quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Não é o fim do mundo


A década que termina foi tomada por um sentimento iminente de catástrofe, escreve João Pereira Coutinho em sua coluna na FSP:

O ano caminha para o fim. A década também. E os nostálgicos, olhando para trás, procuram resumir os últimos dez anos com frases de efeito.

Não sou indiferente ao esporte. Mas, nessa matéria, concordo com Ross Douthat, uma das últimas cabeças pensantes do New York Times: não é possível olhar para a segunda década do século 21 e esquecer as duas décadas anteriores.

Segundo Douthat, esses 30 anos podem ser entendidos como uma peça em três atos: no primeiro ato, temos a húbris, a confiança excessiva que adveio com a tese do fim da história e do triunfo da ordem liberal.

No segundo ato, quando dois aviões destruíram as Torres Gêmeas em Nova York, experimentamos a queda dessa confiança (a nêmesis).

A década que amanhã entra em seu último ano foi simplesmente de desilusão, afirma Douthat, embora eu talvez fosse mais dramático: depois da confiança e da queda, a sensação é de tragédia mesmo. E um dos métodos de aferir essa involução passa pelas séries de TV.

Brinco? Não brinco. Anos atrás, um amigo erudito explicava-me que a melhor forma de compreender a década de 1990 implicava olhar para os seriados que fizeram sucesso.

Tinha razão e os nomes dizem tudo: “Barrados no Baile”, “Seinfeld”, “Friends”, “Frasier”. O que as une?

O humor, sim, mas também a vida como ela é: as pequenas alegrias e tristezas de gente banal, cultivando os seus amores e desamores em paz e sossego.

Quando assisto a “Seinfeld” ou a “Frasier”, o que acontece a um ritmo regular (só o “Sherlock Holmes” de Jeremy Brett rivaliza com elas), sinto o mesmo que Evelyn Waugh quando relembrava a Inglaterra dos anos 1920: um tempo arcádico, sem nenhuma sombra a encobri-lo.

Na virada do milênio, tudo mudou. Foi aquela manhã em Nova York e o terrorismo islâmico a emergir no horizonte. Foram duas guerras —Afeganistão, Iraque— e nenhuma arma de destruição maciça para mostrar.

Elementar, meu caro Watson: as armas de destruição maciça não estavam nas Arábias. Estavam dentro de portas, nos desvarios dos bancos e da especulação financeira, como soubemos em 2007 e 2008.

A televisão não ficou indiferente ao espírito do tempo. Um sentimento de angústia, de ansiedade, de incerteza começou a visitar-nos no “prime time”.

Chegaram “Família Soprano”, “A Sete Palmos”, “The Wire”, “24 Horas”. E até a comédia perdeu a gentileza de “Frasier” ou o surrealismo de “Seinfeld”.

O humor tornou-se mais seco (“South Park”), mais embaraçoso (“The Office”), mais cruel (“Arrested Development”). Existe até um título que resume bem o banho frio desse período: “Curb Your Enthusiasm”.

E a década de 2010 que agora caminha para o final?

A angústia deu lugar a um sentimento iminente de catástrofe, como se alguém tivesse subitamente apagado as luzes e um abismo tivesse aberto sob os nossos pés.

Será que a democracia liberal vai sobreviver à rebelião das massas? Será que vem aí uma nova “guerra fria” entre os Estados Unidos e a China? Haverá planeta para os nossos filhos e netos? E o terrorismo? Como foi que ele abandonou o seu habitat natural —África e Oriente Médio— para se instalar no coração da Europa?

Nada do que tínhamos como seguro e certo —a Terra é redonda, as vacinas são importantes, a privacidade não tem preço— parece agora seguro e certo. Tudo é fluido. Até o gênero.

A convulsão e a subversão dos últimos dez anos renderam boas e terríveis séries: histórias em que o declínio é literal (“Mad Men”), inexplicável (“The Leftovers”), épico (“Game of Thrones”), selvático (“The Walking Dead”), distópico (“Black Mirror”) ou até autodestrutivo (“Breaking Bad”).

Será que estamos sendo realistas ou paranóicos?

Como é evidente, a resposta a essa pergunta será dada na próxima década. Mas eu, que não sou famoso pelo meu otimismo, aposto na palavra talvez.

Talvez os populismos do momento percam o seu combustível assim que as promessas dos vários messias sejam derrotadas pela realidade.

Talvez o planeta resista às hipóteses científicas mais extremas assim que a evolução técnica o permita.

Talvez a selva epistemológica e moral da internet seja domada assim que a educação e a lei chegarem a esse novo faroeste.

E talvez as séries de TV possam expressar um certo sentido de alívio e de espanto pelo simples fato de ainda estarmos vivos. Que o mesmo é dizer: “Twin Peaks” encontra “Mr. Bean” e vão os dois tomar uma cerveja no bar do “Cheers”. Não é o fim do mundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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