sábado, 1 de junho de 2019

Armas, porte, individualismo e coletivismo.


Vamos, então, tratar da questão do porte de armas de fogo, não pelo quadro legal (nem li o bendito decreto, que já mudou e talvez venha a mudar de novo), mas sim pelo prisma da filosofia que subjaz cada um dos lados. Coluna de Carlos Ramalhete, via Gazeta do Povo:

Escrever é criar pontes, juntar ideias. Meu caseiro, que é um sujeito extremamente inteligente ainda que só leia rótulos, definiu minha profissão de escritor de uma maneira muito interessante. Segundo ele, eu leio um monte de livros e depois escrevo outro, em que junto aquilo tudo. É bem isso, mesmo. E estas colunas, curiosamente, têm se tornado uma espécie de espaço de explicação neste tempo em que, ao mesmo tempo em que a política subiu ao primeiro plano, o diálogo político parece ter se tornado impossível pela diferença de visão de mundo entre a ínfima minoria que regeu o país nas últimas décadas e a imensa maioria da população que elegeu o primeiro presidente cultural e ideologicamente taxista da história pátria. Nelas eu comumente apresento ambos os lados de uma ou outra questão, a partir de suas bases filosóficas, para que seja possível aos lados em confronto, quem sabe, entender um pouco o outro, colocando-se em seus sapatos em vez de negá-lo liminarmente como criminoso ou imbecil.
Vamos, então, tratar da questão do porte de armas de fogo, não pelo quadro legal (nem li o bendito decreto, que já mudou e talvez venha a mudar de novo), mas sim pelo prisma da filosofia que subjaz cada um dos lados. A diferença mais gritante está, como sempre, no vocabulário. É possível, e mesmo fácil, discernir se o autor de um texto está do lado das elites esquerdistas ou da massa popular pelo uso de determinados termos-chave, que funcionam como os apitos ultrassônicos com que se chamam os cachorros sem incomodar os vizinhos. Quem se alinha com aquela maneira de ver o mundo percebe aqueles termos e se sente em casa, e quem não se alinha, em geral, ou bem os entende de maneira completamente diferente (foi o fenômeno que possibilitou a sucessão de reeleições da esquerda e sua dominação cultural superficial, aliás) ou bem os ignora. Alguns raros têm a capacidade – que depende de um certo estudo prévio – de entender o que eles são, de onde vêm e para onde vão.
Evidentemente, não é só a esquerda que tem seus apitos invisíveis ao outro lado. A direita também os tem, ainda mais particularmente nossa “nova direita”, esta mistura de udenismo cultural com americanismo galopante, fartamente temperada por uma percepção (fundamentalmente correta, mas crua) do perigo comunista. O esquerdista convicto da classe média urbana brasileira, ao ler um texto escrito por um membro da nova direita, em geral simplesmente não entende nada; daí as piadas, o uso irônico de termos-chave (apitos de cachorro) da nova direita como “cidadão de bem” etc.
São surdos tentando debater contra cegos; ninguém apreende o que o outro comunica, e cada um reage a sinais que o outro é incapaz de perceber. É no intuito de jogar alguma luz sobre esta situação que escrevo este texto.
A primeira diferença no tocante à questão das armas, porte de armas e temas correlatos é a da coletividade versus o indivíduo. Para a esquerda, o que interessa fundamentalmente é a construção de uma sociedade perfeita. Este é o intuito final, o alvo, o teleos no longo, médio e curto prazo. Conheço histórias reais, aliás muitas, de pessoas com firme convicção de esquerda que consideravam que seria boa coisa maltratar mais os pobres, na medida em que isso os incentivaria a levantar-se e derrubar a sociedade opressora (após o que, pela peculiarmente otimista concepção de mundo da esquerda, viria forçosamente uma sociedade melhor). A maioria absoluta e esmagadora dos esquerdistas não age assim nem aceitaria que alguém agisse assim em sua frente, mas quem está indo mais longe na adesão aos pressupostos esquerdistas é o sujeito que chuta mendigos. Este é o que, no caso de uma revolução, ver-se-ia alçado a posição de mando, dada justamente a sua ausência de escrúpulos. Afinal, “não se pode fazer uma omelete sem quebrar ovos”, famosamente teria dito Stalin. Ou Kaganovitch, seu braço-direito. Ou algum outro mestre-cuca de seres humanos.
