BLOG ORLANDO TAMBOSI
Um banco comercial é geralmente uma espécie de gato de Schrödinger, que enquanto ninguém observa está falido e solvente ao mesmo tempo. Renato Dias de Sousa para o Observador:
O
texto que escrevi inicialmente sobre o tema tinha practicamente a
extensão de um ensaio, demasiadamente grande para ser publicado na
íntegra, pelo que sairá em fascículos, como os romances de Dostoiévski,
mas sem que se possa comparar de qualquer outra forma à obra do génio
moscovita. Começemos:
Os
bancos são como as mulheres. Não se pode viver com elas e não se pode
viver sem elas. São a fortaleza das economias modernas apesar do seu
frágil desenho. Em particular os bancos comerciais, aqueles que têm
agências abertas ao público, cuja beleza deslumbra e seduz a sociedade
quando financia o crescimento económico, mas se converte em objeto de
escândalo e apedrejamento público quando a bolha de crédito finalmente
rebenta.
Perdoem-me
se o que vou contar neste parágrafo vos parece óbvio. Em minha defesa
alego que não é óbvio para toda a gente e é um raciocínio absolutamente
necessário para compreender tudo o que se segue. Como tal, não está
feito para profissionais do sector. Simplifica cálculos demasiado
complexos para ser replicados neste espaço. Imaginemos um empréstimo a
10 anos. O senhor A empresta uma quantidade de dinheiro (suponhamos 1
milhão de euros), hoje, à senhora B, que a Sra. B se compromete a
devolver no futuro (por exemplo, dentro de 10 anos) num só pagamento.
Para convencer o Sr. A a ceder essa soma (para a qual este pode imaginar
bastantes usos alternativos) a Sra. B compromete-se a pagar todos os
anos uma determinada quantia (por exemplo 10 mil euros) até à data em
que devolve todo o dinheiro em dívida. Em resumo: o Sr. A concede um
empréstimo à Sra. B de 1 milhão de euros a 10 anos com um juro nominal
de 1% anual. Passados 5 anos, ou metade do prazo, o Sr. A necessita
dinheiro, mas a Sra. B não o pode devolver, nem a isso está obrigada. O
que é que o Sr. A pode fazer? De imediato, pode ir ao mercado de
capitais vender o empréstimo a outra pessoa e assim receber o dinheiro
que necessita. A questão é: a que preço? Imaginemos que 1% é a taxa de
juro vigente no mercado (e que no mercado só existe uma taxa de juro).
Se a taxa de juro do mercado e a taxa de juro do empréstimo são ambas
1%, o Sr. A pode razoavelmente esperar vender o empréstimo por 1 milhão
de euros. Senão vejamos. Se a taxa de juro de mercado é de 1%, um
investimento de 1 milhão de euros a 1% a 5 anos espera receber 10,000
euros de juro anualmente, exactamente o que a Sra. B se comprometeu a
pagar. Para um potencial comprador desse empréstimo é lhe “indiferente”
comprar o empréstimo ao Sr. A ou fazer um empréstimo a outra pessoa,
pois as condições seriam as mesmas. No entanto, se a taxa de juro do
mercado subir para, digamos, 3%, um potencial interessado poderia
emprestar 1 milhão de euros a 5 anos e receber pelo empréstimo 30 mil
euros por ano. Ou seja 150,000 euros em 5 anos. Nesse caso, se o Sr. A
precisar de lhe vender o empréstimo, o comprador não estará disposto a
pagar um milhão de euros, porque só vai receber 50,000 euros em juros.
Para que alguém aceite ficar com o empréstimo exigirá um desconto e não
estará disponível para pagar mais de 900,000 euros pelo empréstimo (de
acordo com esta simplificação radical do cálculo) para receber no final
os mesmos 150,000 euros de juros. Comparando com a condição inicial, se o
Sr. A não necessitasse vender, no final do prazo receberia o tal milhão
de euros na sua totalidade, sem necessitar registar um prejuízo de
100,000 euros.
