BLOG ORLANDO TAMBOSI
Embora a lei antitruste tenha caído só nos anos 70, o darwinismo social tem origens filosóficas que se confundem com as origens do liberalismo econômico (a fisiocracia) e com a teoria da evolução, a qual teve um papel importante no divórcio entre religião e ciência. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Por
que a lei antritruste saiu de moda? O liberalismo de Hayek era
favorável à lei antitruste. Foi só com a Nova Escola de Chicago, no
final da década de 70, que o liberalismo passou a ser entendido como
ausência de intervenção estatal. Ela foi tão especial assim porque
conseguiu, em Continental TV v. GTE Sylvania (1977), convencer
“cientificamente” o Supremo da ineficácia da lei antitruste. Quem manda
nos EUA é o Supremo. Podemos especular sobre as razões que movem o
Supremo, e com isso teríamos uma resposta à pergunta. Mas há vários
tipos de respostas que se podem dar a uma pergunta. Ao perguntarmos
sobre o porquê de os EUA terem derrubado Saddam Hussein, uma resposta
válida é a do interesse pelo petróleo. É um objeto de muito interesse
para analistas geopolíticos, mas eu não sou analista geopolítica.
Quando
os EUA derrubaram Saddam, não disseram “vou derrubar aquele presidente e
tomar conta do país porque ali há petróleo”. Isso seria inaceitável
perante a comunidade internacional, e mesmo quem faz algo errado procura
se sentir bem consigo mesmo. Então a desculpa dada importa. No caso,
além da acusação falsa de posse de armas químicas, havia uma
justificativa filosófica: implementar a democracia. O mundo dos homens é
muito mais que matéria (petróleo), então é claro que as justificativas
dizem muito sobre o que vai nas suas cabeças. Para dar uma resposta
filosófica a essa pergunta, John Gray escreveu Missa Negra: Religião
apocalíptica e o fim das utopias, no qual discorre sobre a transmutação
do milenarismo cristão na ideia hegeliana, secular, de Fim da História.
Com os marxistas, o Homem atravessaria um vale de lágrimas até fazer a
Revolução e chegar ao comunismo, um milenarismo laico. Com os
neoconservadores, o Homem atravessaria um vale de lágrimas até derrotar o
comunismo e implementar democracias com livre mercado no mundo inteiro,
e eis o seu milenarismo laico. Tanto Marx quanto Fukuyama (o guru do
neoconservadorismo) eram hegelianos.
Petróleo era bom, claro. Mas o que estava em xeque era muito mais que petróleo: era uma nova visão milenarista do mundo.
Por que motivos filosóficos a lei antitruste saiu de moda?
Perfeição do mercado era perfeição da natureza
Por
trás da demonização da intervenção estatal está a crença na perfeição
do mercado. Nos últimos séculos houve uma série de movimentos que
exaltavam o mercado em oposição ao Estado. Os primeiros de todos devem
ter sido os fisiocratas franceses, que eram contemporâneos do Iluminismo
e, portanto, anteriores à consolidação da Revolução Industrial. Eles
exaltavam os fazendeiros como produtores de riqueza, defendiam o livre
comércio e pregavam uma vida natural no campo como superior à das
metrópoles. O maior nome do movimento é o de Quesnay.
O
período do Iluminismo francês coincidiu com o triunfo da física
newtoniana. Newton bebeu muito do estoicismo. Fez de Deus um grande
relojoeiro; e do universo, um grande relógio, cuja perfeição se revela
precisamente na ausência de intervenção para o seu funcionamento. A
natureza tem suas molas e roldanas que funcionam mecanicamente graças ao
seu engendramento perfeito e à sabedoria do seu Artífice. Nessa
cosmovisão, faz sentido enxergar a riqueza como algo que o homem tira da
terra, e a intervenção burocrática como algo corrupto e usurário. Os
fisiocratas acreditavam, como diz o seu nome, no governo da natureza. O
livre mercado seria algo natural e a riqueza vinha da terra.
Eles influenciaram Adam Smith, e o liberalismo econômico lhes deve muito.
De Malthus a Spencer
No
final do século XVIII, quando a Inglaterra já vivia a Revolução
Industrial, Thomas Malthus publicara a sua notória previsão de fome
generalizada. A população cresceria mais que a produção de comida;
assim, a fome seria inexorável, e por isso a Inglaterra deveria deter os
alívios à pobreza existentes desde a Idade Média. O único efeito da
ajuda seria a inflação. Vem dessa época a noção de que, quanto menos
filhos tivermos, mais ricos seremos (é uma visão marcadamente urbana, já
que na lavoura mais filhos são mais braços). O mundo é um depósito de
recursos e, quanto menos gente houver para dividi-los, melhor.
O
trabalho de Malthus teve profundo impacto sobre o anglicano Charles
Darwin. Após os seus estudos, concluíra que o mundo é um depósito de
recursos e os seres vivos evoluem enquanto lutam entre si para
acessá-los e garantirem a própria sobrevivência. O mundo-relógio de
Newton, tão inspirador para teólogos e cientistas britânicos, vem por
água abaixo: o mundo na verdade é uma ordem aparente que brota do caos a
cada momento. Parece-se mais com a fórmula “átomos e vazio” do
epicurismo, teoria rival do estoicismo.
