BLOG ORLANDO TAMBOSI
24 fevereiro de 2022 será um marco em futuros livros de História pelo impacto que já teve na ordem regional e global. Vivemos num Mundo mais imprevisível e perigoso. Ensaio de Bruno Cardoso Reis, publicado pelo Observador:
Em
janeiro de 2022 deixei claro que seria perigoso ignorar o risco real de
uma invasão russa em grande escala da Ucrânia. Infelizmente, a previsão
confirmou-se, desmentindo os muitos que previam, confiantes, que tudo
não passava de propaganda americana. Que balanço podemos fazer hoje, um
ano depois do início da guerra?
Vamos
olhar para alguns números que concretizam a realidade da guerra.
Depois, iremos focar-nos nos grandes objetivos dos beligerantes, bem
como na evolução da dimensão militar mais operacional. Concluiremos com o
impacto do conflito na evolução da ordem global e o seu possível
desfecho.
Uma terrível contagem
Depois
de um ano, a invasão russa da Ucrânia arrisca-se a transformar-se numa
guerra prolongada, com uma linha da frente muito longa, de mais de 1500
quilómetros. Os principais combates centram-se, agora, no Donbas. Faz
sentido que numa frente tão ampla, e com as condições atmosféricas
adversas do outono e inverno, tenha prevalecido nos últimos meses uma
guerra predominantemente defensiva, de trincheiras, no modelo da
Primeira Guerra Mundial.
Esta
é uma guerra de intensidade mais elevada do que tem sido habitual nas
últimas duas décadas. O critério para um conflito armado ser
suficientemente intenso para ser considerado uma guerra é provocar mais
de mil mortos em combate por ano. O conflito no Donbas, provocado pelo
separatismo pró-russo no leste da Ucrânia, patrocinado e apoiado
militarmente pela Rússia, terá resultado em 14 mil baixas e talvez 3000
mortos, entre 2014-21, a maioria dos quais na Ucrânia livre e nos dois
primeiros anos. No ano de 2021, segundo as autoridades separatistas do
Donbas, teriam sido mortos oito civis nessa região.
Todas
as mortes de civis num conflito são trágicas, mas o conflito no Donbas
não era uma guerra e muito menos era o genocídio alegado pela
desinformação do Kremlin para tentar justificar a agressão russa. Desde
24 fevereiro de 2022 e até janeiro da 2023 verificaram-se 18.483 baixas
civis, entre as quais 7.068 mortos devidamente identificados, segundo a
ONU. Mas este é o limiar mínimo, são apenas os civis devidamente
identificados. Estima-se que o total de baixas civis poderá chegar às 30
mil ou até às 40 mil, e este número continua a crescer.
O
número exato de baixas militares — tropas mortas ou seriamente feridas,
ficando incapacitadas para o combate — é um segredo bem guardado pelos
dois lados. Mas, dada a intensidade do combate, parecem credíveis as
referências a entre 150 mil e 200 mil baixas entre as tropas russas —
mortos e feridos graves, incapacitados para o combate. E, destes, talvez
cerca de 60 mil mortos. Entre os ucranianos, o custo em termos
relativos é maior, embora o número total seja menor, estimando-se em 100
mil/150 mil baixas. E também se estima que terá menos mortos, talvez 30
mil, graças a uma medicina de combate ucraniana muito mais eficaz do
que do lado russo, que trata os soldados como carne para canhão.
Sublinho que são estimativas.
O
que é claro é que as baixas russas excederam em muito as expectativas
da liderança russa. Daí que Putin tenha sido forçado a voltar atrás na
promessa que fez publicamente no início da invasão, de que ela seria
feita apenas com base em voluntários, decretando uma mobilização parcial
de mais 300 mil soldados, em setembro de 2022, que gerou um raro
momento de alguma contestação na sociedade russa. Por comparação, em 10
anos da guerra soviética no Afeganistão, entre 1979-89, o total de
mortos russo-soviéticos foram 15 mil, num total de 45 mil baixas. No
entanto, desta vez não há sinais de abalos relevantes na lealdade da
elite política e securitária.