A visão de mundo esquerdista choca-se frontalmente com a visão de mundo cristã por ser fundamentalmente coletivista. Para o cristão, a salvação é algo perfeita e completamente individual, ocorrendo contudo no quadro da ação da graça divina (o que já pressupõe um Outro) e auxiliada pelo pertencimento daquele que há de ser salvo à Comunhão dos Santos, através justamente desta mesma graça. Já para a mentalidade esquerdista, que é em última análise uma espécie de imanentização do pensamento católico, tirando Deus da equação (nela, Ele cederia seu lugar ao Partido), tirando os santos da equação (a Virgem Maria, Medianeira de todas as Graças, seria substituída pelo chefe comunista, o que explica a presença de retratos e estátuas enormes dele por toda parte), substituindo a graça divina pelos bens materiais (do mais humilde cadarço de sapato aos mísseis balísticos intercontinentais, tudo viria pelo Partido por meio do líder) e, finalmente, negando liminarmente o valor do ser humano individual em prol do coletivo de classe. O ser humano, no pensamento cristão, como vimos, é quem se salva. Já no pensamento esquerdista, não há ser humano a salvar; há, ao contrário, toda a classe dos proletários, dos camponeses etc.
Do mesmo modo, a ação contrária à ação da graça, no cristianismo, é fundamentalmente reduzida a três vetores, todos os três apontados para o ser humano individual em primeiro lugar: a carne, o mundo e o demônio. Note-se que os três vetores são ridiculamente fracos e incapazes de qualquer dano à graça em si; o seu dano, na verdade, é simplesmente a distração do ser humano, que passa a não receber, não acolher, não aceitar a graça santificante e salvífica por estar demasiadamente ocupado consigo mesmo e seus desejos sensíveis (sexo, boa comida e bebida, conforto material etc. – a carne), ou com o ambiente social ao redor (ascensão social, fofoca, preocupação com o que vão pensar, valores distorcidos etc. – o mundo), ou, finalmente, com alguma armadilha propositadamente posta em seu caminho por quem quer prejudicá-lo, para que ele se afaste da graça (imagens mentais recorrentes, medo, supostas coincidências que o atrapalham sempre que tenta fazer o bem etc. – o demônio).
Já na visão de mundo esquerdista, como não interessa o ser humano individual (“uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística” – mais uma vez, Stalin, o “Homem de Aço” soviético. Sem brincadeira; “Stalin” era o apelido de um sujeito nascido Ioseb Besarionis dze Jughashvili, e este é o seu significado. Ria baixo, por favor, para não incomodar os vizinhos), tudo conspira, é contra a classe oprimida. Esta seria originalmente a classe proletária, ou seja, aqueles que não têm bem algum senão a própria prole (foi antes da pílula, aborto e castração forçada dos pobres; hoje nem isso ela tem). A esta somou-se a dos camponeses e, mais tarde, na Coreia do Norte, ainda se lhe adicionaram os artistas. Daí que lá eles usam uma foice (camponeses), um martelo (operários proletários) e um pincel (artistas). Muito chique, e o povo da Globo certamente aprova.
Mas, então, conspiram contra a classe operária a “falsa consciência”, que faz as vezes da carne (seria os apegos introjetados ao sentimentalismo e aos valores de classe burgueses, como no caso de pessoas que não conseguem se levar a chutar mendigos), o “sistema de opressão”, que faz as vezes do mundo (seria a ordem social injusta que impediria liminarmente a ascensão social e tornaria necessária a “luta de classes”), e os “contrarrevolucionários”, que fazemos as vezes do demônio (são os que lutamos ativamente contra a esquerda e tentamos frustrar seus intuitos revolucionários).
