domingo, 28 de janeiro de 2024

Em defesa dos ‘paulistes safades’

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Precisamos cancelar a cultura do cancelamento antes que ela cancele o bom senso. Alexandre Borges para a Crusoé:


Diz o Ministério da Saúde, comandado por uma socióloga, que mãe é “pessoa que pariu”. O programa de distribuição de absorventes é para “pessoas que menstruam”. Para a ministra-irmã de Marielle Franco, os desabrigados das enchentes sofrem de “racismo ambiental” e, repetindo seu colega Silvio Almeida, o Brasil sofre de “racismo estrutural”.

Em setembro do ano passado, a ministra-irmã de Marielle pegou um avião da FAB para ver a final da Copa do Brasil no estádio do Morumbi. Eu, que também sou flamenguista, mas não sou ministro, vi pela TV nosso time perder para o São Paulo. Quando vieram as cobranças sobre a carteirada, a ministra-irmã de Marielle disse que as críticas “configuraram violência política de gênero e raça”.

Se entendi bem, a ministra da “igualdade racial” não acredita que as raças sejam realmente iguais, já que os autodeclarados representantes de uma delas devem estar blindados de críticas ou questionamentos, mesmo ocupando cargo público no primeiro escalão do governo federal e sendo vítimas da terrível coincidência de ir trabalhar num estádio de futebol justo quando seu time do coração jogava uma final de campeonato.

Uma assessora do ministério, que atende pelo brasileiríssimo nome de Marcelle Decothé e que também pegou carona no luxuoso jatinho da Aeronáutica que levou a ministra-irmã, publicou em seu Instagram, sobre os torcedores do time adversário: “torcida branca que não canta, descendente de europeu safade (sic)… Pior tudo de pauliste (sic)”.

Decothé usou linguagem neutra, inclusiva, woke, politicamente correta, para fazer um ataque contra dezenas de milhares de pessoas que, ao menos, pagaram para ver o jogo que ela via de graça. A assessora ganhava R$ 17,1 mil por mês de salário, mas após suas postagens neutras e inclusivas vazarem na internet, a canceladora foi cancelada.

A (ex) assessora foi exonerada porque “as manifestações públicas da servidora em suas redes estão em evidente desacordo com as políticas e objetivos do MIR”, disse o ministério em nota. Criticar e até demitir a assessora, aprendemos, não “configura violência política de gênero e raça”, só de ministro para cima. Decothé é mulher e negra como a ministra-irmã, mas não tem a mesma proteção estrutural. Neste caso, as estruturas aparentemente ajudaram.

O Brasil, claro, não inventou nada disso, nem mesmo o nome da cultura woke. O termo, vejam vocês, vem de um movimento incorporado ao Partido Republicano americano, criado durante a campanha abolicionista que dividia o país em meados do século XIX e que deu a plataforma e a legenda para que Abraham Lincoln chegasse à presidência, em 1860. Os wide awakes, os jovens “bem despertos”, serviram como militantes e seguranças da campanha vitoriosa de Lincoln, lembrando uma milícia paramilitar.

O termo woke foi sendo usado em contextos políticos de maneira esparsa até o final dos anos 2000, quando a cantora Erykah Badu lançou o hit Master Teacher, que trazia o bordão “I stay woke” (“eu fico acordada”), ainda sem qualquer conotação política. Com o tempo, stay woke passou a significar também “ficar vigilante” e “não alienado”. Aos poucos, a gíria foi sendo incorporada à cultura popular e a mensagens engajadas nas redes sociais. A própria Erykah Badu postou a hashtag #StayWoke num contexto político e, ao longo da década de 2010, woke se firmou como o termo que resumia o novo movimento de ativismo virtual da Geração Z, dos nascidos entre 1990 e 2010, também conhecidos como iGen.

O ativismo woke, mesmo ligado à extrema-esquerda na origem, causa horror a muitos esquerdistas com raízes marxistas-leninistas mais tradicionais, que ao menos tinham respostas (erradas) para oferecer às grandes questões humanas. A história, para eles, poderia ser racionalmente entendida como uma luta de classes, que colocava em lados opostos os donos dos meios de produção e os trabalhadores explorados. Abolindo a propriedade privada e passando por uma ditadura do proletariado, teríamos o “paraíso na Terra” e uma sociedade comunista, solidária, igualitária e justa.

