sábado, 29 de abril de 2023

Guerra na Ucrânia: O "difícil equilíbrio" diplomático de Lula para garantir o lugar do Brasil na "nova ordem mundial".

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

O presidente brasileiro quer projetar o Brasil internacionalmente e considera que a mediação na guerra da Ucrânia pode ser uma forma de o fazer. Lula tenta superar outros países emergentes e irrita EUA. José Carlos Duarte para o Observador:


China, Emirados Árabes Unidos, Portugal, Espanha. Em cerca de uma semana e meia, Lula da Silva cumpre uma maratona diplomática que atravessa continentes e que ainda vai a meio. Mesmo quando esteve em Brasília, nos dias entre a chegada de Abu Dhabi e a viagem para Lisboa (onde chegou esta sexta-feira e ficará até ao dia 25 de abril), o Presidente brasileiro recebeu o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, e o seu homólogo romeno, Klaus Iohannis. Em todos estes momentos, o Chefe de Estado brasileiro aproveitou a oportunidade para debater a guerra na Ucrânia, expondo os seus planos e realçando a necessidade de terminar o conflito o mais cedo possível.

Se o tema da guerra foi uma constante nos encontros com os líderes de vários países, o mesmo não aconteceu nas posições que o Presidente brasileiro foi assumindo em cada uma dessas etapas diplomáticas. O discurso de Lula da Silva sobre o conflito sofreu, aliás, várias alterações numa questão de dias.

Na China, o Presidente brasileiro disse que está “unido” com Pequim na forma como encaram a guerra. Em Abu Dhabi, o líder do Brasil acusou a União Europeia e os Estados Unidos de contribuírem para a “continuidade” do conflito. E na receção a Sergei Lavrov o governo brasileiro destacou que se posicionava contra as sanções aplicadas à Rússia, frisando o sentimento de “união” entre os dois países. A inversão do discurso — um recuo em relação a algumas das posições assumidas durante esse périplo diplomático — seguiu-se às reações que as palavras de Lula provocaram.

As primeiras palavras de Lula da Silva não agradaram nem à Ucrânia nem ao Ocidente. A União Europeia (UE) e os Estados Unidos (EUA) criticaram as declarações do líder brasileiro — Washington chegou mesmo a acusá-lo de “papaguear propaganda russa e chinesa” sem “olhar para o factos”. Por sua vez, Kiev convidou o líder do Brasil a ir ao país para ver de perto, com os próprios olhos, a realidade da guerra. E, em Portugal, António Costa assinalou as “divergências” entre Brasília e Lisboa em relação à guerra na Ucrânia, sublinhando que um e o outro assumiam “posições radicalmente diversas” em relação ao conflito.

Depois desta onda de condenações e distanciamentos, o Presidente brasileiro retratou-se. E, num almoço com o Chefe de Estado da Roménia (líder de um país da UE e da NATO), fez questão de condenar a “violação da integridade territorial da Ucrânia” cometida pela Rússia em fevereiro do ano passado.


Qual é o motivo destas contradições no discurso? “Lula é um político hábil”, começa por dizer ao Observador, Mariano Aguirre, membro associado do think tank Chatham House e assessor da Rede Latinoamericana de Segurança da Fundação Friedrich Ebert, salientando que a presidência brasileira apoia-se numa rede diplomática “com grande experiência” — acumulada nos outros mandatos da Lula da Silva — e que segue uma linha de política externa bem definida para alcançar os objetivos do país na comunidade internacional.

“Dá-se bem com Washington, com Bruxelas e com os ecologistas na conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) no Cairo. Ao mesmo tempo, trata o governo chinês e russo de igual para igual — e obtém bons contratos e investimentos”, exemplifica Mariano Aguirre, acrescentando que, por todos os sítios por que passa, Lula da Silva diz aos líderes mundiais “o que eles querem ouvir” e não entra em “divergências de fundo com ninguém”. “Sabe que todos, de alguma forma, necessitam de si, ou, pelo menos, querem aparecer junto a ele.”

A descrição do comportamento feita por Mariano Aguirre parece coincidir com as declarações e as tomadas de posição de Lula da Silva nos últimos dias. Em declarações ao Observador, Christopher Sabatini, professor convidado na London School of Economics e membro sénior do think tank Chatham House nos tópicos da América Latina, aponta “duas razões” para justificar as ações do líder do Brasil — uma que está alinhada com a história da política externa brasileira e outra com os reais objetivos do Chefe de Estado brasileiro de se posicionar com uma figura válida para mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia.