Já para a direita, especialmente para a nova direita, a visão de mundo é totalmente oposta. Uma das razões por que eu realmente não consigo me perceber como parte deste movimento é o fato de a nova direita ser ideologicamente uma releitura, na verdade uma cópia malfeita, de um pensamento político norte-americano (sobre isso já escrevi um texto chamado “Anticomunismo revolucionário”) que por sua vez é uma releitura imanentista do protestantismo, que já é uma releitura hiperindividualista da religião cristã. Em suma, trata-se da cópia da heresia da heresia, coisa que não me agrada em absoluto. Mesmo quando certa, em geral ela o está pelas razões erradas.
A visão de mundo desta direita é extremamente individualista. Comparando-se-a novamente à visão de mundo cristã, uma sua diferença principal (herdada diretamente do protestantismo) consiste na negação de uma Comunhão dos Santos, tratando toda e qualquer ligação superior ao indivíduo e inferior à Divindade como: ou ligação contratual (daí a possibilidade sempre presente e facilmente aceita do divórcio, por exemplo; se o casamento nada mais é que um contrato, que problema haveria no presidente estar já na segunda concubina? Que diferença haveria entre isto e estar alugando a terceira casa?), ou bem irrelevante e de foro totalmente íntimo (idem). Sua outra diferença gigantesca é causada pela primeira: se não há ordens intermediárias entre a Divindade e o homem (que na fé cristã existem na forma, principalmente, das hierarquias dos anjos e santos, em que a Virgem Puríssima está acima de São João Batista, que está acima de Santo Antônio, que está acima de São Josemaría Escrivá etc., e da hierarquia eclesial), só há duas opções: ou bem a Divindade é colocada como infinitamente longe, à maneira do Alá dos muçulmanos (e então o que interessa passa a ser a política e a economia, num imanentismo forçado pela irrelevância das tentativas humanas de influenciar a Divindade), ou bem ela desce ao ponto de ficar perto demais, quiçá abaixo do próprio homem (é o que acontece nas seitas em que as pessoas acham que podem convocar o Espírito Santo quando querem, que veem Nosso Senhor Jesus Cristo como um “amigão” em vez de percebê-lo como Senhor e Criador de tudo o que há etc.).

Em suma, para a nova direita, o homem é autônomo, independente e traça seu próprio rumo, seja por sua própria força (no caso daquele indivíduo que pressupõe uma Divindade distante), seja pela proteção sobrenatural de uma Divindade a seu serviço (“este carro foi Deus que me deu”, “ir contra [o Estado de] Israel é afrontar a Deus”, entre outras blasfêmias).
Dá para imaginar os problemas de comunicação entre a esquerda e esta direita!
No caso específico das armas, como isso funciona? Bom, para a esquerda, como já disse, a questão do ser humano é irrelevante diante de sua identidade de classe. Assim, se aquela pessoa concreta pertence à classe oprimida, ela está certa, não tem pecado (o pessoal de Teologia da Libertação diz isso com todas as letras acerca dos pobres em geral, e o próprio Lula o declarou acerca de si mesmo, macaqueando a afirmação da Senhora de Lourdes: “Que soy era Immaculada Councepciou”, “Sou a Imaculada Conceição”), os seus erros foram causados pela sociedade opressora e não por ela mesma, e por aí vai. Assim, ao ver um decreto que libera o porte de armas, a reação primeira do esquerdista é pensar “que absurdo! Como se a sociedade já não estivesse violenta demais!”