O
que poderá explicar esta resiliência do regime de Putin? As sanções
demoram tempo a produzir efeito, até porque há muitos incentivos para as
contornar, mesmo que resultem em piores produtos e mais caros. A
recessão económica russa foi menor do que esperado e mais apoios e
subsídios estatais têm sido prometidos. Depois, há que contar com a
crescente censura e repressão — penas de até 15 anos para quem mencionar
a guerra. Há também que contar com o peso na cultura política russa da
nostalgia imperial e da ideia de que a alternativa é: autocracia ou
anarquia, um poder forte ou o regresso aos caos, como em 1991, em 1917,
ou no início do século XVII. É relevante que muitas destas baixas são
jovens soldados pobres de regiões ultraperiféricas como Tuva ou
Buriácia, ou entre os milhares de criminosos recrutados pelo grupo
Wagner. O facto de — até por imposição ocidental — a Ucrânia não atacar
grande parte do território da Rússia permite a muitos o luxo de ignorar a
guerra.
É
também fundamental não haver uma alternativa viável a Putin. O
Presidente russo garantiu isso prendendo, exilando ou assassinado os
líderes oposicionistas. Organizando teatros televisivos que deixaram
toda a elite governativa publicamente comprometida com o apoio à
invasão. Claro que essa elite já está comprometida por décadas de
acumulação cleptocrática que torna qualquer mudança de regime muito
arriscada para muita gente com muito a perder. Putin também não tem um
parlamento ou um partido a que tenha de prestar contas. O partido Rússia
Unida, que domina a Duma, é um instrumento de Putin. E não há
verdadeiros partidos de oposição, o Partido Comunista da Rússia ou o do
falecido Zhirinovsky são igualmente nacionalistas e belicistas. Por fim,
um outro número importante é o do autoexílio de 500 mil a um milhão de
russos, opostos à guerra ou simplesmente indisponível para serem
mobilizados. A saída desta população, a maior parte jovem, dinâmica e
educada é péssima para a Rússia — que já é o país da Europa com maior
redução da população prevista até 2050 —, mas serviu como uma válvula de
escape para o regime, privando a oposição de potenciais recrutas.
Outro
número que não podemos ignorar é que desta guerra resulta a maior crise
de refugiados da Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial. São
pelo menos oito milhões de refugiados ucranianos que fugiram para o
resto da Europa, e cinco milhões deslocados no interior do país para
zonas mais seguras. E talvez três milhões que se deslocaram para Rússia,
muitos alegadamente deportados, inclusive milhares de crianças
separadas das suas famílias. O que é certo é que estes ucranianos não
teriam abandonado a sua casa, a sua terra, se não fossem forçados a isso
por esta guerra de conquista, em que a Rússia chegou a ocupar 25% do
território ucraniano, e neste momento ainda ocupa 15%.
O
número que torna esta invasão russa da Ucrânia mais excecional é que
ela faz parte de uma pequena percentagem de menos de 20% das guerras
entre Estados, desde 1945. Mais de 80% das guerras dos últimos 80 anos
aconteceram no interior de um Estado — guerras intraestatais ou civis,
mesmo que internacionalizadas. Estas guerras civis podem ser muito
sangrentas, mas, pelo menos, não afetam um dos pilares da ordem
internacional: o respeito pelas fronteiras exteriores dos Estados e a
regra de essas fronteiras não poderem ser alteradas pela força.
Por
fim, esta guerra é absolutamente excecional porque é a primeira guerra
de conquista por uma grande potência desde o final da Segunda Guerra
Mundial. Desde então, por via da Carta das Nações Unidas de 1945, o
direito internacional deixou de aceitar o direito de conquista e a
guerra deixou de ser considerada um instrumento normal de ação dos
Estados. Podemos criticar muitas intervenções militares dos EUA nas
últimas décadas, mas elas nunca resultaram na anexação de qualquer
território ocupado. Saddam Hussein tentou conquistar o Kuwait em 1991,
mas a sua derrota reforçou a norma que proíbe guerras de conquista. Este
facto faz desta guerra o maior desafio à paz e à ordem internacional em
muitas décadas.
