quarta-feira, 28 de junho de 2023

Oliveira Vianna, a maior referência do movimento negro brasileiro.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Os militantes escolheram um símbolo de supremacia branca para atacar: as estátuas do bandeirante Borba Gatto e o Monumento às Bandeiras. Subscrevendo, portanto, a tese da arianização de Oliveira Vianna. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:


Dentre os pensadores nacionais, o militante negro brasileiro só evoca Gilberto Freyre. O antropólogo pernambucano é considerado uma espécie de Judas da Semana Santa e malhado eternamente pelo crime de ter escrito Casa Grande & Senzala, que eles mesmos não leem, mas que teria de alguma forma legitimado o racismo no Brasil. Se o militante for muito erudito (dentro dos parâmetros dos militantes), ele saberá da existência de um presidente chamado Getúlio Vargas, e dirá que Freyre foi convertido em pensador oficial do Estado Novo a fim de criar a imagem falsa da harmonia racial. Porque eles querem briga racial. O Brasil seria hipócrita por não ter guerra racial e deveria imitar esse grande exemplo para o mundo que são os Estados Unidos, onde todo o mundo era tão honesto que separava negros de brancos.

No entanto, os revolucionários de 30, ao tomarem o poder, queimaram os exemplares de Casa Grande & Senzala da biblioteca do Estado da Bahia. Freyre era contrário ao regime Vargas e saiu do país. Se o Estado Novo tinha um ideólogo oficial, esse ideólogo, sem sombra de dúvidas, era Francisco José de Oliveira Vianna (1883 – 1951). Ele exerceu muito mais influência sobre o Vargas maduro do que o positivismo gaúcho.

Oliveira Vianna tem uma obra vasta e era profundamente interessado nas particularidades sociais do Brasil. Era anti-liberal, atento à ciência da época e defensor do papel no Estado como indutor da modernização no Brasil. Juntando-se o seu interesse pela ciência ao cuidado com as peculiaridades brasileiras, criou o ponto mais baixo e estrambólico de sua obra: o arianismo mestiço.

Antes de ser o ideólogo do varguismo, Oliveira Vianna, que é só um ano mais novo que Getúlio, já escrevia sobre o poder. E, como uma lógica evolutiva supremacista permeava a ciência da época, o poderoso da vez teria alguma explicação de ordem sociobiológica para o seu sucesso. Quando Oliveira Vianna escrevia durante a República Velha, quem tinha esse poder eram as oligarquias paulistas.

Assim, sua primeira obra, publicada em 1920, é Populações meridionais do Brasil, voltada à análise do sucesso dos barões do café de São Paulo. O problema é que, desde a virada do século XIX para o XX, o grande geógrafo e tupinólogo do Império, Theodoro Sampaio, fundamentara muito bem a tese de que os bandeirantes paulistas falavam tupi e não português. Os topônimos dos locais desbravados pelos bandeirantes eram de língua tupi, mas as tribos dominadas por eles que habitavam esses locais eram de língua jê. Ou seja, se as vilas e acidentes geográficos não foram nomeados com a língua dos conquistados, a língua dos conquistadores era tupi.

Os estudos posteriores viriam a confirmar isso. Em Raízes do Brasil, o sociólogo paulistano Sérgio Buarque de Hollanda relata que essa polêmica era debatida no Estadão ainda em 1945, e ele próprio se envolvera nela usando desde textos de Antonio Vieira até irrefutáveis documentos testamentários de bandeirantes notórios para defender a teoria do já falecido Theodoro Sampaio.

À luz da ciência racista da época de Oliveira Vianna, tal descoberta só poderia ser falsa, porque a raça superior é a ariana. Assim, ele faz o possível e o impossível para apagar qualquer vestígio cultural tupi das elites paulistas. Destaco um trecho: “O domínio rural se traslada, destarte, sob a forma de bandeira, integralmente, para as novas terras descobertas. O mesmo se dá com os grupos que norteiam para as regiões alpestres de Minas, em busca de ouro. Eis por que essas bandeiras dão a impressão de grandes caravanas em marcha. Pela sua composição, em que entram até velhos, mulheres e enfermos, recordam, realmente, de algum modo, a emigração de tribos pastoris dos planaltos da Ásia” (cap. V, i, p. 84-85). Não precisa sair da América para encontrar essa semelhança na Ásia. Os tupis eram nômades; faz muito mais sentido supor que as bandeiras tenham mantido esse traço tupi do que que arianos tenham replicado na América um nomadismo tribal asiático por pressão geográfica.

Mas Oliveira Vianna não era maluco a ponto de negar a mestiçagem da elite paulista. Por isso ele cria um arianismo próprio, um arianismo mestiço que mitiga o racismo científico – a “Ciência” da época – a fim de conciliá-lo com a realidade brasileira. Daí resulta uma psicologização da raça: é como se o bandeirante paulista, ao se miscigenar, tivesse retido a índole da raça ariana, e tal índole fosse a causa do seu sucesso. É o mameluco de alma branca, por assim dizer. Agora, essa psicologização da raça também serve para explicar o fracasso dos fracassados. Nas palavras do próprio: “Toda a evolução histórica da nossa mentalidade coletiva outra cousa não tem sido, com efeito, senão um contínuo afeiçoamento, através de processos conhecidos de lógica social, dos elementos etnicamente bárbaros da massa popular à moral ariana, à mentalidade ariana, isto é, ao espírito e ao caráter da raça branca. Os mestiços superiores, os mulatos ou mamelucos, não ascendem em nosso meio, durante o largo período da nossa formação nacional, não vencem, nem ascendem como tais, isto é, como mestiços, por uma afirmação de sua mentalidade mestiça. Ao invés de se manterem, quando ascendem, dentro dos característicos híbridos do seu tipo, ao contrário, só ascendem quando se transformam e perdem esses característicos, quando deixam de ser psicologicamente mestiços – porque se arianizaram” (cap. VI, v, p. 114). Em vez do fardo do homem branco, em Oliveira Vianna temos o fardo do mestiço arianizado. Nas palavras dele, a função da “síntese, coordenação, direção”, cabe “aos arianos puros, com o concurso dos mestiços superiores e já arianizados.”