É por isso que comumente a imprensa pátria, que (com a honrosa exceção da Gazeta do Povo) está quase toda nas garras da esquerda, usa o apito-de-cachorro “violência” para tratar do problema social que tem como consequência cerca de 70 mil homicídios por ano. Em “violência”, afinal, somam-se não apenas os crimes dolosos contra a pessoa, mas os acidentes de trânsito, os roubos (cometidos mediante ameaça), e por aí vai. É um termo vasto o bastante para abraçar um monte de problemas radicalmente diferentes. Daí a reação contrária instintiva das raras mentes pensantes da “nova direita”, que percebem como absurdo misturar o que veem como alhos e bugalhos.
Mas para o esquerdista, não são alhos e bugalhos. Muito pelo contrário. Afinal, a sua visão é sempre coletivista. Assim, ao saber de 70 mil homicídios (que, convenhamos, na contagem stalinista estão bem acá do meio-termo entre tragédia e estatística), a primeira questão que ele se coloca é a da identidade de classe das vítimas. Ora, a maior parte, a imensíssima, enorme, gigantesca e galopante maior parte dos homicídios dolosos no Brasil é cometida por bandidinhos contra outros bandidinhos, que desta forma disputam pontos de vendas de drogas, fazem valer os julgamentos dos ditos “tribunais do crime”, e por aí vai. Assim, todavia, esta violência (que é real, e que vitima seres humanos cuja dignidade é assim negada) é percebida pelo esquerdista como “genocídio da população negra”, porque a maior parte das vítimas, por ser de classe mais baixa, tem normalmente a pele mais escura (e antepassados europeus, indígenas e africanos, que nem todo mundo no Brasil; escrevi sobre isso outro texto, chamado “Raça – isso não existe”). Notem que não interessa que não haja “genocidantes” apontados, e se houvesse eles teriam a mesmíssima cor da pele de suas vítimas, que mal que bem são na verdade seus rivais e só não os mataram antes por falta de oportunidade ou capacidade.
Isto ocorre porque, para o esquerdista, todo problema é por definição social e, mais ainda, econômico. Assim, o capitalismo selvagilíssimo das disputas entre traficantes é percebido por eles como um “genocídio” perpetrado, por definição, pela sociedade como um todo, e, nela, pela sua elite “burguesa”, que seria quem teria interesse na manutenção do status quo. O pobre que mata outro pobre numa disputa por um ponto de tráfico o estaria fazendo por falsa consciência, e estaria na verdade servindo à burguesia a “libra de carne” que ela cobra dos oprimidos. A questão da identidade pessoal do autor do homicídio, assim, se torna irrelevante para a esquerda, mesmo porque cada ser humano, quando considerado em pessoa, seria para ela irrelevante, interessando apenas a classe de que ele seria um representante.
Já para o direitista, o problema se coloca de maneira radicalmente diferente. Não dá nem para dizer que é de maneira oposta; é de uma maneira que tem tantos níveis de contrariedade com a da esquerda que o debate se torna praticamente impossível. Vejamo-la. Em primeiro lugar, a questão fundamental do direitista é o ser humano individual, mais ainda que o do ser humano dentro de sua teia de relações pessoais naturais e sobrenaturais, como na visão cristã clássica. Não. O neodireitismo brasuca copia o americano, que por sua vez herdou do protestantismo calvinista que forma a base cultural daquele país a noção de que o homem não só é um indivíduo em relação direta com Deus, como que esta relação é forçosamente ou bem de oposição ou bem de união. Desta forma, para o neodireitista brasileiro, uma das duas opções possíveis é que a pessoa seja um “cidadão de bem” (que, na versão original americana, seria o sujeito que aceita os rituais cívicos americanos – idolatria das Forças Armadas, policiais e da bandeira; presença dominical ou sabatina numa denominação “religiosa” que se coloca abaixo da Pátria etc. –; trabalha para suprir suas necessidades, sem recorrer ao auxílio do Estado; sustenta a narrativa excepcionalista americana; e por aí vai) ou bem ser um monstro, um bad guy, um loser, um sujeito abaixo da crítica, que provavelmente recebe auxílio do Estado, dificilmente vai dizer “amém” numa “igreja” patriótica qualquer, e simplesmente ignora os rituais cívicos. Na sua versão brasileira a coisa fica um pouco mais complicada, na medida em que faz parte do neodireitismo não idolatrar o próprio país (o que já seria péssimo), mas idolatrar os EUA. Assim, o “bom cidadão” neodireitista brasileiro sonha é em tornar-se um “bom cidadão” dos EUA, fica emocionado quando vê a bandeira americana, acha que aqui todo mundo é selvagem, passa as férias em Miami quando pode, e por aí vai. Um subgrupo muito pequeno une ao seu americanismo entusiástico o endeusamento do Exército brasileiro. São minoria. A maior parte queria mesmo era ter nascido “no lugar certo”: os EUA.