Um
banco, como toda a gente sabe, é uma entidade que se dedica a emprestar
dinheiro. O que pouca gente sabe, ou se preocupa em saber, é que,
exceptuando uma pequena camada de capital próprio, grande parte do
dinheiro que empresta é dinheiro que, por sua vez, pediu emprestado. No
caso dos chamados bancos de investimento, estes tentam, na medida do
possível, pedir emprestado e emprestar dinheiro a prazos e riscos
semelhantes, para evitar surpresas desagradáveis. O seu lucro é a
diferença entre o juro recebido e o juro pago, e o seu valor social é
fazer a alocação eficiente da canalização da poupança disponível para os
investimentos que a necessitam, ponderando correctamente o risco (algo
mais fácil de dizer que de fazer). Às vezes as coisas correm mal, e há
muitas formas de correrem mal, mas, em geral, estes bancos tentam ser
imunes a grandes variações nas taxas de juro e essa não é, geralmente,
uma das coisas que pode correr mal.
No
caso dos bancos comerciais, isto é, os bancos com agências abertas ao
público em geral, o modelo de negócio também passa por canalizar
poupanças para investimento de forma eficiente, mas grande parte dessas
poupanças são captadas sob a forma de depósitos, que deixam o banco
vulnerável ao levantamento no imediato de uma grande quantidade destes.
Imaginemos que o empréstimo acima descrito faz parte do balanço de um
banco comercial com 5% de capital. Nesse caso, extremamente simplificado
de um balanço de um banco, o Activo seria o próprio empréstimo de 1
milhão de euros, o Capital Próprio 5% ou 50,000 euros porque assim o
defini, e o resto, seria o Passivo que financiou o grosso do empréstimo,
ou seja, 950,000 euros em depósitos. No exemplo acima, chegados ao ano
5, com as taxas de juro a 3%, o empréstimo perde 100,000 euros de valor e
o banco não tem capacidade para satisfazer todo o passivo (necessitaria
5 anos para o activo voltar a valer 1 mihão de euros). Se o passivo
tivesse um prazo de 5 anos, então não existiria nenhum problema (como
sucede em tantas empresas que não têm capacidade de pagar todo o seu
passivo de forma imediata, nem a isso estão obrigadas), mas um depósito
bancário é um instrumento que permite ao depositante dispor do seu
dinheiro de forma imediata. Se os depositantes forem todos ao mesmo
tempo ao banco exigir o seu dinheiro, este, neste caso, declara-se
insolvente.
De
tempos a tempos, os bancos vão à falência porque o temor de insolvência
leva os depositantes a correr ao banco para resgatar o seu dinheiro,
convertendo o temor da insolvência em insolvência de facto, como uma
profecia que se cumpre a si mesma. Um banco comercial é geralmente uma
espécie de gato de Schrödinger, que enquanto ninguém observa está falido
e solvente ao mesmo tempo. A famosa frase atribuída a Bagueot: “se uma
pessoa tem que demonstrar que é merecedora de crédito é porque esse
crédito desapareceu” aplica-se aos banqueiros em primeiro lugar.
Para
evitar que isto aconteça, o sector financeiro foi desenvolvendo
ferramentas que mitigam internamente o risco e, quando isso falha,
tentam mutualizar esse risco dentro do sector. Em primeiro lugar, os
bancos têm uma dotação de capital (e dívida convertível em capital, como
as, agora infames, obrigações AT1) para fazer face a desvalorizações do
seu activo e mantêm uma parte dos depósitos em dinheiro e passivo de
muito curto prazo para fazer face a levantamentos extraordinários dos
seus clientes. Quando isto falha, a mutualização do risco dentro do
sector procura-se, em primeiro lugar através da existência de um banco
com acesso a uma grande quantidade de dinheiro que pode, em caso de
necessidade, emprestá-lo a outros bancos como emprestador de último
recurso (são os bancos centrais nas finanças modernas) e, se não existe
mais remédio, um seguro que garante todos os depósitos até um
determinado valor (desde a última crise: 100,000 euros na Europa e
100,000 dólares nos Estados Unidos), sempre e quando o colapso não seja
generalizado, porque se for não há dinheiro suficiente para assegurar os
depósitos em falta.
Isto
não significa nem que nenhum banco vá à falência, nem que o risco possa
ser sempre mutualizado entre o sector. No caso das crises financeiras
(que também são económicas) o Estado, quer dizer, os contribuintes são
chamados a pagar grande parte da factura. O negócio bancário é,
inerentemente, um negócio frágil.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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