As opções de política externa brasileira e o papel do país numa “nova ordem mundial”

Na ótica de Christopher Sabatini, “o ADN da política externa” brasileira sempre privilegiou a “neutralidade” e o não alinhamento em conflitos estrangeiros. “O Brasil, em particular com os mandatos de Lula da Silva, aposta numa política de diálogo e da promoção de negociações”, esclarece o especialista, destacando igualmente que Brasília sempre adotou uma postura defensora das “instituições que promovam o multilateralismo”, como a ONU.

Daí que Lula da Silva defenda uma resolução do conflito através de negociações, e que as incentive. Recentemente, o Presidente brasileiro reforçou, nas suas deslocações ao estrangeiro e na receção de líderes no Brasil, a importância de formar um grupo de países neutrais que convençam a Rússia e a Ucrânia a sentarem-se à mesa de negociações. “A China quer paz, o Brasil quer paz, a Indonésia quer paz, a Índia quer paz. Então, temos de juntar esses países e fazer uma proposta de paz”, afirmou o Chefe de Estado numa entrevista a um canal estatal chinês.

Embora Lula da Silva seja o rosto mais visível na América Latina a propor uma resolução do conflito na Ucrânia, esta atitude não é exclusiva do Presidente brasileiro. Ao Observador, Vladimir Rouvinski, professor de nacionalidade russa, membro do departamento de Estudos Políticos na Universidade da Colômbia Icesi, explica que as “declarações de Lula refletem uma visão partilhada por vários outros líderes da esquerda dos países da América Latina”.


Naquela zona do globo existe, de acordo o mesmo especialista, uma “crescente preocupação e incerteza” dos impactos que poderá ter a guerra na Ucrânia no “futuro da ordem internacional”. Vladimir Rouvinski sinaliza que crescem, na América Latina, as “dúvidas de que os Estados Unidos e outros países ocidentais sejam capazes de manter o status quo quanto às regras do jogo que existiam antes da guerra”.

Christopher Sabatini concorda e elabora ainda mais o raciocínio. A guerra na Ucrânia pode simbolizar o momento ideal para “construir uma nova ordem mundial — de cariz multipolar —, que ouça as vozes do Sul Global e dos países em desenvolvimento”. A diplomacia brasileira estará, nesta lógica, a “usar” o conflito na Ucrânia para colocar em prática essa “visão” da comunidade internacional, tendo como pano de fundo a ideia de que a influência dos “Estados Unidos está a decair”.

Neste contexto, e num cenário que implique uma possível derrota (mesmo que parcial) da Ucrânia face à Rússia (o que levaria a um inevitável revés para a política externa defendida pela esmagadora maioria dos países do Ocidente), a leitura de Vladimir Rouvinski é a de que o “Brasil tenta não ficar de fora do processo de aprovação de novas regras do jogo se as velhas começarem a desaparecer”.

O interesse em criar uma nova ordem mundial é partilhado com a Rússia, que tem reiterado por várias vezes que considera o atual contexto geopolítico mundial injusto, devido à posição hegemónica assumida pelos Estados Unidos. Ainda na visita a Brasília, Sergei Lavrov destacou que as visões russas e brasileiras são “únicas” no que concerne à comunidade internacional, uma vez que implicam a construção de uma “ordem mundial mais justa, correta, baseada no Direito”, tendo ainda em consideração a “visão de mundo multipolar”.

O chefe da diplomacia russa aproveitou para elogiar as diretrizes seguidas pela política externa brasileira e, durante a conferência de imprensa com o seu homólogo brasileiro, Mauro Vieira, Sergei Lavrov trouxe para cima da mesa uma das principais ambições do Brasil na cena internacional, sinalizando que era a “favor da participação do Brasil como membro permanente” do Conselho de Segurança das Nações Unidas (do qual fazem parte Rússia, China, Estados Unidos, Reino Unido e França).

A integração de mais membros permanentes no Conselho de Segurança tem sido alvo de debate nas últimas décadas, principalmente por parte dos países do Sul Global — que reclamam um lugar naquele que é o órgão mais importante da ONU. Sendo o maior país da América Latina, o Brasil tem sido um dos nomes mais falados para se tornar membro fixo, um lugar que se compatibiliza, segundo Christopher Sabatini, com as aspirações brasileiras em desempenhar um “papel mais importante” na comunidade internacional.


