quarta-feira, 31 de maio de 2023

Posicionamento de Lula sobre a guerra na Ucrânia pôs o Brasil numa encruzilhada

 


Gilmar Fraga / Agencia RBS

Charge do Gilmar Fraga (Gaúcha/Zero Hora)

Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense

Artigo de Lourdes Sola e Eduardo Viola, professores do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), publicado no Estadão sobre as mudanças na política mundial e o posicionamento do governo Lula, merece profunda reflexão. Destaca que houve uma mudança na geopolítica mundial que exige um reposicionamento cuidadoso do Brasil.

Isso parece não ter sido devidamente avaliado pelo presidente Lula, cuja diplomacia é presidencial e comandada pelo ex-chanceler Celso Amorim, embora o Itamaraty tenha massa crítica para fazê-lo com mais competência.

AMEAÇA EXISTENCIAL – “A invasão russa da Ucrânia consolidou um forte componente de guerra fria entre as democracias do ‘Ocidente coletivo’ (que inclui Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) e o bloco autocrático (com China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). Esse confronto delineia-se desde 2015, mas o traço que define a guerra fria é mais recente: cada bloco vê o outro como ameaça existencial. Está em pleno curso o desacoplamento entre ambos no referente à alta tecnologia e, particularmente, à tecnologia de uso dual (civil e militar)”, avaliam Sola e Viola.

A lógica da guerra fria é a paridade estratégico-militar. Há um evidente desequilíbrio nesse aspecto entre países que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o eixo China, Rússia, Irã e Coreia.

O ponto de inflexão da construção de um mundo multipolar, que parecia ser irreversível com a emergência da China como potencia econômica, foi a invasão da Ucrânia pela Rússia. O conflito se tornou uma “guerra de procuração” entre a Otan e o governo de Putin.

MILITARIZAÇÃO – Além de reativar o complexo militar industrial dos Estados Unidos e outros países do Ocidente, a guerra em plena Europa provocará a expansão da capacidade militar chinesa, que já vinha ocorrendo, com a militarização definitiva dos mares asiáticos.

No livro “Sobre a China”, Henry Kissinger lembra-nos que a disputa pelo controle do comércio no Atlântico entre uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, a Inglaterra, no século passado, provocou duas guerras mundiais.

Neste século, o eixo do comercio mundial se deslocou para o Pacífico, a potência continental é a China, e a marítima, os Estados Unidos. O temor de Kissinger era que isso provocasse uma nova guerra fria e, consequentemente, aumentasse o risco de uma catástrofe nuclear. É o que acontece agora.

GUERRA E PAZ – A propósito, Sola e Viola destacam diferenças cruciais em relação à guerra fria do pós-Segunda Guerra Mundial: há alta interdependência econômica entre os dois blocos, embora menor entre Ocidente e Rússia desde a invasão; a China é uma superpotência econômica, ao contrário da antiga União Soviética; os desafios globais como mudança climática, pandemias e regulação da inteligência artificial exigem muita cooperação internacional.

O neorrealismo diplomático assentado nos interesses geopolíticos permanentes, derivados da geografia, da história e da identidade cultural, foi posto em segundo plano: “Os interesses dos Estados variam segundo os regimes políticos e os governos, e segundo as transformações da economia política mundial”.

Sola e Viola criticam, com razão, a prioridade dada por Lula à mediação da paz entre a Rússia e a Ucrânia: “O Brasil não tem excedente de poder para mediar numa região que conhece pouco e com a qual tem vínculos limitados”.

PROTAGONISMO – O Brasil teria muito mais protagonismo nas políticas climática e de transição energética. “Justamente aquelas que são decisivas para equacionar alguns dos desafios globais de ordem existencial mencionados.

Para tanto, há que reduzir drasticamente o desmatamento, evitar as tentações do nacionalismo petroleiro e investir nas oportunidades abertas para exercer protagonismo ambiental — a presidência do G20 e a COP30.”

Embora desejemos um mundo multipolar e a paz, a guerra na Ucrânia fragiliza a opção pelo Sul Austral.

BRASIL É OCIDENTAL – Os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), realmente, têm interesses econômicos convergentes, porém não ficarão neutros: Rússia e China são aliados militares; a Índia integra o bloco militar do Japão e da Austrália com os Estados Unidos. A tradição da África do Sul é de alinhamento com os Estados Unidos e a Inglaterra.

O nacional-desenvolvimentismo e a tradição anti-imperialista da esquerda brasileira, subliminarmente, influenciam a política externa do governo. Isso já é perceptível e provoca o realinhamento de forças sociais e políticas que priorizam a questão democrática na relação com o governo.

Opuseram-se ao governo Bolsonaro; agora, pelas mesmas razões, se distanciam de Lula, o que debilita seu governo. O Brasil é um país do Ocidente.

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