A crise do pensamento tradicional de esquerda começa em meados do século XX. Em 1956, o Discurso Secreto de Nikita Kruschev, denunciando os horrores do stalinismo, caiu como uma bomba no colo da intelectualidade ocidental. Em 1973, Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, fez a mais contundente e devastadora revelação sobre os campos de concentração soviéticos, deixando parte dos comunistas que ainda resistiam a acreditar no caráter genocida e demoníaco da URSS ainda mais atônitos.

Foi durante essa época que dois intelectuais com afinidades marxistas se tornaram influentes. Os franceses Michel Foucault e Jacques Derrida chacoalharam as estruturas do pensamento da esquerda, oferecendo duas novas estradas para serem percorridas pelas almas que abandonaram o comunismo soviético.

Foucault, um obcecado por “experiências-limite”, sadomasoquismo gay e violência, que criou a apologética dos desajustados, dos loucos, dos presos e dos oprimidos pela sociedade industrial. Derrida, o pai do desconstrutivismo relativista, que acreditava ter desenvolvido uma corrente filosófica apolítica que era, evidentemente, política, como ele veio a admitir no final da vida.

Ambos traziam uma nova metafísica para intelectuais atordoados pelas experiências aterrorizantes do socialismo real e que se recusaram a aderir à democracia liberal e ao “fim da história”. Com Foucault, aprenderam a estetizar a violência e a insanidade, como na defesa da sangrenta e retrógrada revolução iraniana dos aiatolás. Com Derrida, passaram a desconfiar do “logocentrismo” e de todo tipo de realidade que possa ser “traduzida em linguagem”.

O que sobrava dos escombros do comunismo soviético? Um certo misticismo baseado num “sentimento de justiça” que era impossível de definir ou alcançar, por definição. Nada era real, apenas as estruturas de poder, e o papel do ativista seria estar ao lado dos oprimidos em qualquer situação. Como disse G. K. Chesterton, “a marca do mundo moderno não é ser cético, é ser dogmático sem saber”.

O vazio moral da intelectualidade ocidental das últimas décadas tem origem na divisão da cristandade no século XVI, que demoliu os mil anos de construção do Ocidente como um terremoto. Sem as bases cristãs originais e um vale-tudo espiritual que rejeitava violentamente os tradicionais cânones religiosos, um sem número de religiões e seitas surgiram e, para o ateísmo secularista e a “religião do estado”, foi apenas um pequeno passo, com os resultados conhecidos.

Até hoje, filósofos se debatem para definir o que levou o mundo para o estágio atual, se o secularismo que expulsou Deus e entregou o mundo para o Estado, ou um irracionalismo de ditadores do século XX que se recusaram a aceitar as bases do iluminismo e voltaram ao obscurantismo medieval.

Há farta bibliografia sobre este debate que sai do escopo deste texto, mas não há dúvida que as bases iluministas e racionalistas não são os sustentáculos epistemológicos e morais do pós-modernismo woke, que tem uma vaga noção do que quer destruir, mas não faz a menor ideia do que colocar no lugar.

Em 2018, a cicloativista Helen Pidd publicou um artigo no jornal britânico The Guardian sobre um assunto sério, a morte de ciclistas em Londres. No texto, ela afirma que “estradas projetadas por homens estão matando mulheres”. Alguém em sã consciência acredita que os engenheiros que desenharam as rodovias ingleses tinham em mente um plano para assassinar mulheres? Não importa. É tudo ativismo, é tudo linguagem, é tudo woke.

Há duas maneiras de reagir a esse tipo de insanidade. Em 2022, um desabamento em obras do metrô na Marginal Tietê, em São Paulo, provocou uma polêmica inusitada. O deputado Eduardo Bolsonaro foi às redes sociais e publicou um vídeo da construtora responsável que dizia que havia prioridade na contratação de mulheres.

O filho zero três, com a delicadeza que lhe é peculiar, comentou: “Por qual motivo [contratar sempre mulheres]? Homem é pior engenheiro? (…) Quando a meritocracia dá espaço para uma ideologia sem comprovação científica o resultado não costuma ser o melhor”. Uma resposta boçal e estúpida, quase um woke de direita.

Outra maneira, mais trabalhosa, longa e incerta, é tentar retomar a sanidade no debate político, sequestrado por uma geração que nasceu com celular na mão e tem questões sérias a resolver em relação ao convívio humano real e analógico, no entendimento do mundo não intermediado por telas. Seja qual for a sua escolha, é melhor agir logo. Em breve, pode não sobrar nenhum pauliste safade para contar a história.

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