BLOG ORLANDO TAMBOSI
"A Religião Woke", do especialista francês em epistemologia histórica e metodologia da história das ciências Jean-François Braunstein, é um ensaio que esclarece a origem, motivação e finalidade do movimento de fratura social e política que marca a agenda mediática dos nossos dias: a cultura woke. No livro, que agora chega a Portugal com a chancela da Guerra e Paz, Braunstein afirma, apoiado em teses, conferências e ensaios, que o movimento não é, ao contrário do que se pensa, do foro da racionalidade política, mas do foro religioso. Esta é, acrescenta, uma "religião sem perdão" que tem como destruir a liberdade em nome da "justiça social". Uma obra essencial para debater e combater o pensamento único. O SAPO24 publica um excerto do livro:
INTRODUÇÃO
Os
homens estão grávidos», «as mulheres têm pénis», «as mulheres trans
são mulheres», «todos os brancos são racistas», «todos os negros são
vítimas», «se afirmares que não és racista, isso significa que és»,
«a biologia é virilista», «a matemática é racista», «Churchill é
racista», «Schœlcher é esclavagista», etc. Este tipo de proclamações
surpreende pela sua faceta absurda. Todavia, são elas que formam os
enunciados de base do pensamento woke, aquele pensamento «iluminado» que
tende a impor-se em todas as sociedades ocidentais. Assenta em teorias
como a «teoria de género», a «teoria crítica da raça» ou a «teoria
interseccional», que se tornaram verdades puras nas nossas
universidades. Os wokes explicam que o género «se escolhe» e que tudo o
que conta é a nossa consciência de sermos homem ou mulher ou qualquer
outra coisa que seja. A raça volta a ser um determinante essencial das
nossas existências em sociedade: os brancos serão, por definição,
racistas, e os «racizados» jamais o poderão ser. Quanto à
interseccionalidade, trata-se de uma «ferramenta» para potenciar todas
as identidades vitimárias e apelar à luta contra o responsável por
estas discriminações. Responsável esse que já está mais do que
encontrado: é o homem branco ocidental heterossexual, por definição
sexista, racista e colonialista, sendo o «perfeito bode expiatório»
(1). Aqueles que não aceitam estas teorias woke são denunciados nas
redes sociais e, sempre que tal seja possível, são despedidos do seu
emprego, na universidade ou outro qualquer lugar. Os meios de
comunicação e um grande número de políticos aderem a estas teorias
com entusiasmo, e algo que, não há muito, era apenas uma curiosidade
americana tornou-se, com uma velocidade extraordinária, o discurso
oficial das nossas elites.
Poderíamos
sentir a tentação de nos tranquilizarmos, dizendo que isto afecta
apenas as faculdades de Letras e de Ciências Humanas, que já passámos
por experiências semelhantes. Contudo, hoje em dia, é nas faculdades
de Ciências e de Medicina que se opera a ofensiva woke: as próprias
ciências puras e duras são acusadas de ser «racistas» e «virilistas».
É igualmente preciso tomar consciência de que esta vaga woke já não
fica só dentro das portas das universidades. Através do ensino do
género e da teoria crítica da raça, está cada vez mais presente no
ensino primário e secundário, tanto nos Estados Unidos como em
França. Os activistas woke, transformados em professores, são
militantes entusiastas, cujo fito é formar a humanidade nova que é
pregada pela religião woke: ensinam às crianças, desde a escola
primária e sem o consentimento dos pais, que o género «se escolhe» e
que nada tem que ver com o corpo. Ensinam aos alunos brancos que são
necessariamente racistas e aos alunos «racizados» que, do mesmo modo,
mecanicamente, são vítimas.