Os objetivos de guerra
As
Forças Armadas não existem para si mesmas, menos ainda em tempo de
guerra. Como terá dito o líder que levou França à vitória em 1918,
Georges Clemenceau: “A guerra é demasiado importante para ser deixada
apenas aos generais.” Capacidades e objetivos militares são meios para
atingir um fim maior. É por isso que a guerra é definida pelo famoso
general e estrategista Carl von Clausewitz como a “continuação da
política por outros meios”. É fundamental, portanto, olhar para os
objetivos declarados dos beligerantes e dos seus principais aliados.
Putin
anunciou uma “operação militar especial” com uma série de objetivos
incríveis, mas dois que devemos levar a sério, depois de devidamente
descodificados: “Desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia. Traduzindo
da novilíngua putinista: nazi significa todo aquele que se opõe ao
Kremlin; desmilitarizar significa privar a Ucrânia dos meios para se
defender da coerção russa. O verdadeiro objetivo estratégico de Putin
era, portanto, acabar com uma Ucrânia verdadeiramente independente,
derrubar o governo livremente eleito em 2019, colocar no poder um
fantoche pró-russo, como o seu compadre Medvedchuk, que acabasse com
qualquer aproximação ao Ocidente e estivesse disposto a formalizar a
cedência de território estratégico à Rússia.
O
objetivo acessório de Putin é demonstrar que a Ucrânia não existia, e
que o Ocidente estava decadente, dividido e era incapaz de ajudar. Putin
é um nacionalista de velha guarda, obcecado pelo velho império
russo-soviético. Uma Ucrânia democrática, próspera e pró-ocidental é um
constante desafio ao seu regime cada vez mais repressivo, mostrando que
há alternativas no espaço pós-soviético.
Desse
ponto de vista, a Rússia já perdeu esta guerra. Não conseguiu a vitória
rápida que provaria que a Ucrânia não era uma verdadeira nação. E, pelo
contrário, reforçou o nacionalismo ucraniano e tornou-o mais hostil à
Rússia. Uniu grande parte da Europa e os EUA no seio da NATO e da União
Europeia (UE) em oposição à Rússia. A Rússia queria uma demonstração
espetacular da sua força e acabou por demonstrar uma enorme fraqueza,
desde logo no campo militar.
Quais
são os objetivos estratégicos da Ucrânia? O principal é provar que
existe e resiste. Esse objetivo foi alcançado apesar da enorme
assimetria em poder estrutural, seja em termos de dimensão do
território, da população ou de meios militares em comparação com a
Rússia. Um segundo objetivo, não menos fundamental, é mostrar que a
Ucrânia merece o apoio dos países ocidentais, desde logo através de uma
resistência eficaz, mas também do combate à corrupção. Sem esse apoio
ocidental, uma resistência prolongada seria muito mais difícil, se não
impossível. Também isso tem sido alcançado. Até ao ano passado, a
Ucrânia não era vista como uma candidata viável à adesão à União
Europeia. Hoje, é formalmente país candidato. Talvez seja um entusiasmo
do momento, e a adesão não será fácil, mas, para já é um ganho claro dos
ucranianos.
Para
os países ocidentais, em particular os EUA e a maioria dos países
europeus — sobretudo, os mais próximos ou vizinhos da Rússia —, o
objetivo estratégico inicial era fazer pagar um preço elevado pela
invasão russa. E, assim, evitar a normalização do regresso do direito de
conquista e das guerras de agressão pelas grandes potências, criando um
perigoso precedente gerador de desordem regional e global. Para os
países europeus vizinhos da Rússia e da Ucrânia, a prioridade era travar
esta agressão russa, evitando que os ameaçasse diretamente. Para os
EUA, mas também para os principais aliados ocidentais, o objetivo era
travar a Rússia de uma forma que não levasse a um alargamento da guerra a
países da NATO e a uma escalada para uma Terceira Guerra Mundial,
potencialmente nuclear.