A importação da figura calvinista americana do sujeito predestinado ao inferno, do criminoso irrecuperável por definição, faz com que o neodireitista perceba a crise da segurança pública não como “violência”, nem, muitíssimo menos, como “genocídio” de quem quer que seja. Em primeiro lugar, porque a sociedade para ele é dos “cidadãos de bem”, e só estes contam. Assim, se um bandidinho mata outro bandidinho ele vai é comemorar, pois é um bandidinho a menos. Um bad guy a menos. E se um “cidadão de bem” mata um bandidinho é a mesma coisa, com a adição de perceber no ato do “cidadão de bem”, do good guy, algo heroico.
E – aí é que entra o maior problema de compreensão mútua entre os dois lados – a percepção do esquerdista da maior parte desses “cidadãos de bem” é muito simples, mais ainda porque a lei brasileira coloca tantos empecilhos financeiros e de tempo (que pode ser terceirizado para um despachante, em troca de ainda mais dinheiro) para a obtenção de uma arma e munição legais que só alguém de classe média alta para cima pode se dar ao luxo de ter arma. O “cidadão de bem” da neodireita é o “burguês opressor” da esquerda. O sujeito que necessariamente está entre o louvável (por trabalhar, não depender do governo, aleluiar aos domingos etc.) e o heroico (por matar um monstro em forma humana que o atacou, e certamente atacou, violou, feriu e matou outros “cidadãos de bem” antes, e o faria novamente se não tivesse sido parado agora) para o neodireitista é, por definição, o bandido da história para a esquerda. Para o esquerdista, o sujeito necessariamente já seria culpado por ser um baluarte da sociedade opressora, já teria em sua conta o “genocídio da população negra”, já faria com que houvesse “violência” pela sua própria existência, pelos iogurtes que compra para os filhos e pelo carrão que dirige, e ainda piora tudo, passando do malvado ao francamente monstruoso, ao chacinar um pobre negro oprimido com as próprias mãos! Ora, para o neodireitista, não se tratava de um “pobre negro”, mas de uma ameaça em pele humana, quase um animal, que teria matado o cidadão de bem se este não tivesse reagido. Já para o esquerdista a arma do “pobre negro” é irrelevante, pois, se ele assaltava, era por a sociedade malvada – gerida e mantida pelo “cidadão de bem”, ops, “burguês opressor” – o ter forçado a isso.
Assim, a visão coletivista impede a percepção de um incidente de resposta armada como um confronto entre dois seres humanos, pois o vê exclusivamente como um confronto de classe, em que há uma classe certa independentemente do que faça e uma classe culpada independentemente do que faça. O problema, assim, torna-se estatístico: um problema de “violência”, causado por fatores estruturais e que só pode ser abordado a partir de ações estruturais. É por isso que a esquerda, para irritação da neodireita, aponta o ensino público, a distribuição de renda, a iluminação das ruas, a doação de casas e diversas outras medidas coletivas como a única solução para a “violência”. Esta acabaria, segundo a esquerda, quando os problemas sociais houvessem sido resolvidos e fôssemos uma gigantesca Escandinávia (ou Cuba, dependendo do grau de esquerdismo do sujeito). Até lá ela estaria presente, causando o genocídio da população oprimida, negra e pobre. Afinal, ela é toda fruto da luta de classes, e só pode ser resolvida por meio da luta de classes. Para o esquerdista mais radical, o ladrão que mata um cidadão de bem é quem agiu heroicamente!