Contudo,
o wokismo não se restringe ao mundo da educação. Como referiu muito
acertadamente o jornalista norte-americano Andrew Sullivan, «agora
vivemos todos no campus» (2). As elites ocidentais, que se tornaram
militantes durante os seus estudos, difundem agora estas ideias nas
redes sociais, nos meios de comunicação, no meio editorial e nas
indústrias da cultura. Nas grandes empresas, desenvolve-se um
capitalismo woke que aplica políticas de «Diversidade, Equidade,
Inclusão», isto é, políticas de discriminação positiva que vão
contra todos os princípios meritocráticos (3). As GAFAM, como a
Netflix e as redes sociais, fazem uma promoção maciça de um
pensamento politicamente correcto. Os wokes estão também cada vez mais
presentes no mundo político com, por exemplo, uma Sandrine Rousseau
que faz o elogio das bruxas contra os engenheiros: «O mundo está
repleto de demasiada racionalidade, de decisões tomadas por
engenheiros. Prefiro mulheres que lêem a sorte a homens que constroem
reactores nucleares.» (4)
Os
que há pouco ainda acreditavam que este entusiasmo se limita- ria aos
países anglo-saxónicos estão a perder o seu tempo. Deveriam ter-se
lembrado da lei estabelecida por Bruno, em As Partículas Elementares de
Michel Houellebecq, a propósito do pai, cirurgião plástico a quem
«tinha passado completamente ao lado o mercado dos seios de silicone»:
«Para ele, era uma moda passageira que não passaria do mercado
americano. Era, evidentemente, um disparate. Não havia um só exemplo
de alguma moda nascida nos Estados Unidos que não acabasse por inundar a
Europa Ocidental uns anos mais tarde; nem um só.» (5)
Diante
desta vaga de irracionalidade que arrasta tudo à sua passagem, ficamos
tentados a nos limitarmos a «rir» ou «chorar», mas é conveniente,
segundo o imperativo de Espinosa, esforçarmo-nos por «compreender» o
que está a acontecer diante dos nossos olhos (6). Isto parece-me tanto
mais urgente porque estas teorias estão constantemente a ganhar
terreno, ainda que o seu patente carácter absurdo as pudesse ter
desqualificado há muito tempo. Já não basta exaltarmo-nos, sendo pelo
contrário necessário tentar compreender as razões do seu êxito. O
mais espantoso não é, com efeito, o facto de meia dúzia de
entusiastas professar teorias extravagantes, é o facto de estas
encontrarem um enorme eco e se propagarem a uma velocidade exponencial.
Podemos, infelizmente, pressupor que estas ideias não estão destinadas
a desaparecer tão cedo.
Loucuras epidémicas?
Dois
dos críticos mais incisivos da «cultura» woke deram aos seus livros
títulos que a designam como uma espécie de loucura. O ensaísta
inglês Douglas Murray acusou-a, com muito sentido de humor, de «loucura
das multidões» (7). O seu livro começa com uma observação, que é
também um apelo ao sobressalto: «Vivemos numa época de grande
despropósito colectivo. Em público e em privado, na internet, na vida
em geral, o comportamento das pessoas é cada vez mais irracional,
febril, gregário e simplesmente desagradável [...]. Este
despropósito, esta loucura colectiva, é um fenómeno que nos submerge e
de que devemos tentar extirpar-nos.» (8) De igual modo, Gad Saad,
professor na Universidade Concordia, em Montréal, diagnostica que o
wokismo é uma espécie de «parasita» que atinge as mentes: «O Ocidente
sofre actualmente de uma pandemia terrivelmente devastadora, uma doença
colectiva que destrói a capacidade de as pessoas pensarem
racionalmente.» (9) Saad atribui aliás um nome humorístico a esta nova
doença. A «síndrome parasitária da avestruz» (OPS, ostrich parasitic
syndrome) é «uma doença do pensamento desordenado que priva as
pessoas da sua capacidade de reconhecer verdades tão evidentes como a
existência do Sol» (10). Saad diagnostica, com efeito, uma perda total
do sentido de realidade nos wokes, que multiplicam proposições
contraintuitivas. Qualificar o wokismo de «loucura» permite
caracterizá-lo bastante bem, mas não basta para o explicar. Todas as
tentativas efectuadas desde o século XIX para explicar os «contágios»
de ideias delirantes, quer sejam qualificadas de «loucuras colectivas»
ou de «contágio mental», nunca aliás produziram resultados
satisfatórios.