Da
biologia, essa ideia voltou às ciências sociais por meio de Herbert
Spencer, o pai do darwinismo social. Spencer também acrescentou algum
conforto psicológico a essa cosmovisão ao introduzir a teleologia, isto
é, a ideia de que há uma finalidade em todo esse processo aparentemente
cego e caótico. O mundo não seria caótico e a natureza não seria cega;
em vez disso, a natureza, sábia, vai purgando os piores e, nesse
processo, cria os melhores.
O
aspecto prático de Spencer coincide com o de Malthus: não devemos
ajudar os pobres. Com Spencer, porém, não se trata mais de uma simples
recomendação prática. Agora pode-se dizer que ajudar os pobres é algo
contra natura.
A
teoria caiu como uma luva no contexto cultural calvinista. Esta
corrente teológica acredita que uma pequena parcela da humanidade está
predestinada ao Reino dos Céus, enquanto que a maioria está predestinada
a ficar de fora. A evolução pode ser interpretada como uma purga
promovida pelo próprio Deus, de modo que agir contra a pobreza – e as
leis de mercado por detrás dela – seria atentar contra uma ordem justa
em si mesma. Dificilmente algum cristão teria coragem de defender isso
nos dias de hoje, mas os cientistas ateus dos países de língua inglesa
não são lá flor que se cheire (vejam este artigo de Flavio Gordon). Faz
sentido chamar esse ateu de pós-calvinista. No entanto, cristãos,
sobretudo se não forem católicos, são capazes de aceitar que o mercado é
justo e o Estado é mau.
O darwinismo social atravessa o Atlântico
Malthus,
Darwin e Spencer eram todos ingleses. No século XIX, os EUA eram uma
potência econômica nascente e suas universidades – cujo modelo seria
copiado pelo mundo – ainda engatinhavam. Nessa época, que coincidiu com
institucionalização das ciências nos EUA, o darwinismo social estava a
todo vapor naquele país.
Quanto
a esse assunto, recomendo o livro Evolução, raça e ambiente: Darwinismo
Social e sua formação na Geografia americana em Ellsworth Huntington e
Ellen Semple (Sagga, 2022), de Fernando José Coscioni.
Nele
aprendemos que a disciplina da geografia humana surgiu nos Estados
Unidos como uma disciplina darwinista social cujos objetivos eram
legitimar por meios científicos a doutrina do Destino Manifesto. A
geografia humana surgiu junto com a antropologia cultural, a primeira
dizendo que o homem era determinado por uma combinação entre ambiente,
raça e cultura (focando na raça); e a segunda, liderada por Franz Boas,
focava na cultura para mostrar que raça não significava lá grande coisa.
Ellsworth
Huntington (1876 – 1947, não confundir com Samuel Huntington)
hierarquizava as civilizações com um pé nas costas, como se os valores
fossem inteiramente objetivos. Ele chegou a escrever para geógrafos do
mundo inteiro solicitando mapas de avanço civilizacional. A ideia
pareceu um disparate para muitos dos seus colegas, embora hoje seja
banal fazer mapas de IDH (que eu acho um medidor meio burro).
Sei
que todos estão de saco cheio de relativismo cultural, então devo dar
um exemplo de questão cientifica a ser investigada por E. Huntington:
Por que os australianos são superiores aos ingleses? Perguntei ao autor
do livro se o distinto geógrafo embasa a afirmação de que os
australianos são superiores aos ingleses. De fato, ele não embasa e
parte do pressuposto de que seja verdade. Em seguida aponta como causa
da superioridade dos australianos o fato de descenderem de imigrantes. A
emigração selecionaria os mais aptos a suportar uma viagem e os mais
arrojados, por isso o estoque de ingleses ancestrais dos australianos
era superior ao estoque de ingleses ancestrais dos ingleses. Aí se
aprende que para o geógrafo o amor à própria terra é ruim, coisa de
gente pouco saudável e arrojada, de modo que um país de elite seria um
país de imigrantes, de preferência daqueles que correram risco de vida
para chegar ao local.
Não
é nada ousado dizer que Huntington promoveu a Austrália porque daria
muito na vista exaltar a terra pátria. Quanto a Ellen Semple (1863 –
1932), um de seus feitos na área da geografia foi importar para os EUA a
teoria alemã do Espaço Vital (Lebensraum). Casando o Espaço Vital de
Ratzel com o darwinismo social de Huntingon, pôde-se descrever a
história dos EUA como a vitória da raça anglo-saxã sobre a hispânica,
numa competição pelo Espaço Vital. Os EUA seriam fruto da sobrevivência
do mais apto. Seu próprio sucesso é prova científica de que são
predestinados, seja por Deus ou pela natureza.
De volta à vaca fria
Desde
1898, os Estados Unidos são a principal potência das Américas; e desde
1918 são a principal potência da cristandade (e ex-cristandade)
ocidental. O que vem de lá, seja bom ou ruim, se impõe cada vez mais
como normal Ocidente afora.
O
darwinismo social é uma dessas coisas. É uma cosmovisão à qual as
pessoas aderem sem pensar, então aos poucos as pessoas passaram a achar
que o mercado é uma coisa justa em si mesma, que pune os inaptos e
premia os aptos, de modo que cabe a cada um de nós jogar conforme as
suas regras e não admitir intervenção estatal, nem mesmo se o Estado for
democrático. Ao meu ver, é uma sacralização indevida.
Embora
a lei antitruste tenha caído só nos anos 70, o darwinismo social tem
origens filosóficas que se confundem com as origens do liberalismo
econômico (a fisiocracia) e com a teoria da evolução, a qual teve um
papel importante no divórcio entre religião e ciência.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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