O
trágico incidente, em novembro de 2022, que causou a morte de dois
civis polacos mostrou que os países da NATO iriam respeitar essa linha
vermelha mesmo em circunstâncias extremas. E a Rússia, apesar de toda a
propaganda de sentido oposto, também mostrou não ter interesse em
alargar a guerra para um conflito direto com países membros da Aliança
Atlântica, muito mais capazes de lhe resistir militarmente do que a
Ucrânia. É por isso, também, que os países ocidentais deixaram claro,
desde o início, que não iriam envolver-se diretamente com tropas no
conflito. É uma limitação importante da eficácia do envolvimento
ocidental, mas essa estratégia tem sido relativamente bem-sucedida. Por
isso, é tão importante na estratégia da Rússia a desinformação que visa
desmobilizar o apoio ocidental à Ucrânia, procurando apresentar as armas
que ajudaram a travar a agressão russa como uma ameaça à paz e não como
uma ameaça ao imperialismo de Putin.
E
o resto do Mundo? Está longe da guerra. Muitos países pobres e
periféricos veem no conflito um obstáculo ao seu desenvolvimento e uma
questão europeia, têm como prioridade defender pragmaticamente os seus
interesses em boas relações de cooperação e comércio com os dois lados.
Ainda assim, convém recordar que a maioria dos países do dito Sul Global
não apoia a Rússia, e na Assembleia Geral da ONU esse grupo condenou a
invasão russa; a maioria dos outros não foi além de abster-se de a
condenar ou de recusar cortar relações económicas com Moscovo. Nem mesmo
potências emergentes como a China ou a Índia se mostraram dispostas a
sacrificar os seus interesses para apoiar militarmente a Rússia. Só
mesmo Estados párias, como o Irão ou a Coreia do Norte, a Eritreia ou a
Síria, viram na guerra uma oportunidade de reduzir o seu isolamento ou
de reforçar a sua cooperação militar com a Rússia.
As fases da guerra: da máxima assimetria até às trincheiras
Em
termos operacionais e táticos, a guerra tem passado por várias fases.
Numa fase inicial, tivemos uma guerra estruturalmente assimétrica. A 24
de fevereiro de 2022, a Rússia tinha uma vantagem média de 10 para um em
termos de aviões de combate, de tanques, de artilharia ou meios navais.
Isso, e acreditar na sua própria propaganda, levou a liderança russa a
subestimar a resistência ucraniana. Moscovo pensou poder fazer uma
operação especial e atingir os seus objetivos em poucos dias. Daí ter
lançado forças aerotransportadas sobre um aeroporto perto de Kiev,
tentando, aparentemente e ao mesmo tempo, usar forças especiais para
eliminar Zelensky e decapitar a resistência organizada ucraniana. Foi
esta arrogância que levou à multiplicação das linhas de avanço russo sem
a necessária coordenação ou apoio logístico. Putin apostou também na
cumplicidade dos responsáveis das Forças Armadas da Ucrânia a cuja
rendição e cooperação apelou publicamente.
A
expectativa do Kremlin era algo semelhante ao sucedido na Crimeia, em
2014, em Kabul, em 1979, ou em Praga, em 1968. A Ucrânia não preparou
grandes linhas defensivas, trincheiras ou campos de minas, ou barreiras
antitanque na fronteira. Mas foi muito eficaz em guerra urbana e numa
guerra irregular com ataques surpresa e emboscadas às longas, pesadas e
lentas colunas blindadas russas. Fê-lo graças à determinação e heroísmo
dos ucranianos; também ajudou o treino e doutrina NATO, e o fornecimento
in extremis de armamento portátil ocidental, como os mísseis antitanque
Javelin, antiaéreos Stinger ou drones.
Falhado
esse esforço nos primeiros meses, a Rússia decidiu focar-se nas regiões
do leste e do sul, em particular no Donbas, procurando tirar partido da
sua vantagem inicial em quantidade e alcance da artilharia. A Ucrânia
apostou em reforçar as suas linhas defensivas por toda a linha da
frente, mas também procurou, à medida que ia adquirindo artilharia
ocidental mais precisa, mais poderosa e de maior alcance — os famosos
HIMARS —, preparar eficazmente o terreno para desencadear
contraofensivas bem sucedidas. Seja explorando a fraqueza das linhas
defensivas russas e a desorganização do comando na zona de Kharkiv, seja
estrangulando as vias de apoio logístico às forças russas na margem
ocidental do Dniepre, em torno da cidade de Kherson.
