Não será completa surpresa se o STF atropelar a Constituição; os seus intitulados “guardiões” já a desprezaram muitas outras vezes no passado. Editorial da Gazeta do Povo:
O
que tem mais valor, a Constituição Federal ou a ambição de determinados
parlamentares? Essa é a pergunta que o Supremo Tribunal Federal haverá
de responder no próximo dia 4, quando julgará a possibilidade de
reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado na disputa que ocorrerá
no início de fevereiro do ano que vem. O senador Davi Alcolumbre
(DEM-AP) trabalha ativamente para permanecer mais dois anos na cadeira,
enquanto o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) desconversa, mas vê
articulações de aliados em torno de seu nome.
A
Constituição é bastante clara em seu artigo 57, § 4.º: “Cada uma das
casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1.º de
fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e
eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a
recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Em
outras palavras, dentro de uma mesma legislatura – o que é o caso agora
–, a Constituição proíbe expressamente a reeleição para um mesmo cargo
nas Mesas Diretoras. Há apenas uma exceção, que o STF admitiu em 1999: a
reeleição quando há mudança de legislatura. Foi assim, por exemplo, que
Maia se manteve na presidência da Câmara em 2019.
No
entanto, por mais claro que seja o texto constitucional, informações de
bastidores afirmam que já haveria pelo menos sete ministros dispostos a
simplesmente fingir que o § 4.º do artigo 57 não existe. Entre eles
está Gilmar Mendes, relator da ação impetrada pelo PTB e que pretende
barrar qualquer pretensão de reeleição em 2021. Um dos argumentos
favoritos desses ministros é o de que o tema é assunto interno da Câmara
e do Senado. Um raciocínio falho, pois ignora que o constituinte de
1988, ao colocar esta regra na Carta Magna, quis fazer da eleição dos
presidentes das casas legislativas algo maior que uma simples questão
interna corporis.
E
nem se pode dizer que os Regimentos Internos estejam, atualmente, em
desacordo com a Constituição. O da Câmara, no artigo 5.º, afirma que é
“vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente
subsequente”, mas contempla a exceção aberta pelo STF ao dizer que “não
se considera recondução a eleição para o mesmo cargo em legislaturas
diferentes, ainda que sucessivas”. O do Senado nem isso faz, afirmando
apenas, no artigo 59, que é “vedada a reeleição para o período
imediatamente subsequente”. Mas simplesmente alterar os regimentos de
pouco adiantaria, pois eles passariam a entrar em choque com o
dispositivo constitucional.
Só
haveria uma forma de “anular” o § 4.º do artigo 57 da Constituição, e
ela foi oferecida em um raciocínio curiosíssimo da Advocacia do Senado:
como a Mesa Diretora exerce uma função “executiva” dentro do Poder
Legislativo, a seus integrantes deveria ser aplicado não o artigo 57,
mas o 14, § 5.º: “O presidente da República, os governadores de estado e
do Distrito Federal, os prefeitos e quem os houver sucedido, ou
substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único
período subsequente”.
É
um malabarismo extraordinário. Primeiro, porque o texto deixa muito
claro que esta permissão de reeleição se aplica apenas aos cargos de
presidente da República, governador e prefeito; não há menção a
presidentes de Câmara ou Senado. Segundo, porque Mesas Diretoras não são
o mesmo que o Poder Executivo, nem mesmo um “Executivo do Legislativo”,
como se houvesse um poder dentro de outro. Não há como aplicar o artigo
14 da Constituição aos casos de Maia e Alcolumbre nem mesmo por
analogia.
Mas
não será completa surpresa se o STF atropelar a Constituição; os seus
intitulados “guardiões” já a desprezaram muitas outras vezes no passado,
reescrevendo-a por conta própria ou apenas ignorando os trechos
“inconvenientes”, como parece ser agora o caso da vedação à reeleição
dentro da mesma legislatura. Que, nestes tempos de pandemia e desajuste
fiscal, com reformas importantes esperando votação, haja parlamentares
colocando tudo isso em segundo plano em nome do próprio projeto de poder
já é decepcionante; que contem com a ajuda do Supremo para isso, em
desrespeito flagrante à própria Constituição, é digno das clássicas
repúblicas bananeiras.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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