domingo, 28 de janeiro de 2024

Conflito inevitável

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


A arrogância de artistas como Claudia Raia torna quase impossível os mecanismos de incentivo à cultura frente ao cidadão comum. Josias Teófilo para a Crusoé:


Semana passada, a atriz Claudia Raia disse que os críticos da Lei Rouanet são analfabetos. Ela respondia críticas feitas à captação de 5 milhões de reais para a peça Tarcila, a Brasileira, um musical estreado no Teatro Santander em São Paulo.

Chama a atenção não só a fala bastante dura (logo atenuada pelo marido de Claudia Raia, que acrescentou “são analfabetos funcionais”) mas também a postura arrogante da atriz. Nos últimos anos tenho defendido em rede social, em entrevistas e artigos a Lei Rouanet. Enquanto via o vídeo daquela entrevista, porém, eu fiquei contra a Lei Rouanet. A arrogância produz um efeito imediato de rejeição.

Primeiro: não é fácil fazer o cidadão comum entender que o dinheiro de isenção fiscal (dinheiro que viria a ser público) deve ser destinado a um musical ou qualquer outra obra de arte. Simplesmente porque a arte não serve para nenhum fim imediato, prático. A beleza da arte é exatamente essa: não servir para nada especificamente. Mas essa é também sua fragilidade. Frente a essa circunstância, que é realmente complexa, os artistas e produtores deveriam ter uma postura aberta, de acolher as críticas e respondê-las na medida do possível, de preferência sem desqualificar aqueles que criticam.

Definitivamente não é isso que acontece no meio artístico. Existe ainda um agravante: no meio artístico no Brasil há uma hegemonia da esquerda. E os artistas não são nem um pouco discretos em suas posições políticas – usam inclusive o discurso de suas obras para afirmarem suas posições. Isso produz uma rejeição muito grande no público em geral, até mesmo na parcela da população que apoia a esquerda – ninguém sai de casa para ver uma propaganda na tela do cinema.

E mais: existe uma espiral de silêncio na classe artística. Acontece nesse meio um pouco como na sociedade em geral: a esquerda parece maior do que é por ser muito barulhenta e histérica. Os artistas que não são da esquerda tendem a ser discretos para não serem perseguidos – e quem não é do meio não sabe nem que eles existem. Mas o efeito desse aparente consenso em favor da esquerda é uma deslegitimação dos mecanismos de fomento à artes. Para piorar, boa parte da produção artística da esquerda tem por objetivo chocar a chamada sociedade tradicional, os valores conservadores, a religião, e por aí vai. Mais um ponto de atrito inevitável.

Por outro lado, existe agora toda uma indústria da reação a esse tipo de coisa. Se a esquerda ataca constantemente os valores conservadores, uma parcela da sociedade quer preservar esses valores, como o casamento, a família etc. Aí surgem influenciadores que prometem preservar esses valores, eles dão cursos e fazem produtos digitais e constantemente incorrem em moralismo e normatividade. O problema é que a arte não pode ser tratada com moralismo: quando vemos um crime retratado no filme, não significa que o autor do filme concorda com o crime.

Mas a reação à extrema politização das obras de arte acabou virando uma espécie de novo moralismo que ignora as nuances da produção artística – por exemplo, que mostrar um crime não é necessariamente endossá-lo. Por um lado, os artistas querem chocar a chamada sociedade tradicional, por outro há quem se coloque como defensor desses valores e quer vender produtos online ou quer o proveito político disso – seja em votos, em apoio popular ou apenas em curtidas em rede social. Virou um duelo de lacração.

No meio disso tudo, não é fácil defender as leis de incentivo e o fomento às artes. Os artistas não ajudam nem um pouco desqualificando os críticos como “analfabetos”. Ninguém é obrigado a defender os mecanismo de incentivo à cultura e sua função pública não é clara para a maioria das pessoas. Na verdade, é difícil justificar boa parte do aparato do Estado: tente convencer o cidadão comum da importância do auxílio terno e do auxílio moradia para deputados, por exemplo. Mas a cultura fica numa situação de maior fragilidade por causa da politização e da lacração.
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