O interesse na mediação do Brasil

Lula da Silva almeja participar na construção daquilo que considera que seria uma ordem internacional mais justa e entende que a guerra na Ucrânia é a oportunidade para repensar os alicerces do sistema atual. Na mesma medida, o Presidente brasileiro acredita que a mediação do conflito poderá tornar-se num dos seus principais trunfos para alcançar esse objetivo.

“O Presidente brasileiro sabe, e os seus diplomatas sabem, que a guerra na Ucrânia terminará em algum momento com uma negociação complexa que incluirá Kiev, Moscovo, Washington, Bruxelas, Pequim e possivelmente um país emergente“, aclara Mariano Aguirre. Ora, é essa última vaga que o Brasil quer disputar — e, evidentemente, agarrar.

No lote de países emergentes que podem desempenhar um papel na mediação, poderão estar, de acordo com Mariano Aguirre, a Turquia, a Índia, a África do Sul, um país do Médio Oriente ou então uma “combinação desses Estados”. No entanto, o especialista nota que, à exceção de Brasília, “nenhum daqueles atores está a planear um plano de paz”. “O Brasil distancia-se daqueles que dizem que ‘não é o momento de negociar’ e vai um passo mais à frente daqueles que querem pedir a paz ou um cessar-fogo, mas não o expressam”, clarifica Mariano Aguirre.

Por seu turno, Vladimir Rouvinski corrobora e diz que Lula da Silva tem interesse em formar um grupo de países neutrais. “Tendo em conta a sua aposta em ser um ator global com mais relevo, uma hipotética — pelo menos por agora — plataforma de vários países [para mediar o conflito] é o que mais convém ao Brasil que, com certeza, sozinho não pode ser um mediador central, mas sim parte de um grupo de países.”

“A preocupação” dos Estados Unidos e do Ocidente

As intenções brasileiras em resolver o conflito agradam a Pequim e a Moscovo. Aliás, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, já mostrou disponibilidade para ouvir as propostas de paz do Brasil, que “merece atenção”, desde que “tenham em consideração os interesses da Rússia, as preocupações da Rússia”. Adicionalmente, em Brasília, Sergei Lavrov sublinhou que Moscovo quer que a guerra na Ucrânia acabe o mais cedo possível, permitindo ao líder brasileiro sonhar com um papel de mediador.

No entanto, os Estados Unidos e a Europa olham com desconfiança para a estratégia brasileira. A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou, esta terça-feira, que o Brasil não assume uma posição de “neutralidade” no conflito — beneficiando a Rússia — e demonstrou a sua insatisfação com as recentes declarações de Lula e do ministro Mauro Vieira.


 Karine Jean-Pierre e John Kirby criticaram declarações de Lula

Esta não foi, ainda assim, a única crítica de Washington dirigida a Brasília. Na segunda-feira, John Kirby atacou o Presidente do Brasil, classificando como “profundamente problemática” a forma como Lula da Silva está a lidar com a guerra na Ucrânia. “Sugeriu que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que partilham a responsabilidade na guerra”, algo que não faz sentido para os Estados Unidos, que culpam a Rússia por não estar disposta a aceitar um cessar-fogo.

Diplomatas norte-americanos ouvidos pelo G1 demonstram frustração com as críticas de Lula da Silva. “Onde estavam a China e Rússia quando a democracia brasileira estava em perigo?”, desabafou uma fonte da diplomacia americana, ressaltando que os Estados Unidos defenderam “o sistema eleitoral brasileiro, as instituições democráticas e o resultado das eleições”, condenando em toda a linha a invasão à Praça dos Três Poderes, no início de janeiro.

Ao Observador, Christopher Sabatini assume que as autoridades norte-americanas veem com “preocupação” as declarações de Lula da Silva. O Presidente brasileiro parece estar a abandonar uma posição neutral, alinhando-se com a Rússia e a China. Isso faz com que o posicionamento sobre a guerra colida contra o que defendem os Estados Unidos. O especialista sugere que a “neutralidade” do Brasil implica alguma “amoralidade”, o que é “profundamente problemático” para os EUA, que consideram existir “uma parte culpada e um agressor” — o Kremlin.

Diplomata dos EUA à G1

Os Estados Unidos, acredita Christopher Sabatini, estão a “perder a confiança” no Brasil na cena internacional, vendo-o cada vez mais distante e cada vez menos como um aliado. “Francamente, essa é uma opção de Lula da Silva, que não quer seguir o manual de regras norte-americano. Prefere tomar uma posição no mundo e ganhar preponderância na comunidade internacional, mesmo que isso implique retirar poder a Washington.”

