O que faria Tancredo Neves para interromper o Fla-Flu que começou com a chegada das primeiras caravelas? Augusto Nunes:
Nasci
numa cidade dividida entre janistas e ademaristas. Tornei-me adulto e
amadureci num país dividido entre partidários do regime militar e
militantes da resistência democrática. Envelheço num Brasil que Lula
dividiu entre “eles” e “nós” e continua dividido pelo coronavírus entre
simpatizantes e inimigos do uso da cloroquina no combate à pandemia. Com
a chegada da primeira caravela, muitos séculos antes da invenção do
futebol, índios cor de cobre e brancos europeus inauguraram o Fla-Flu
que nunca mais terminou. Os períodos de trégua foram tecidos pelos
poucos líderes políticos que souberam desde o útero que não há
democracia consistente sem o convívio dos contrários. Uma dessas
raridades foi Tancredo de Almeida Neves.
O
que faria Tancredo?, pergunto-me quando as coisas, sempre difíceis por
aqui, ficam especialmente complicadas. Era nesses momentos que os mais
ferozes desafetos entendiam que chegara a hora de chamar o doutor
Tancredo. “Nunca me convidam para um banquete”, ouço a voz do
conciliador vocacional, em dezembro de 1983, na mesa do restaurante em
Belo Horizonte. “Só se lembram de mim na hora da tempestade”. Ele enrola
e desenrola a gravata azul antes da ressalva:
“A
conciliação só pode ser feita em torno de princípios. É por isso que
uma vitória eleitoral é mais fácil do que conseguir um acordo entre
antigos adversários.”
O
domador de tempestades teve um desempenho luminoso na crise provocada
pela renúncia do presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961.
Recolhido ao casarão em São João del Rey, onde nasceu, convalescia desde
outubro do ano anterior da derrota para Magalhães Pinto na disputa pelo
governo de Minas Gerais. E examinava a ideia de encerrar a carreira
política quando o destino o encarregou de abortar o temporal em
gestação.
Decolou
para Brasília a pedido do general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar
do governo que, formalmente presidido pelo deputado Ranieri Mazzili,
estava sob a tutela dos ministros do Exército, da Aeronáutica e da
Marinha. A trinca, contou-lhe Geisel, não admitia a entrega do gabinete
abruptamente desocupado ao vice João Goulart, em viagem oficial à China.
Como o governador Leonel Brizola, entrincheirado no Palácio Piratini e
apoiado pelas tropas aquarteladas no Rio Grande do Sul, exigia a posse
de Jango, as dimensões e a tonalidade das nuvens anunciavam a tempestade
que prenuncia a guerra civil.
É
coisa para o doutor Tancredo, concordaram os comandantes militares e os
aliados de Jango. Era mesmo. Cinco dias e incontáveis sussurros depois,
estava costurado o mais improvável dos acordos. O vice tornou-se
presidente, mas com poderes reduzidos pela adoção do regime
parlamentarista. A escolha do nome do primeiro-ministro foi feita sem
disputas, debates ou dúvidas. Só podia ser Tancredo Neves.
Mais
de vinte anos depois, de novo só podia ser Tancredo o candidato da mais
multifacetada aliança política da história republicana.
Nenhum
outro líder juntaria no mesmo balaio todos os “autênticos” e
“moderados” do PMDB, todos os partidos de oposição (com a exceção
previsível do PT, que optou pela abstenção no Colégio Eleitoral e
expulsou três deputados que discordaram da ordem de Lula). Nenhum outro
candidato atrairia tantos governistas dissidentes sem tornar inevitável o
veto ostensivo de oficiais inconformados. Se não existisse um Tancredo,
o Brasil teria de esperar sabe-se lá quanto tempo ainda pela
ressurreição da democracia.
Ele
está em boa forma, equivoco-me ao ouvi-lo pedir um licor depois da
sobremesa. É provável que já estivesse suportando as dores que
esconderia até 14 de março, quando o país pronto para festejar a posse
do eleito foi abalado pela notícia da primeira cirurgia. Escondeu-as por
achar que o presidente João Figueiredo não aceitaria passar a faixa
presidencial a José Sarney, vice-presidente eleito, ou ao deputado
Ulysses Guimarães, presidente da Câmara.
— Vejo o senhor em Brasília — despeço-me na calçada em Belo Horizonte.
É um sorriso cansado, noto enquanto me deseja boa viagem.
—
Vejo o senhor no Palácio do Planalto — ainda me ouço dizendo em 15 de
janeiro, depois de emocionar-me com o discurso retocado pela caneta que o
jovem ministro da Justiça de Getúlio Vargas ganhou do presidente
suicida. “Com o êxtase e o terror de haver sido o escolhido, como diria
Verlaine, entrego-me hoje ao serviço da nação”, dissera o presidente
eleito.
Achei ainda mais cansado o sorriso de Tancredo ao reiterar a data do reencontro:
— Até o dia da posse — despedi-me.
Não voltei a vê-lo vivo.
O Brasil que foi dormir com Tancredo Neves acordou dividido por José Sarney.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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