A última esperança de barrar o avanço da barbárie é uma ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita. Fernando Gabeira para o Estadão:
Enquanto
o bolsonarismo era atingido em cheio com a venda de joias, emerge na
Argentina como vitorioso nas primárias Javier Milei. Bolsonaro e Milei
são dois personagens distintos, mas que pertencem ao mesmo campo.
Milei
se diz anarcocapitalista, quer dolarizar a economia argentina, fechar o
Banco Central e legalizar o comércio de órgãos humanos. Não tem o mesmo
ranço militarista de Bolsonaro, mas tende a ser uma espécie de
expressão portenha deste grande movimento global que sacode a política.
Nas
análises que faço da derrocada moral do bolsonarismo, diante das
evidências de corrupção, ressalto sempre que é algo que acontece com um
líder, mas não altera as condições político-sociais que viabilizam suas
ideias.
No
caso argentino, é fácil compreender o fracasso do establishment, diante
da inflação galopante, da crescente pobreza e da inquietação social.
Aqui,
no Brasil, depois de combater as urnas eletrônicas e flertar com um
golpe de Estado, Bolsonaro se vê diante de um erro facilmente
compreendido pela maioria da população: apossar-se de algo que não é
seu. É possível que isso traga um desencanto em relação à personalidade,
mas não abala a desconfiança em relação aos políticos tradicionais, e a
economia ainda não se recuperou. Costumo acrescentar um outro fator: a
ausência de uma política de segurança pública democrática e inteligente,
abrindo caminho para a pregação da violência como alternativa.
O que acontece na América do Sul tem algum tipo de correspondência nos EUA e na Europa, onde as democracias também correm risco.
Apesar
de indiciado quatro vezes, Donald Trump continua sendo o candidato mais
viável entre os republicanos, empatando nas pesquisas com Joe Biden.
Trump
trabalha com as críticas ao processo de globalização, com a repulsa à
entrada de imigrantes no país e com o velho tema de tornar a América
grande de novo. Grande, solitária e alheia aos problemas do mundo, assim
como devem ser as pessoas no ideário da extrema direita: presas à
meritocracia e adversárias de uma visão de solidariedade social.
A
imprensa francesa noticiou esta semana que a líder da extrema direita
do país, Marine Le Pen, vai ampliar sua área de atuação para além da
crítica à presença dos imigrantes, para um ataque às teses da transição
ecológica e negação do aquecimento global. Na opinião de Le Pen e seu
liderados, a tecnologia poderá resolver todos os problemas.
Todo
este movimento que perpassa o planeta e que definimos a grosso modo
como de extrema direita é, na verdade, um grande mal-estar que nos move
não só a analisar incessantemente, mas também a buscar fórmulas
audaciosas para superá-lo.
No
mundo tal como Milei o vê, o comércio de órgãos é um caminho para a
sobrevivência: enquanto tivermos um rim para vender, haverá esperança de
sobrevivência. E no mundo tal como madame Le Pen, podemos negar
tranquilamente o aquecimento global e confiar na tecnologia, o que
significa uma espécie de suicídio coletivo.
Bolsonaro
ainda é um pouco mais tosco, seu discurso não se compara ao de uma
Georgia Meloni, a líder italiana. Ele defende tortura como método de
investigação, o assassinato como instrumento de segurança pública, o fim
das etnias indígenas e sua integração na sociedade abrangente.
Alguns
desses líderes já estão no poder solapando a democracia, como são os
casos de Viktor Orbán, na Hungria, e Netanyahu, que acaba de reduzir os
poderes da Suprema Corte em Israel.
É
um amplo movimento planetário que reage à crise com grandes passos rumo
não somente à destruição da democracia, mas também ao próprio
sacrifício da humanidade, uma vez que nega a ameaça global do
aquecimento.
Não
existe caminho para fazer frente a tudo isso, exceto um grande
movimento de solidariedade, uma real frente civilizatória que não pode
ser diminuída pelo ranço partidário.
A
última esperança de barrar o avanço da barbárie é uma ampla revisão dos
erros explorados pela extrema direita. A esperança morrerá quando as
tendências hegemônicas invalidarem a própria ideia de trabalho conjunto,
reafirmando, no fundo, o salve-se quem puder, que é a palavra de ordem
dominante na ascensão dessas forças que não podem ser vistas apenas como
algo conjuntural. Vieram para ficar, ainda que alguns de seus expoentes
desapareçam no pântano que criaram, como é o caso de Jair Bolsonaro.
Estamos
diante de forças planetárias, crescentes, muito atrativas para quem se
sente abandonado pela globalização ou traído por políticos voltados para
seus próprios interesses. O anarcocapitalismo de Milei foi bem recebido
por jovens eleitores; Trump, apesar de tudo, é favorito nos EUA.
A
possível virada na Argentina ou mesmo a vitória de Trump deveriam levar
a uma reflexão maior que a simples perda de um Mercosul ou impulso para
que os russos destruam a Ucrânia. Não somente os países serão
condenados à solidão, mas principalmente as pessoas mais vulneráveis.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi

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