Estas
derrotas levaram a liderança russa a uma dupla escalada. Primeiro, por
via da mobilização parcial de setembro de 2022. Segundo, pela aposta
numa estratégia de guerra total contra a população civil ucraniana
recorrendo a uma guerra aérea indiscriminada contra os principais
centros urbanos e contra infraestruturas críticas com mísseis e drones
iranianos, com vista a tentar quebrar a capacidade e, sobretudo, a
vontade de resistência dos ucranianos. Essa estratégia não parece ter
resultado — e a história do poder aéreo, desde o Blitz nazi contra os
britânicos até aos bombardeamentos aliados contra a Alemanha nazi, não
leva a crer que, por si só, tenha resultados decisivos.
Nas
condições adversas do outono e do inverno, acabou por se consolidar uma
fase da guerra predominantemente defensiva, uma guerra de trincheiras
de que o precedente mais conhecido é a Primeira Guerra Mundial na Frente
Ocidental, entre finais de 1914 e inícios de 1918. O resultado são
batalhas que se arrastam durante meses. Foi assim com Verdun na Primeira
Guerra Mundial. É assim com a batalha de Bakhamut, que se vem
arrastando desde o verão de 2022, na presente guerra. Elas resultam em
enormes baixas, sobretudo dos atacantes, mas também dos defensores, e
avanços mínimos.
O
que nenhum dos lados conseguiu, até ao momento, foi demonstrar uma
consistente capacidade de levar concretizar com sucesso grandes
operações ofensivas de armas combinadas e multidomínio. Ou seja, ruturas
da frente depois exploradas e alargadas, combinando múltiplas unidades
terrestres, aéreas e navais e outras capacidades para alcançar grandes
avanços no terreno.
No
caso da Rússia, esta guerra de movimento ofensiva só resultou na fase
inicial da campanha, sobretudo no sul, onde a resistência ucraniana
estava mais desorganizada e as forças russas tinham apoio logístico
próximo na Crimeia. É estranho, dado o diferencial de meios e o facto de
a Rússia ter anunciado sucessivos reforços de investimento na
modernização e reforma das suas Forças Armadas. A explicação mais
convincente deste mistério é o facto de o sistema militar russo ser
muito negativamente condicionado pelo respetivo sistema político e
social. Na Rússia temos um regime assente não só na corrupção mas também
num grau crescente de lealdade cega e de compadrio. Ora, sem promover a
iniciativa e o mérito, dificilmente se terá forças militares capazes de
adaptação rápida e eficaz.
Essa
dificuldade é natural no caso da Ucrânia, que tinha um equipamento
militar muito insuficiente e envelhecido, em grande parte de origem
soviético. A grande maioria dos países do Ocidente tinha-se limitado,
até fevereiro de 2022, a treinar alguns oficiais ucranianos, para evitar
provocar a Rússia ou perturbar esforços negociais, recusando-se a
fornecer armamento ocidental avançado até ao momento da invasão. Apesar
de tudo foi a Ucrânia quem — já dotada de algum equipamento ocidental —
mais se aproximou de uma guerra de manobra ofensiva, nas operações que
permitiram recuperar o território em torno de Kharkiv e Kherson. Mas
eram regiões mal defendidas ou difíceis de defender. Veremos se nos
próximos meses continuará a prevalecer uma guerra defensiva ou se
passaremos a uma nova fase mais ofensiva de guerra de movimento para a
qual os objetivos dos dois lados continuam a apontar.
Guerra com fim à vista?