Estas
hipóteses não têm em consideração o facto mais espantoso, isto é,
que as teorias woke se desenvolveram inicialmente no seio das
universidades. Como se explica que professores universitários,
teoricamente instruídos e dotados de espírito crítico, sejam os
primeiros a entusiasmar-se com a ideia de um género desassociado do
corpo ou a reabilitar a odiosa noção de raça? Podemos, evidentemente,
recordar a profunda observação de George Orwell: «É preciso ser
intelectual para escrever tais coisas: uma pessoa comum não poderia
jamais alcançar uma tal palermice.» (11) Existe, por certo, uma
verdadeira satisfação em professar ideias que vão contra o senso
comum e que dão um ar de profundidade e chique elitista ao discurso de
uma pessoa. É muito empolgante proclamarmo-nos detentores de uma
verdade totalmente inaudita e, como fez notar, a propósito de outro
assunto, o sempre sagaz filósofo inglês John Gray, «as ideias mais
loucas são muito frequentemente as mais influentes» (12).
Contudo,
a ideologia woke não é apenas um snobismo passageiro e sem
consequências. Defrontamo-nos com militantes que se entusiasmam pela
sua causa. Não são professores universitários, mas sim combatentes ao
serviço de uma ideologia que dá sentido à sua vida. Quem já tenha
tido a ocasião de tentar debater com wokes compreende bem que tem pela
frente, no mínimo, entusiastas e, em muitos casos, aquilo a que Kant
chamava de «visionários». Basta consultar um dos inúmeros vídeos que
relatam a tomada de poder dos wokes na Universidade de Evergreen, nos
Estados Unidos, para compreender que não é concebível argumentar com
estes jovens militantes, bastante comparáveis aos guardas vermelhos
chineses durante a Revolução Cultural. Como resume muito brutalmente
um dos agressores de Bret Weinstein, o único professor da Universidade
de Evergreen, nos Estados Unidos, que teve a coragem de resistir a estes
militantes e que tentava chamá-los à razão: «Pára de argumentar, a
lógica é racista.» (13) Esta afirmação resume o radicalismo de um
movimento inacessível à razão.
Um efeito de bumerangue da French Theory?
Outra
hipótese para explicar o advento do pensamento woke consistiria em ver
nele o resultado indirecto da importação, nos Estados Unidos, dos
autores da French Theory, principalmente Foucault, Derrida e Lyotard. Os
pensadores e militantes woke teriam recuperado estas ideias, que,
depois de se terem difundido nos campus americanos, estariam agora a
regressar, como num efeito de bumerangue. É o ponto de vista de
adversários dos wokes, como James Lindsay e Helen Pluckrose, autores de
um livro de referência sobre o assunto, que responsabilizam os autores
franceses por estas ideias que visam destruir a razão. (14) Pluckrose
estima, inclusivamente, que estas ameaçam, não apenas a razão, mas
também «a democracia liberal e a própria modernidade». A sua
constatação é definitiva: «Os intelectuais franceses arruinaram o
Ocidente.» (15) Brice Couturier faz a mesma análise, no seu estudo
global da geração woke. A French Theory estaria a agir como um
«vírus» que teria sofrido mutações e se teria transformado numa
«verdadeira força política que ataca a liberdade de expressão». Este
vírus ter-se-ia «disseminado a uma grande velocidade, depois de se ter
evadido do mundo, relativamente fechado, das universidades». E,
actualmente, a French Theory, «convertida em loucura nos campus
norte-americanos, regressa como um bumerangue devastador, sob a forma de
estudos “pós-coloniais”, de “interseccionalidade”, de “estudos de
género”, de “racialização” e de “indigenismo”» (16). Também do lado
dos partidários dos wokes, Rama Yade, que admira o seu «nobre combate,
de justiça e reivindicação da igualdade», regozija-se com eles com um
surpreendente chauvinismo: «Este movimento, que é denunciado como uma
importação americana, vem na verdade de França, da French Theory,
que, com efeito, se disseminou nas universidades americanas: de Lacan a
Foucault, foram pensadores franceses a inspirar o movimento woke! Como
franceses, devemos estar orgulhosos!» (17)
Permita-se
que sejamos mais reservados quanto a esta origem francesa. Parece,
antes de mais, que evocar uma tal filiação é sobretudo a marca de uma
certa húbris dos intelectuais franceses, que gostariam de acreditar
que tudo o que existe no mundo intelectual, ainda hoje, é o resultado
das «teorias francesas» dos anos 1960. O facto de este pensamento woke
ser uma verdadeira catástrofe não é perturbador, é sem dúvida mais
uma razão para admirar a força das ideias francesas, capazes de mudar o
mundo, mesmo que para pior. Há também, atrás desta genealogia
francesa, uma verdadeira nostalgia da época em que o pensamento
francês dava cartas. Dito isto, e mesmo se descartarmos, por ora, a
questão de saber se os principais pensadores woke leram e citam os
autores franceses dos anos 1960, o que não é, de todo, evidente,
parece-nos bastante difícil aproximar o wokismo da French Theory (18).