Ainda assim, Oliveira Vianna vê com maus olhos a mestiçagem, na medida em que forma desajustados. Ela teria surgido primariamente do estupro da índia e da negra pelo ariano: no latifúndio, “os brancos – os senhores, a parentela dos senhores, os seus agregados – exercem uma função culminante. São os reprodutores da moda, os grandes padreadores da índia, os garanhões fogosos da negralhada” (cap. IV, vii, p. 75). Esse vício de origem se faz sentir na vida social: eles têm a “procurarem expungir de si, por todos os meios, os sinais de sua bastardia originária. É assim que o mameluco – cruzado de branco e índio – se faz grande inimigo do índio. É o elemento fundamental dos terríveis clãs sertanistas. É a sua massa combatente e, às vezes, o seu capitão sanguinário e truculento. Por seu turno, o mulato – cruzado de branco e negro – desdenha e evita o negro. Quando os quilombos começaram a inquietar os domínios agrícolas, é o mameluco, de comparsaria com o mulato, quem toma a incumbência de destruí-los. É o mulato que se faz o ‘capitão do mato’, perseguidor cruel dos escravos foragidos” (cap. IV, viii, p. 76). Trocando em miúdos, no Brasil colonial o mestiço misturado com branco se alia à ordem dos brancos e trai ferozmente a sua outra raça de origem. Mamelucos contra índios, mulatos contra negros.

E tudo isso é em vão: “O mestiço, na sociedade colonial, é um desclassificado permanente. O branco superior, da alta classe, o repele. Como, por seu turno, ele foge das classes inferiores, a sua situação social é indefinida. Ele vive continuamente numa sorte de equilíbrio instável, sob a pressão constante de forças contraditórias. Daí a sua psicologia estranha e paradoxal” (cap. IV, viii, p. 77). É evidente que Oliveira Vianna está errado. Pois o Brasil começou com uma aliança política e carnal entre portugueses e índios. Se há um povo que pode dizer que não foi fundado pelo estupro, é o nosso. Roma começou com o rapto das sabinas; nós, com João Ramalho em São Paulo recebendo filhas de caciques tupis para casar; com Caramuru na Bahia recebendo Catarina Paraguaçu do cacique e em seguida levando-a para se casar na França. Com o índio Arariboia no Rio de Janeiro recebendo a Ordem de Cristo na expulsão dos franceses protestantes e seus aliados tamoios.

É possível usar a missão dada pelo Papa para explicar a boa vizinhança dos portugueses com relação aos índios, mas a questão é ainda mais elementar do que isso: todo europeu que chegasse com uns barquinhos enfrentaria uma quantidade numérica de índios muito maior. Os vikings foram embora assim; os espanhóis se juntaram às tribos oprimidas para vencer os astecas, cuja sede por sacrifício humano gerava inimizades. Então no Brasil colonial, e também na América espanhola, a elite era mestiça.

No entanto, os erros de Oliveira Vianna são levados pelos militantes do movimento negro brasileiro como verdade inquestionável. É a psicologia também. Não importa a cor da elite, o que importa é que ela é considerada psicologicamente branca. Como mostrei aqui, Kabengele Munanga, da USP, pretende que o mestiço se assuma ideologicamente como negro e lute contra a sociedade “branca”.

Abdias do Nascimento é mais fiel ainda. Em 2017, num artigo para a Folha de S. Paulo que lhe valeu um mini-cancelamento, Risério comentou: “Em O Genocídio do Negro Brasileiro (1978), bíblia do nosso racialismo essencialmente colonizado, um Abdias confuso e sectário monta duas sequências. Numa, encadeia mestiçagem, branqueamento e alienação da identidade negra. Noutra, amarra miscigenação, branqueamento e aniquilação da raça negra. Neste segundo caso, Abdias vê a mestiçagem/miscigenação como estratégia de extermínio da população negra: ‘(...) o mulato prestou serviços importantes à classe dominante; durante a escravidão ele foi capitão-do-mato, feitor (...). Nele se concentraram as esperanças de conjurar a 'ameaça racial' representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil’.” Na ocasião, a viúva redigiu uma réplica que apenas mostra o quão profunda é a psicologização da raça para os ativistas: “para Abdias, os termos [mulato e negro] eram metáfora simples a mostrar que a identificação passa não pelo suposto fator genético-biológico (que não existe), mas pela consciência e pela ação. ‘Mulato’, para ele, é quem assume o discurso racista e quer se aproximar da brancura; ‘negro’ é a pessoa consciente e comprometida com seu povo, sua identidade e sua herança cultural.”

Last, but not least, os militantes escolheram um símbolo de supremacia branca para atacar: as estátuas do bandeirante Borba Gatto e o Monumento às Bandeiras. Subscrevendo, portanto, a tese da arianização de Oliveira Vianna, contra a tese original e correta de Theodoro Sampaio – que por acaso comprou a alforria da mãe e dos meio-irmãos; era um baiano filho de escrava com padre.

Os militantes do movimento negro repetem a leitura étnico-racial de Oliveira Vianna de cabo a rabo, apenas invertendo o juízo de valor. Só não sabem porque não estudam nada.
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