É
provável que a guerra continue e até se intensifique nos próximos
meses. Porquê? Os dois lados continuam a ter objetivos mínimos que só
podem ser alcançados pela via militar. A Rússia não está disposta a
negociar os territórios que anexou formalmente, nem parece abdicar da
redução da Ucrânia ao estatuto de satélite. Confia que, com o tempo, os
EUA e outros aliados da Ucrânia se cansarão de a apoiar. A Ucrânia só
está disposta a negociar no pressuposto de uma retirada russa de todo o
seu território, inclusive a Crimeia, além de exigir indemnizações pelos
danos causados e a punição de crimes de guerra. Pode ser que parte
dessas exigências sejam maximalistas. É possível que novas ofensivas
sejam mais difíceis, depois de os dois lados terem mobilizado mais
tropas e terem multiplicado linhas defensivas, vulgo trincheiras. É
provável que ambos os lados acabem por esgotar os seus meios e vontade
de continuar a combater. Mas esse não parece ser o caso para já. Apelos
vagos à paz, sem qualquer proposta concreta de como a atingir, ignoram
esta realidade e não oferecem qualquer alternativa viável.
O
que pode mudar e alterar de forma importante os dados da questão? Dois
aspetos fundamentais. Primeiro, se um dos lados for capaz de aumentar
significativamente a sua eficácia militar, nomeadamente em operações
ofensivas, sempre as mais exigentes. Não sabemos até que ponto a Rússia
terá aprendido a lição dos seus falhanços e terá a capacidade de uma
mudança de fundo do seu modus operandi em função disso. Também não
sabemos se a Ucrânia terá atingido o limite dos seus até aqui notáveis
esforços de adaptação e se o novo armamento e munições ocidentais
chegarão em quantidade e com rapidez suficientes para fazer uma
diferença significativa no campo de batalha.
A
história mostra-nos que é arriscado prever o desfecho de um conflito.
Até porque o fim de uma guerra nunca é apenas uma decisão racional, mas
também emocional. A história também nos mostra que uma paz formal e
negociada não é a única saída possível para uma guerra."
O
segundo dado seria uma mudança no perfil ou nível de empenho das
alianças dos dois lados. Uma guerra prolongada é essencialmente uma
guerra de erosão, uma prova de resistência muito condicionada pela
disponibilidade dos meios para continuar a guerra. A coligação de
aliados da Ucrânia representa mais de 50% da economia global, a Rússia
representa 3% do total. Isto significa que a Ucrânia — apesar de ter
visto a sua infraestrutura e economia serem deliberadamente visadas e
destruídas — tem a vantagem de ter o apoio das economias mais ricas e
mais avançadas do mundo.
Os
países ocidentais são, no entanto, regidos por regimes democráticos
pluralistas, em que existem verdadeiras eleições com a possibilidade de
alternância no poder — temos várias, e importantes, nos próximos dois
anos, em particular em 2024. O significa que os governos ocidentais são
mais suscetíveis às pressões de uma opinião pública eventualmente
cansada com os custos de uma guerra que se prolongue sem ganhos
evidentes. As sociedades abertas e livres são também mais vulneráveis à
desinformação russa.
Outra
alteração fundamental seria a Rússia conseguir apoios militares
significativos para além do Irão e da Coreia do Norte. Em particular, se
a China decidir que não pode deixar Putin perder, e alterar a sua
posição passando a apoiar a Rússia militarmente, tecnologicamente e
economicamente de forma significativa e visível, isso alteraria
significativamente o equilíbrio de forças.
A
história mostra-nos que, por todas estas razões, é arriscado prever o
desfecho de um conflito. Até porque o fim de uma guerra nunca é apenas
uma decisão racional, mas também emocional. É muito difícil saber qual o
verdadeiro limite dos meios e da vontade dos dois beligerantes. Os EUA
fizeram muitas contas com os primeiros grandes computadores para
calcular exatamente o limiar de resistência do Vietname do Norte aos
ataques aéreos norte-americanos, mas todas esses cálculos saíram
furados. Uma sondagem de final de novembro mostrava 95% dos ucranianos
decididos a combater mesmo com contínuos bombardeamentos das suas
cidades. O único centro de sondagens minimamente credível na Rússia
mostra que a maioria dos russos diz apoiar o esforço de guerra, mas
também que uma percentagem crescente desejaria a paz.