Antes
de mais porque os filósofos franceses em questão são teóricos
puros, que desenvolvem análises extremamente sofisticadas, mas que não
se preocupam nada em agir no mundo e concedem um espaço apenas escasso
à acção política. Mantiveram claramente a distância do
«comprometimento» de Sartre. Recordemos a metáfora de Foucault da
«caixa de ferramentas». Com os meus livros, dizia Foucault, ofereço aos
meus leitores, se eles se dispuserem a abri-los, «pequenas caixas de
ferramentas» nas quais poderão «servir-se de certa frase, certa ideia,
certa análise como usam uma chave de fendas ou um aparafusador para
curto-circuitar, desqualificar, quebrar os sistemas de poder» (19). Ou
seja, ele não indica o seu modo de utilização e evitará
«envolver-se» em acções políticas no sentido tradicional. Neste
sentido, como reconhecem Lindsay e Pluckrose, estes autores são mais
«descritivos» do que «prescritivos». Este afastamento da política
caracteriza a globalidade dos autores franceses dos anos 1960. Estamos
por isso longe do pensamento woke, eminentemente político e mesmo
militante. Lindsay e Pluckrose têm consciência deste problema e, para
tentar manter o elo que estabeleceram entre o wokismo e a French Theory,
descrevem, depois de uma era de teoria pura, uma outra época do
pensamento woke, nos anos 2000 e 2010, que qualificam de
«pós-modernismo aplicado». Esta expressão parece contraditória, o
pós-modernismo era, precisamente, em Lyotard e nos outros
pós-modernos, uma constatação do fim das grandes narrativas do
progresso e da emancipação e, por conseguinte, de uma suspensão da
acção política.
Uma
outra diferença, ou mais exactamente uma oposição essencial, entre
os wokes e autores como Foucault ou Derrida, reside evidentemente na
questão da identidade. Os pensadores woke são ultra-identitários que
pretendem combater em nome desta ou daquela comunidade oprimida: os
negros, os trans, os gays, etc. Para eles, trata-se apenas de reforçar
estas identidades vitimárias, ou potencializá-las com recurso a
teorias inter-seccionais. A noção de identidade está no centro da sua
política e nunca é colocada em causa. Ora, os filósofos da French
Theory são, pelo contrário, pensadores que fazem por perturbar, ou
mesmo apagar, as noções de identidade e de indivíduo. Foucault não
aceitava que lhe fosse colocada a questão da unidade da sua obra: «Não
me perguntem quem sou e não me digam para me manter igual: é uma
moral de estado civil; é esta que rege os nossos documentos. Que nos
conserve a liberdade quando o assunto é a escrita.» (20) Se nos
interessarmos pela French Theory, torna-se bastante claro que dela
estão ausentes o «subjectivismo» e a «política das identidades». Como
observa muito bem Bruno Chaouat, «é aliás a imagem de marca da “French
Theory” o facto de ter tentado abolir o indivíduo. Herdeiros de
Mallarmé e do seu “desaparecimento elocutório do poeta”, o pensamento
francês, de Maurice Blanchot a Jacques Derrida, passando por Foucault, e
mesmo o Nouveau Roman, trabalharam no sentido de uma execução do
autor [...]. Bem ao contrário do subjectivismo racial que domina hoje
em dia a cultura universitária dos dois lados do Atlântico» (21). É,
no mínimo, curioso afirmar que um pensamento que recusa a própria
noção de identidade está na origem de uma política identitária.
