a beleza sempre se sobreporiam ao proselitismo estéril e à exaltação da miséria. Vinte anos e três mandatos e meio de petistas no Planalto separam a obra de Bianchi da de Mendonça Filho. E, no entanto, a mentalidade ressentida, vingativa e acovardada continua a mesma. Mesmíssima.

Antes de ser um filme de resistência e exaltação de um espírito coletivista amoral, capaz de incluir todas as minorias oprimidas pelo capitalismo malvadão e pelo imperialismo norte-americano estadunidense, Bacurau é um filme que, para existir, depende da estética da miséria. Mendonça Filho, que para chegar aos pés do esquerdismo piradão de um Glauber Rocha ainda tem que comer muita carne-seca com farinha nas caatingas da vida, vê na beleza o vilão absoluto de sua luta. Daí porque precisa compor um universo feio, mas cheio de pretensas virtudes progressistas.

Este é o grande dilema de Bacurau: como pode a comunidade progressista ser tão miserável, habitada por gente miserável? E aqui uso com parcimônia uma palavra que não costumo sair verbalizando por aí. A miséria, na história tarantinesca de Mendonça Filho, é condição natural e eterna do homem. Miséria física, sim, mas também espiritual. Os corpos nus, naturalmente repugnantes, não estão ali por acaso. É com um nojo mal disfarçado que o diretor e roteirista vê os seres humanos, aos quais chama de companheiros ou irmãos, como convém.

Em meio a essas vítimas repugnantes do sistema opressor estão todos os seres de um cangaço mitológico e mitômano. As mulheres são Marias Bonitas (mulher macho, sim, senhor). Há até um Lampião de mullets, sem falar nos cangaceiros que passaram tanto tempo no semiárido que já não sabem se são homens ou mulheres, muito pelo contrário. Uma análise mais generosa poderia dizer que Kleber Mendonça Filho faz um aceno a Guimarães Rosa. Mas essa generosidade só renderia mentira. Não há em Bacurau um só grama de resignação sábia ou aspiração à redenção.

Tudo é luta, sangue e maniqueísmo de almanaque no filme que, diz o anedotário, foi aplaudido de pé em Cannes. Não há qualquer possibilidade de inteligência entre os personagens do filme, que se expressam por tiros ou palavrões ou caretas ou pelancas expostas ou ainda por infantis “afrontas à sociedade conservadora”, como uns peitos gordos à mostra. As falas são constrangedoramente teatrais e esquematizadas. O que, pensando agora, já no final do parágrafo, talvez possa ser visto como uma qualidade improvável.

Sim, porque com o incensado Bacurau, o cineasta-ativista Kleber Mendonça Filho acaba por desnudar sua visão de mundo (e a visão de mundo do público que o elogia) para os espectadores. Afinal, o filme é, o tempo todo, uma tentativa de transformar seres tridimensionais em bidimensionais, a fim de, talvez, categorizá-los numa planilha do Excel a ser usada por um supercomputador que nos conduzirá àquele Paraíso que já foi tentado lá atrás, em 1917, nas planícies geladas da minha ancestral Rússia.

Nesse mundo idealmente planificado, onde oração é heresia e onde o homem é o lobo do homem, há lugar até mesmo para um professor que faz as vezes de oráculo sábio, de crianças muito curiosas e puras, do cantor-profeta e da ciência com sangue inocente no jaleco. É no meio dessa fauna velha e cansada (e derrotada nas urnas) que o espectador tem de passar para, duas horas mais tarde, quem sabe, sair do cinema (ou levantar do sofá) com a sensação de que é preciso resistir e fundar, de uma vez por todas, e em plena caatinga, um paraíso igualitário quente e cheio de mosquitos. Mas silvicolamente feliz.

De minha parte, maldigo baixinho, e de brincadeirinha, meu editor que acordou hoje e, assim como não quer nada, sugeriu que eu me expusesse a Bacurau. E logo em seguida agradeço pela oportunidade de ver a bênção de não compartilhar da mesma realidade político-filosófica de Kleber Mendonça Filho. Afinal, deve ser muito difícil se ver como um herói solitário, munido de uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, e destinado a ensinar as hordas ignorantes da Vila Madalena ou do Leblon que “o homem vale mais pelo mal do que pelo bem que pode fazer”.

Há 20 anos, em pleno governo “neoliberal” de Fernando Henrique Cardoso, Cronicamente Inviável talvez fizesse algum sentido com seu mundinho dividido entre ricos maus e pobres bons. Hoje, Bacurau não faz sentido algum com seu disquinho voador à la Ed Wood, seu povoado autossuficiente em miséria e seus americanos estadunidenses sedentos de sangue. Tamanho descolamento da realidade acaba por se refletir na fantasia. E, não por acaso, nas urnas.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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