Essa atitude terá consequências diplomáticas? Os especialistas ouvidos pelo Observador têm dúvidas de que esse seja o resultado. Apesar de os Estados Unidos terem ficado “incomodados” com os recentes comentários de Lula, Mariano Aguirre esclarece que Washington não se pode dar ao luxo de “perder a relação que mantém” com o Brasil.

“O problema é que os Estados Unidos precisam do Brasil, precisam de um parceiro no hemisfério sul para tratar de questões como a Venezuela e as relacionadas com o ambiente”, confirma Christopher Sabatini. Washington terá, assim, de reconhecer que o Brasil trata a guerra na Ucrânia “nos seus próprios termos”.

“Os Estados Unidos não podem simplesmente desmerecer o papel do Brasil, têm de tentar balancear as críticas mantendo boas relações noutros assuntos”, reforça o especialista. Prova disso é que, esta quinta-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, vai pedir ao Congresso norte-americano a aprovação de um desembolso de 500 milhões de dólares (455,7 milhões de euros) para o Fundo Amazónia, do Brasil.

A porta-voz da Casa Branca já tinha assinalado, na terça-feira, que, apesar das posições divergentes no conflito ucraniano, o Brasil e os Estados Unidos mantêm uma boa relação. Mas, reforça Christopher Sabatini, terá de haver um “equilíbrio difícil” na diplomacia dos dois países no que concerne à guerra da Ucrânia, para não afetar “a histórica aliança” que mantêm.

Lula tenta recuperar confiança perdida do Ocidente

Embora tendo noção de que os Estados Unidos e a União Europeia nunca vão hostilizar por completo o Brasil, Lula da Silva não está completamente satisfeito com as críticas do Ocidente. A insatisfação dos EUA e da UE coloca em causa o que defendeu no discurso de vitória das últimas eleições, em que prometeu que o “Brasil estava de volta ao mundo”, numa clara alusão aos quatro anos de isolamento internacional promovido pelo governo de Jair Bolsonaro.

De acordo com Christopher Sabatini, a presidência brasileira está mesmo a tentar “recuperar a ambição e o perfil” da política externa brasileira, apostando na neutralidade e no reforço da relevância do Brasil na cena internacional. Ao mesmo tempo, a nova Administração brasileira quer virar costas à herança de Bolsonaro, que seguia uma agenda “anticomunista e antisocialista”, alinhando-se com líderes como o antigo Presidente dos EUA, Donald Trump, ou o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban.


Ficar mal visto aos olhos do Ocidente não agrada, por isso, à presidência brasileira. E, depois de as suas declarações serem interpretadas como um ataque ao eixo Bruxelas-Washington, Lula da Silva clarificou, na terça-feira, a sua posição, garantindo que condena a “violação territorial” da Ucrânia — uma ideia que se aproxima (e aproxima o Brasil) do Ocidente. Mas a equipa que o acompanha terá traçado um plano ainda mais ambicioso para tentar suavizar ainda mais as críticas.

A deslocação de Lula da Silva a Lisboa e a Madrid, entre o final desta semana e o início da próxima, poderá ser já uma estratégia para que o Ocidente acredite que Lula da Silva não está alinhado com a Rússia e a China. Mas não é a única iniciativa diplomática para ensaiar uma reaproximação do Ocidente. De acordo com o que a CNN Brasil apurou junto de fontes do governo, o Presidente brasileiro deverá participar na coroação do Rei Carlos III, em Londres, tendo esse objetivo em mente.

Além disso, o Chefe de Estado brasileiro deverá aceitar o convite para participar, enquanto convidado, na próxima cimeira do G7 (que inclui as sete economias mais fortes do mundo que se assumem enquanto aliados da Ucrânia — Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido e União Europeia), que se realizará em meados de maio, em Hiroshima, no Japão.


Durante o encontro em Hiroshima, revelaram fontes do governo à CNN Brasil, Lula da Silva tentará tranquilizar os líderes ocidentais da sua posição sobre a guerra na Ucrânia, insistindo na importância da paz e apresentando-se como um mediador credível — e não alinhado com a Rússia ou com a China.

Estes encontros planeados mostram que Lula da Silva vai continuar a adaptar o discurso conforme o interlocutor, jogando em vários tabuleiros e procurando nunca hostilizar diretamente nenhuma potência. Tornar o Brasil uma voz importante no seio da comunidade internacional após os quatro anos de isolamento do antecessor parece ser o principal objetivo do Presidente brasileiro. Resta saber se, ao tentar agradar gregos e troianos, o líder do Brasil não vai acabar por perder a confiança de alguns dos seus principais parceiros.
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