Uma
terceira diferença essencial tem que ver com os estilos de pensamento
totalmente opostos dos militantes woke e destes intelectuais franceses. O
pensamento sempre irónico e interrogativo de uns dá-se mal com a boa
consciência satisfeita dos outros. A seriedade e a ausência de
questionamento de si mesmos caracterizam o pensamento woke. A falta
total de sentido de humor é sem dúvida a característica mais
distintiva do pensamento woke, e também a mais enregelante: é aqui que
mais bem se percepciona o seu carácter totalitário. Nos autores da
French Theory, observa-se, pelo contrário, um constante questionamento
de si mesmos e de normas às quais nunca aderem completamente. É este
«jogo com as normas» que os caracteriza. Como dizia Foucault, «há
sempre em nós alguma coisa que luta contra outra coisa em nós» (22).
É absoluta a diferença entre indivíduos que jogam com as normas e
militantes fanáticos que aderem a uma norma predeterminada sem jamais a
questionar. De um lado, filósofos, curiosos e móveis; do outro,
militantes e pregadores.
«Acredito porque é absurdo»
É
bastante surpreendente e aflitivo ver certos colegas, amigos de longa
data, eruditos e respeitados, a aderir de um dia para o outro às
utopias woke e, consequentemente, a banir tudo o que possa fazer lembrar
o mundo antigo. Como pode um professor universitário que dedicou a
vida aos estudos gregos propor acabar com as Letras Clássicas por serem
brancas e virilistas? Como é possível que um matemático decida
abolir o ensino da sua disciplina por ser alegadamente discriminatória?
Como é possível que um biólogo defenda que a biologia não é uma
ciência? Como é possível que estas pessoas inteligentes acreditem em
ideias tão absurdas? Como é possível não aceitarem sequer debater e
responder a qual- quer crítica mediante a «anulação» dos seus
interlocutores?
É
o carácter brutal e irracional destas escolhas que permite entrever
uma outra explicação. Ocorreu-me subitamente que, se estes professores
universitários aderem a tais teorias, não é apesar de serem
absurdas, mas precisamente porque são absurdas. A melhor explicação
para o seu comportamento parece encontrar-se resumida na célebre
fórmula atribuída a Tertuliano, Pai da Igreja do século III: credo
quia absurdum, «acredito porque é absurdo». É, na verdade, uma
fórmula similar à utilizada por Tertuliano, no seu livro sobre a
«Carne de Cristo», De Carne Christi. Ao gnóstico Marcião, que
considerava impossível, e mesmo indigno, que Cristo, «o filho de Deus»,
tivesse realmente podido encarnar, nascer e, sobretudo, morrer,
Tertuliano respondia: «O Filho de Deus está morto: é credível porque
é absurdo e, depois de enterrado, Ele ressuscitou: é certo porque é
impossível.» (23) É muito chocante que Cristo, o filho de Deus, tenha
escolhido encarnar, mas, segundo Tertuliano, é precisamente este o
enigma e a glória da religião cristã. É preciso, por conseguinte,
segundo ele, dar lugar à fé, que é superior à sabedoria dos
filósofos. Tertuliano cita neste mesmo livro a famosa passagem da Carta
aos Coríntios que opõe a loucura de Deus à sabedoria do mundo: «O
que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os
sábios.» (24) A razão deve, em dado momento, abrir espaço à fé para
compreender as verdades mais profundas. A morte de Cristo é
seguramente incompreensível, e, por isso, é necessário ir mais além
da razão dos filósofos.
Se
os wokes acreditam nas suas doutrinas, é porque são absurdas, porque
apontam para verdades mais profundas, muito para lá da razão. É
aliás curioso reparar que, tratando-se de wokes, o primeiro milagre que
pregam, com a teoria de género, incide também na relação entre o
corpo e a consciência. Para eles, o que parece inexplicável não é a
encarnação de Cristo, mas sim a integração das nossas consciências
em corpos, estes corpos que, como no caso de Cristo, segundo os
marcionitas, são consi- derados impuros. Existem apenas consciências,
é esta a mensagem da teoria de género, no âmago desta nova religião.
E é justamente o seu carácter provocador que lhe confere o poder de
sedução. Por este motivo, a teoria de género não é uma categoria do
pensamento woke entre outras, mas é o seu âmago, a primeira
descoberta, que abre a via a todos os assaltos à ciência, contra a
verdade e contra a própria realidade. As outras componentes da
ideologia woke, as teorias da raça e da interseccionalidade, com, em
França, as suas variantes indigenistas ou decoloniais, são apenas
acessórios relativamente à teoria de género, que é o verdadeiro
mistério, em sentido religioso, desta nova religião.