A
história também nos mostra que uma paz formal e negociada não é a única
saída possível para uma guerra. A Segunda Guerra Mundial não terminou
com um tratado formal de paz mas com uma rendição incondicional que
deixou muito por resolver entre Aliados cada vez mais desavindos. Um
tratado de paz só surgiu, em 1975, com a Conferência de Helsínquia. A
Guerra da Coreia terminou, de facto, em 1953, mas isso não levou a um
acordo de paz nem a uma verdadeira pacificação da península coreana, mas
sim a uma paz armada e tensa. Parece-me muito mais provável que haja um
congelamento — temporário ou prolongado — do conflito do que uma paz
negociada, dado o extremar de posições dos dois lados com o prolongar do
conflito e o aumento do seu custo. Na melhor das hipóteses, teremos um
cessar-fogo mais formalizado. Depois do que se passou, as relações da
Rússia de Putin com a Europa e os EUA dificilmente voltarão a ser o que
eram. Tudo isto tem implicações importantes na ordem global.
Uma guerra com forte impacto na ordem global
O
que podemos concluir desde já relativamente ao impacto desta guerra em
termos de grandes tendências na política global? Confirma-se que a
transição de poder é um momento de alto risco e elevada probabilidade de
conflito armado. Estamos a assistir ao fim da ordem estabelecida com o
fim da Primeira Guerra Fria, em 1991, em que tínhamos uma única grande
potência, os EUA, capaz de projetar poder a nível global em todas as
dimensões relevantes — económica, militar, tecnológica e outras. Esse
declínio relativo e o surgimento de novas grandes potências globais ou
mesmo regionais estimula ambições de revisão, inclusive violenta, da
ordem vigente. A Rússia é uma potência revisionista especialmente
perigosa, porque sendo o maior país do mundo pela dimensão do seu
território, controlando recursos importantes que lhe têm permitido
disfarçar outras fragilidades da sua economia, foi claramente o grande
perdedor do final da Guerra Fria, e parece apostada em reconquistar pela
força militar uma esfera de influência que não consegue manter de outra
forma. Recordo que a Organização do Tratado de Segurança Cooperativa —
uma espécie de NATO de iniciativa russa, criada em 1992 — começou com
nove Estados pós-soviéticos e já só tem seis.
Em
segundo lugar, temos um acelerar da tendência para uma Segunda Guerra
Fria. Claro que ela não será igual à anterior, pois nenhuma guerra o é.
Mas temos novamente uma forte tendência para a fragmentação regional da
ordem globalizada, com a formação de blocos securitários, económicos e
ideológicos liderados por grandes potências nucleares com visões opostas
do mundo. A valorização da dimensão militar e de segurança favorece a
emergência de blocos securitários, mas também económicos e ideológicos.
Depois da emergência sanitária do Covid-19, a invasão russa deixou claro
que em muitos setores críticos — como a energia ou a tecnologia — é
demasiado arriscado ficar excessivamente dependente apenas de um
fornecedor, e pensar apenas no lucro. Isto não significa uma total
desglobalização, que seria demasiado custosa, mas é já detetável um
esforço de redução da excessiva dependência externa em setores críticos.
Também é claro que nesta Segunda Guerra Fria a China e a Rússia
trocarão os papéis que desempenharam na Primeira Guerra Fria
(1945-1991). Desta feita, será Pequim a ter um papel dominante. Como
resultado desta guerra, Moscovo ficou mais dependente da China em termos
económicos e tecnológicos, como a única alternativa realista aos
mercados e investidores do Ocidente.
Neste
tipo de ordem internacional, apesar de grandes tensões, e muitos
conflitos indiretos, a existência de vastos arsenais nucleares deve
impedir a escalada para grandes guerras entre grandes potências. Isso
implica disciplina estratégica das grandes potências e canais de
comunicação para evitar o risco de escalada acidental ou descontrolada.
Resta ainda perceber se esta Segunda Guerra Fria irá resultar numa ordem
bipolar dominada pelos EUA e a China, em que haverá tentativas fracas e
relativamente ineficazes de outros Estados para se manterem
não-alinhados. Ou se iremos ter uma ordem multipolar — com várias
grandes potências globais e regionais —, mesmo que algo assimétrica, com
os EUA e a China a terem mais peso do que as demais potências.
