terça-feira, 30 de maio de 2023

Será que o cidadão precisa do Estado guardião da moral?

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

As democracias liberais rejeitam a ideia do Estado tutor porque optam por tratar os cidadãos como pessoas adultas. Mas o Brasil é "o país das crianças", escreve Fernando Schüler em sua coluna para a revista Veja:


“Eu tenho medo”, disse Bárbara, a youtuber, em uma audiência no Congresso, semana passada. Ela é a “dona de casa que virou ativista”, na onda digital. Diz o que pensa, com um toque de humor, e conseguiu uma incrível audiência. Sua história é a crônica do transe brasileiro. A comunicadora “desmonetizada”, “banida”, “investigada”, num jogo de gato e rato que jamais faria sentido em uma cultura minimamente liberal e democrática. O transe brasileiro vai além. Leio que a Justiça de São Paulo mandou banir um humorista, o Léo Lins. Mandou tirar seus vídeos e proibiu qualquer piada sobre “toda minoria ou grupo vulnerável”. Se isso vingar, já temos a nova “lei do humor” no país. Logo vamos precisar de fiscais da piada, para saber se alguém passou do ponto, ou de um “disk piada”, para denúncias anônimas sobre humoristas fora da lei. De minha parte, que passei a vida escutando piadas de gaúcho, agradeço. Só não sei se gaúcho merece ser protegido. Minha opinião é que não, mas prefiro não perguntar.

Tudo parece um exercício de nonsense, mas é o Brasil atual. De um país tropical, abençoado por Deus, terra de Jorge Ben Jor, Nelson Rodrigues e Bussunda, da irreverência, vamos aderindo a um calvinismo woke. Acho tudo isso curioso. A conversão do libertário em regulador. Curioso, mas não surpreendente. Quando os protestantes eram perseguidos, nos inícios da Reforma, Calvino, ele mesmo um líder reformador, mandou queimar Miguel Servet na fogueira. Isso tem história. Ao menos de originalidade não seremos acusados.

Agora temos esse caso do Telegram obrigado a “se humilhar”, como leio em um jornal, divulgando uma nota feita por um ministro do STF, após ter publicado sua inaceitável opinião sobre o PL das Fake News. Me lembrei dos rituais de “autocrítica”, comuns nos regimes de exceção, à esquerda e à direita, e me deu um certo medo. Sempre entendi uma democracia como um sistema feito de liberdade e confiança. É como dizia aquele incrível advogado no filme sobre o Larry Flynt (assistam): “A liberdade é uma magnífica maneira de viver, mas tem lá seu preço, que é tolerar, por aí, ideias que definitivamente detestamos”. Ideias, piadas, opiniões, “fatos”, visões políticas, não importa. O essencial é que a liberdade seja garantida como uma regra, na qual todos podem confiar, e não como uma concessão feita pela autoridade. Caso contrário, teremos não mais o “governo das leis”, mas o “governo dos homens”, e quem gosta de história sabe o que isso significa.

A decisão de censurar o Telegram diz que, nas democracias, os grupos podem se manifestar por meios “legais e moralmente aceitáveis”, e, como a opinião do Telegram seria “ilegal e moralmente inaceitável”, deveria ser banida. O embolado de palavras só não esclarece duas coisas: qual foi exatamente a lei que a empresa infringiu. E mais: qual artigo da Constituição autoriza um tribunal a determinar o que é “moralmente aceitável” ou “verdadeiro”, em uma opinião, e a partir daí punir ou censurar alguém em nossa democracia? O texto ainda diz que o Telegram estaria “distorcendo o debate” sobre a regulação das redes sociais, instigando seus usuários a “coagir parlamentares”. A pergunta volta igualzinha: desde quando cabe a um tribunal julgar se uma opinião distorce ou deixa de distorcer o debate sobre projeto em discussão no Parlamento? Que democracia concede um poder como esse? Por fim, em que sentido seria “coação” o pedido para que as pessoas “falem com os seus deputados”, como se lê na nota da empresa? Não é preciso prosseguir nesta análise para perceber quanto nos perdemos. Quanto fomos deslizando, em nome da “defesa do estado de direito” e um punhado de palavras de vago significado, numa situação em que toda exceção e “experimento regulatório” se tornam aceitáveis. Lendo essas coisas, me lembrei de Robespierre e seus discursos na Convenção, no auge da loucura revolucionária, dizendo julgar e governar sob “regras menos rigorosas, porque as circunstâncias são tempestuosas e móveis”. Caímos nisso, um estranho tipo de jacobinismo jurídico. Com o detalhe de que não estamos na França revolucionária e Robespierre é só uma tenebrosa lembrança de como uma democracia republicana jamais deveria agir.

O caso do Telegram, como o do Google, da Brasil Paralelo, do Spotify ou qualquer outro grupo, é simples: há um debate na sociedade, cada qual deve ter o direito de expressar sua visão, não cabendo ao Estado nenhum papel de “curadoria”. Isso porque cabe aos cidadãos julgar a veracidade ou a moralidade de uma opinião. Talvez tenha sido esse o sentido daquela frase singela de Jorge Pontual dizendo “não entender como jornalistas apoiam a censura”. Pontual tratava exatamente do caso Telegram, e parecia falar de um outro planeta. Na verdade, era de um outro país, regido pela Primeira Emenda, onde um jornalista pode não só usar o Telegram, mas também saber o que uma rede pensa sobre um projeto em discussão no Congresso.

É irresistível pensar que tudo isso diz respeito a essa “nossa mania de achar que a sociedade precisa de tutela”, como dizia o grande jornalista Clóvis Rossi. Democracias liberais rejeitam a ideia do Estado tutor precisamente porque optam por tratar os cidadãos como pessoas adultas. Isso não é uma trivialidade nem algo que possa ser “provado”. É essencialmente um modo de consideração. Tomar o cidadão não como uma besta incapaz de pensar e fazer suas escolhas, mas como sendo ele mesmo o curador da sociedade. Não o “cidadão comum”, incapaz de lidar com a “desordem informacional”, como lemos na decisão de um ministro, à época eleitoral. Há aí uma escolha existencial. Se de fato desejamos um Brasil pautado pela ideia difusa do cidadão hipossuficiente. O cidadão que precisa do Estado guardião da moral, regulador de piadas, protetor das distorções no debate público, além de infernizar o tempo todo a vida de uma “dona de casa youtuber”. A mesma lógica que diz não termos cabeça para decidir votar ou não votar, pagar ou não um sindicato ou escolher a escola dos filhos no ensino público. Lógica que, como bem sacou Clóvis Rossi, um dia foi nossa mania, mas cada vez mais é obsessão.

E quando vamos sair dessa? Em geral respondo que não sei. Que nossa cultura de direitos é frágil, que precisamos retomar o trilho constitucional, que deve haver alguma reação do Congresso. Por estes dias, perdi a paciência e disse, simplesmente: quando deixarmos de ser o país das crianças. Quando a maioria da sociedade achar que as coisas passaram do limite. Que ninguém mais tem paciência para Robespierre nenhum. Que o Brasil ainda tem tempo de ser uma democracia que inclua, e não expulse. E que para isso é preciso resgatar valores liberais e democráticos que definimos há 35 anos e que nos anos recentes deixamos escorrer pelo ralo.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842
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