Este
radicalismo entusiasma professores e estudantes universitários, que
têm a sensação de ter descoberto uma verdade superior, inacessível
ao homem comum. À atracção por propostas paradoxais acrescenta-se o
sentimento de fazer parte de um grupo de «eleitos» chamados a
reconstruir o mundo de acordo com a nova doutrina. Com o wokismo,
estamos assim realmente diante de uma nova religião. Deste ponto de
vista, o nosso espanto faz lembrar a angústia que sentiram os últimos
filósofos pagãos diante da ascensão da religião cristã. O melhor
exemplo dá-nos Contra os Cristãos, do filósofo Celso, no século II.
Ele espantava-se e indignava-se com as teses dos primeiros cristãos: a
sua doutrina «não assenta na razão» (25), «a sua cosmogonia é de uma
puerilidade que ultrapassa todos os limites» (26). Como é possível o
seu Deus ser abandonado e crucificado? «Pertence a um deus deixar-se
prender, deixar-se levar como um criminoso? Ainda menos conveniente é o
facto de ter sido abandonado, traído pelos seus próximos, que o
seguiam como um Messias, Filho e enviado do grande Deus.» (27) Como é
aliás possível ter ressuscitado? E porque teria descido à terra?
«Terá sido com o objectivo de perceber o que acontece entre os homens.
Mas ele não é omnisciente?» (28) Para Celso, tudo isto parecia
desprovido de sentido. O abismo que separa o nosso pensamento racional
do pensamento woke parece mais ou menos tão radical quanto o que
separava o pensamento grego da religião cristã.
Estes
pagãos cultos tinham a sensação de que o seu mundo estava prestes a
escapar-lhes, e que a sabedoria, que derivavam da filosofia grega, ia
sucumbir ao assalto das doutrinas insanas dos cristãos. A situação
actual não evoca tanto a ascensão do comunismo, amiúde referido,
quanto a emergência do cristianismo, no ocaso do mundo antigo. Os
wokes, por seu lado, acham por bem rejeitar a ciência em bloco, recusam
a linguagem comum e negam inclusivamente a existência da realidade
comum. Estamos diante de uma mudança extremamente radical: não se
trata simplesmente de uma nova ideologia, mas de uma nova crença, de
uma nova religião. Alguns autores americanos estão convencidos de que
estamos perante a «próxima religião americana» que quer «apagar toda a
memória histórica da civilização», tal como o cristianismo, tornado
religião de Estado, no século IV, quis apagar todo o «mundo
greco-romano» (29).
«O fracasso de uma profecia»
O
cariz muito intolerante da religião woke e a sua recusa em abordar
aqueles que não partilham o seu ponto de vista, a sua ausência de
transcendência, fazem que se assemelhe, mais precisamente, para já, a
uma seita de dimensão política e social. Não é um panorama muito
encoraja- dor, na medida em que é extremamente difícil combater tais
movimentos: os argumentos não têm influência nos seus membros, e a
própria realidade não basta para invalidar as suas crenças. Uma
referência muito esclarecedora para o que se passa neste momento, nas
nossas universidades e sociedades, é o célebre livro de Leon Festinger
e dois dos seus colegas, When Prophecy Fails (30). Conhecemos aquele
estudo notável de psicologia social, levado a cabo em 1954-1955, que
visava a análise do percurso de um grupo sectário que anunciava o fim
do mundo para uma data precisa. Festinger tinha tomado conhecimento,
pela imprensa, de que um grupo de crentes se reunia em torno de uma
mulher no núcleo de Chicago, Marian Keech, que anunciava que o fim do
mundo ocorreria no dia 21 de Dezembro seguinte, em 1954, na sequência
de um dilúvio. Mas Marian Keech dizia aos seus discípulos que poderiam
ser salvos e extraídos para outro planeta, num disco voador que os
viria buscar na véspera do dilúvio. Festinger decidiu então, com dois
dos seus colegas e estudantes, juntar-se ao grupo para observar as
reacções dos membros quando chegassem à conclusão de que a sua
profecia era desmentida pela realidade. Na verdade, «quando a profecia