Já a visão neodireitista impede, por outro lado, a percepção do ladrão como um ser humano. Ele é um monstro, ele é o estupro, o assassinato, o roubo andando por aí com duas pernas porque ninguém ainda conseguiu “neutralizá-lo”. Não é uma pessoa, é uma ameaça pública. Daí o apoio entusiástico da neodireita à prisão perpétua e à pena de morte, achando excelentes medidas como as tomadas em alguns estados da metrópole (nos EUA o Direito Penal é estadual, não federal), em que o terceiro roubo de galinha leva à prisão perpétua. Como para esta vertente ideológica toda questão é individual – ao contrário do que ocorre com os esquerdistas –, o problema social percebido é o da criminalidade, que consistiria em “maus sujeitos” (na verdade, bad guys; não há tradução que mantenha todas as denotações do termo americano) vitimando os good guys, os “cidadãos de bem”, por meio do roubo à mão armada, estupro, assassinato etc. Como já observei, o número de vítimas anuais de homicídio acaba sendo, neste ponto de vista, algo útil para o discurso da neodireita, mas, no fundo, tido por esta como tremendamente inflado por contar bandidicídios como homicídios, coisas que para a nova direita são opostas. A resposta a este problema, então, claro, como sempre, seria fundamentalmente individual: a resposta armada do cidadão de bem contra o bad guy, fazendo com que a criminalidade talvez até acabe aos poucos por falta de criminosos (abatidos em combate por outros criminosos e por heroicos cidadãos de bem). Se ela acabar ou não, todavia, é para o neodireitista algo perfeitamente irrelevante, pois não se trataria de um problema social, sim de problemas individuais (crimes individuais, cometidos por bad guys contra good guys) que se somam e devem ser respondidos individualmente.
Já numa visão conservadora e cristã clássica, há, sim, um problema de criminalidade. Ele não é um problema de “violência”, na medida em que a violência não é um mal em si (prender um criminoso é um ato de violência, como dar uma bronca numa criança arteira). Um confronto entre policiais e criminosos em que os criminosos são abatidos pelos policiais é, para um conservador, um mal tristemente aceitável, a contragosto, por necessário, e é bom que os policiais – que estão a serviço da sociedade – tenham prevalecido contra os criminosos, que agem de forma antissocial. Seria, contudo, preferível se houvesse maneiras de preservar a vida de todos e ajudar os criminosos a voltar à sociedade, ou pelo menos a deixar de agir violentamente contra ela.
Da mesma forma, para o conservador – e nisto ele se aproxima um pouco do neodireitista, ainda que vindo do lado oposto – há um direito pessoal (não individual – a pessoa é o indivíduo mais seus enlaces sociais de família, trabalho, religião etc.) à legítima defesa, de que é corolário o direito ao uso do que for necessário para ela. Numa sociedade em que os criminosos dispõem de armas de fogo quando atacam os demais, é injusto que os demais cidadãos não disponham delas. Numa sociedade plenamente pacífica, todavia, seria aceitável que houvesse restrições, desde que não afetassem negativamente parte da cultura local como, por exemplo, o tiro ao alvo ou a caça.