Em
terceiro lugar, como resultado da invasão russa da Ucrânia estamos a
viver uma guerra de agressão e conquista imperial, uma guerra de
resistência nacional e, sim, também uma guerra indireta ou por
procuração (proxy). Isso não é nenhum segredo e também não é ilegítimo,
ilegal, ou imprevisto. Nada na Carta das Nações Unidas impede um país
soberano de procurar o armamento de que precisa para exercer o seu
direito a defender-se. Nada impede, bem pelo contrário, um Estado
soberano de ajudar outro na sua legítima defesa contra uma agressão
externa. Mais, os EUA e outros países ocidentais avisaram a Rússia de
que se invadisse a Ucrânia sofreria sanções sem precedentes e que iriam
dar ao país invadido as armas para se defender. Este tipo de apoio
aconteceu centenas de vezes durante a Guerra Fria de 1945-1991.
A
existência de guerras indiretas é, aliás, uma das razões que explica
outra tendência global que esta invasão confirma: frequentemente, desde
1945, as grandes potências não conseguiram vencer guerras assimétricas
em que pareciam ter vitória garantida. Uma guerra indireta (ou por
procuração) não significa, porém, que os combatentes locais sejam meras
marionetas irrelevantes. Também não significa que seja legítimo, ou
legal, ou expectável que daí resulte um alargamento ou uma escalada do
conflito. Em termos de evolução dos conflitos armados, esta guerra
confirma que numa Guerra Fria são expectáveis mais conflitos indiretos
precisamente porque são uma forma de evitar uma grande guerra entre
potências nucleares.
O
que invasão russa também confirma é que a agressão armada — e,
sobretudo, uma guerra de conquista que procura alterar pela força
fronteiras internacionais — tende a gerar grandes coligações contra o
país agressor. Na Segunda Guerra Mundial foi assim contra a Alemanha
nazi. Na Guerra Fria foi assim contra a União Soviética. Hoje é assim
contra a Rússia de Putin, que violou o memorando de Budapeste que
garantia as fronteiras da Ucrânia independente em troca das suas armas
nucleares. É assim contra Putin, que depois de ocupar a Crimeia, em
2014, garantiu publicamente que não queria mais territórios ucranianos.
O
conflito também mostrou a enorme vantagem de alianças formalizadas e
fortemente institucionalizadas como a NATO para dissuadir potências
agressivas. A Ucrânia não é mais vulnerável em termos geopolíticos do
que os Países Bálticos, bem pelo contrário. Os Bálticos são países bem
mais pequenos e menos populosos, e muito menos defensáveis que a
Ucrânia. A conclusão de que não se pode confiar em nenhum compromisso
com a Rússia revisionista de Putin, e que a melhor garantia de segurança
é a pertença à NATO, tem levado a sucessivos alargamentos da Aliança
Atlântica a leste, inclusive com o recente pedido de adesão da Finlândia
e da Suécia, depois de décadas ou séculos de neutralidade. É um
irritante para Putin, mas só tem de culpar a si próprio.
Por
fim, esta guerra confirmou a importância fundamental do diferencial de
qualidade tecnológico, mas também ao nível organizacional e doutrinal,
das forças militares ocidentais. Preservar esse diferencial, que tem
caracterizado a forma ocidental de fazer a guerra durante séculos, será
fundamental. Será também um grande desafio num período de inovação muito
acelerada.
Em
suma, a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin é uma guerra em curso.
E, como todos os conflitos, é o reino da incerteza, não sendo possível
garantir qual será o seu desfecho ou impacto definitivo. Mas podemos
afirmar com segurança que o 24 fevereiro de 2022 será um marco em
futuros livros de História da Europa e do Mundo pelo impacto que já teve
na ordem regional e global. Podemos também ter a certeza de que estamos
a viver num Mundo mais imprevisível e perigoso. Procurar uma paz a
qualquer preço neste momento pode ser um desejo bem intencionado, mas
ignora o risco de que daí possam resultar mais guerras de agressão no
futuro.
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi
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