falhou», segundo o título do livro, os membros da seita viveram
seguramente um breve momento de hesitação: sentiram o que Festinger
qualificaria de estado de «dissonância cognitiva», um estado no qual
coexistem crenças contraditórias num mesmo indivíduo. Contudo, face a
esta situação, decidiram reduzir estas tensões, adaptando as suas
crenças. Os membros da seita concluíram então que as suas orações
não tinham sido inúteis, já que tinham permitido evitar a catástrofe
final: «O plenário do pequeno grupo tinha difundido tanta luz na
noite, que Deus tinha salvado toda a gente da destruição.» (31) Os
discípulos decidiram então retomar a sua pregação numa escala ainda
maior. A seita não desapareceu de imediato, levou tempo a
desmembrar-se. A realidade, por conseguinte, não conseguiu dissipar as
ilusões deste pequeno grupo de crentes. Festinger tirou daqui uma
conclusão radical, afirmando que é impossível convencer um membro de
um tal grupo sectário: «O homem de fé é inabalável. Se o
confrontarmos com a nossa discordância, ele volta-nos as costas. Se lhe
mostrarmos factos e números, ele interroga-nos acerca da sua
proveniência. Apelamos à lógica, ele não percebe de que modo isso
lhe diz respeito.» (32) E Festinger prossegue, envolvendo o leitor no
«nós» razoável dos cientistas autores do estudo: «Sabemos todos, por
experiência, o pouco que vale tentar mudar uma convicção forte,
sobretudo se o partidário tiver dedicado uma parte da sua vida a esta
sua experiência. Conhecemos bem as múltiplas e engenhosas defesas a
que as pessoas recorrem para proteger as suas convicções, e sabemos
como se organizam para as manter intactas, através dos ataques mais
devastadores.» (33)
Podemos
temer que o mesmo aconteça com os wokes mais exaltados. É, no
entanto, preciso recordar que este estudo de Festinger inspirou a
romancista Alison Lurie a escrever um livro simultaneamente cheio de
humor e profundo, Imaginary Friends (34). Trata-se de uma recuperação
romanesca que propõe uma continuação do estudo de Festinger. Lurie
imagina que o investigador principal, o robusto professor McMann, de
nome muito viril, acaba por considerar que é ele próprio o enviado dos
extraterrestres. Afirma ter entrado em contacto com o espírito de «Ro»
do planeta «Varna» e propõe-se a assumir a orientação da seita.
Depois de tentar manipular os membros, é tomado pelos seus delírios e
acaba encerrado num hospital psiquiátrico. O jovem e ingénuo
investigador que trabalhava com ele vai então visitá-lo, mas nunca
chega a saber se McMann é realmente louco ou se está simplesmente a
fingir a loucura. É, de certa forma, o que corre o risco de acontecer
com a seita woke.
Notas de rodapé
(1)
Cf. P. Bruckner, Un coupable presque parfait. La construction du bouc
émissaire blanc, Paris, Grasset, 2020. Pascal Bruckner já tinha
pressentido esta evolução no visionário Le sanglot de l ’homme blanc.
Tiers‐Monde, culpabilité, haine de soi, Paris, Le Seuil, 1983. (Livro
intitulado em português O Remorso do Homem Branco; N. da T.)
(2) A. Sullivan, «We All Live on Campus Now», New York Intelligencer, 9 de Fevereiro de 2018.
(3)
Para os Estados Unidos, ver V. Ramaswamy, Woke, Inc.: Inside Corporate
America’s Social Justice Scam, Nova Iorque, Center Street, 2021. Para a
França, ver A. de Guigné, Le capitalisme woke. Quand l ’entreprise dit
le bien et le mal, Paris, Presses de la Cité, 2022.
(4) L. Daussy, «Sandrine Rousseau et le “féminisme inclusif ”», Charlie Hebdo, 25 de Agosto de 2021.
(5) M. Houellebecq, Les particules élémentaires, Paris, Flammarion, 1998, p. 93.
(6)
Cf. Espinosa, Tratado Político (I, § 4): «Empenhei-me a fundo para
não ridiculizar as acções dos homens, para não chorar por sua causa,
para não as detestar, mas, pelo contrário, para adquirir um
verdadeiro conhecimento sobre elas.» (Traité politique, Œuvres, t. IV,
Paris, Garnier- -Flammarion, p. 12).