Quanto aos efeitos buscados pela ação de liberar o porte de armas, teremos igualmente três visões díspares e contraditórias. Para o esquerdista, fazê-lo indubitavelmente aumentaria a “violência”, mais ainda quando percebida em seu aspecto (para ele) mais importante, o de classe. Afinal, uma arma é algo caro, e a liberação do porte fará com que mais “brancos gordos de camisa amarela” (como um jornalista de esquerda se referiu aos manifestantes de domingo passado) assassinem os pretos pobres que por culpa deles mesmos os estavam assaltando, aumentando assim ainda mais o “genocídio do povo negro”, que seria o problema real de “violência”. Para o direitista, por outro lado, finalmente a criminalidade estaria sendo combatida, pois a única coisa que para um mau sujeito com uma arma é um bom sujeito com uma arma, ou seja, os “cidadãos de bem” tornar-se-iam forças auxiliares da polícia, fazendo com que o embate entre bonzinhos e malvados, entre good guys e bad guys, pudesse virar em favor dos bons.
Já para o conservador, com os dois pés firmemente plantados no chão, é evidente que tal medida há de diminuir a criminalidade violenta, a partir de um momento ainda muito distante (e talvez inalcançável, ao menos até serem drasticamente reduzidas as exigências burocráticas e monetárias – o registro de uma arma custa mais que um salário mínimo – que impedem as classes média e baixa de possuir uma arma de fogo legal) em que um criminoso possa presumir que a chance de ser interceptado por um cidadão armado ou de tentar assaltar alguém que possa responder-lhe a bala seja grande o suficiente para não valer o risco. Neste caso, então, o que fatalmente há de acontecer é um drástico e proporcional aumento das modalidades de crime em que o confronto é evitado: o furto qualificado (arrombamento de casas quando o morador não está lá), o tráfico de drogas, o estelionato… Ou seja, o que se terá será um bem duplo: uma migração da criminalidade para modalidades em que há menor chance de haver confronto, logo perda de vida de qualquer um dos lados (pois qualquer vida humana é valiosa), e o respeito por parte do Estado ao que é um direito natural de qualquer pessoa: defender-se justa e proporcionalmente de ataques injustos.
Para isso, contudo, seria necessário que – para horror da esquerda e, numa certa medida, da neodireita, que veria nisso o perigo de os bad guys serem armados junto com os good guys – o respeito estatal direito à propriedade e porte de armas de fogo seja drasticamente aumentado e desburocratizado, preferencialmente de maneira total. Não deveria haver maior controle estatal de armas de fogo que de cordas (com que se pode enforcar ou estrangular a si mesmo e a outrem) ou facas de churrasco ou açougue. Ferramentas devem ser livres, mas seu uso, evidentemente, deve respeitar os estritos limites legais. Alguém que mate, sem ser em legítima defesa própria e de terceiros, proporcional e cuidadosa, uma outra pessoa usando seja corda, faca, gases de escapamento, arma de fogo, atropelamento, queda de grande altura, ou o que for, deve ser punido e forçado a compensar a família de sua vítima de acordo com a sua própria capacidade e renda, não a da vítima. Enquanto a legislação restringe na prática o direito de propriedade de armas de fogo a uma pequena elite que pode pagar toda a kafkiana documentação exigida, está sendo restringido odiosamente o direito à legítima defesa proporcional. E, pior ainda, criando duas classes de cidadãos, os que podem se defender e os que não podem. Para a neodireita está bom, porque os critérios pelos quais o Estado se recusa a reconhecer o direito natural dos mais pobres casam bem com suas definições de “cidadão de bem”; emprego com carteira assinada, renda relativamente alta, exames médicos em dia, ter feito um curso caro, não ter antecedentes criminais etc. Já para um conservador isso é nada mais nada menos que a negação pelo Estado de reconhecer um direito natural da maior parte da população. Os moradores de um prédio, abrigados em seus apartamentos, podem se defender; o porteiro, exposto na portaria, não. Isto é uma injustiça que brada aos Céus!
Espero que nossos governantes percebam a realidade da situação e deixem de lado as pseudossoluções ideológicas que vêm tentando, e que o bom senso conservador brasileiro acabe levando o dia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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