(7)
D. Murray, La grande déraison. Race, genre, identité, Paris,
Éditions du Toucan/L’Artilleur, 2020. Da nossa parte, tínhamos
igualmente formulado esta hipótese em La philosophie devenue folle. Le
genre, l ’animal, la mort, Paris, Grasset, 2018.
(8) D. Murray, La grande déraison, op. cit., p. 13.
(9)
G. Saad, The Parasitic Mind. How Infectious Ideas Are Killing Common
Sense, Washington, Regnery Publishing, 2020, prefácio, p. XI.
(10) Ibid., p. XII.
(11)
G. Orwell, «Notas sobre o nacionalismo», in G. Orwell, Essais,
articles, lettres, vol. III (1943- -1945), Paris, Ivrea-Encyclopédie
des nuisances, 1998, p. 476.
(12) J. Gray, Seven Types of Atheism, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux, 2018, p. 51.
(13)
Deve consultar-se o vídeo francês que mostra como estudantes woke
assumem o controlo da Faculdade de Evergreen, em 2017, sem nenhuma
resistência dos docentes, que aceitam as humilhações que lhes são
infligidas. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=u54cA-vqLRpA. Para mais
informações sobre este assunto, cf. O. Moos, «The Great Awokening.
Réveil militant, justice sociale et religion», Études et Analyses, n.o
43, Dezembro de 2020.
(14)
H. Pluckrose, J. Lindsay, Le triomphe des impostures intellectuelles.
Comment les théories sur l ’identité, le genre, la race gangrènent l
’université et nuisent à la société, Béziers, H&O, 2021.
(15)
H. Pluckrose, «How French “Intellectuals” Ruined the West:
Postmodernism and Its Impact, Explained», Areo, 27 de Março de 2017.
(16)
B. Couturier, OK Millenials! Puritanisme, victimisation, identitarisme,
censure... L’enquête d’un baby‐boomer sur les mythes de la
génération «woke», Paris, Éditions de l’Observatoire, 2021, pp.
162-163.
(17)
Entrevista com R. Yade, «Passer à Paris devant la statue de Colbert est
une micro-agression», L’Express, 18 de Novembro de 2021.
(18)
A única que realmente citou os autores da French Theory é Judith
Butler, mas cita-os no meio de inúmeras referências, a granel, de
Descartes a Habermas, passando por Hegel, Nietzsche, Freud, Saussure,
Austin, Sartre, Beauvoir, Gayle Rubin, Monique Wittig e muitos outros.
(19)
M. Foucault, «Des supplices aux cellules», in Dits et écrits, t. II,
Paris, Gallimard, 1994, p. 720. O único combate que viria a travar
incidiu na questão das prisões, com o movimento Groupe d’information sur
les prisons.
(20) M. Foucault, L’archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 28.
(21) B. Chaouat, «Bataille des idées à l’université», Le Point, 30 de Dezembro de 2020.
(22) M. Foucault, «Le jeu de Michel Foucault», in Dits et écrits, t. III, Paris, Gallimard, 1994, p. 311. introdução 21
(23)
«Mortuus est Dei f ilius: prorsus credibile est, quia ineptum est; et
sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile» (Tertuliano, De Carne
Christi 5,4). Foi sem dúvida este «credibile est quia ineptum est»,
«é certo porque é impossível» que foi deformado em «credo quia
absurdum».
(24) I Carta aos Coríntios, 1:27.
(25) Celso, Discours vrai contre les chrétiens, Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1965, p. 39.
(26) Ibid., p. 41.
(27) Ibid., pp. 51-52.
(28) Ibid., p. 76.
(29) M. Vlahos, «Church of Woke: The Next American Religion», Humanitas, vol. XXXIV, n.o 1-2, 2021, p. 120.
(30)
Título original da obra. Versão usada pelo autor: L. Festinger, H. W.
Riecken, S. Schachter, L’échec d’une prophétie. Psychologie sociale
d’un groupe de fidèles qui prédisaient la fin du monde, Paris, PUF,
1993.
(31) Ibid., p. 165.
(32) Ibid., p. 1.
(33) Ibid.
(34) Título original da obra. Versão usada pelo autor: A. Lurie, Des amis imaginaires, Paris, Rivages, 1991.
Postado há 5 weeks ago por Orlando Tambosi
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