BLOG ORLANDO TAMBOSI
A união entre os movimentos totalitários e o antissemitismo se tornou cada vez mais agressiva no século XX, seja com os pogroms russos antes, durante e depois da Revolução de 1917, seja com os campos de concentração nazistas — ou então com as teorias conspiratórias fomentadas pela elite intelectual do Ocidente. Martim Vasques da Cunha para a Gazeta do Povo:
O
uso exagerado do termo “terrorista”, principalmente entre membros da
casta progressista que se opõem a movimentos considerados de
“extrema-direita”, esconde um outro problema, extremamente complicado, e
que tem repercussões no mundo ocidental: o do antissemitismo.
Para entendermos melhor a conexão entre esses dois temas, tão díspares na superfície, precisamos analisar quatro eventos.
O
primeiro foi o debate acalorado sobre a declaração feita pelo
economista Paulo Nogueira Batista (ex-diretor do Fundo Monetário
Internacional, o FMI) ao jornalista Luís Nassif (do veículo GGN), a
respeito da indicação de outro economista, Ilan Goldfajn, para o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BDN). Ele alegou que o sobrenome de
Goldfajn era “impronunciável” e que era alguém a serviço dos interesses
de Israel. Obviamente, a celeuma se espalhou como rastilho de pólvora.
Em pouco tempo, associações judaicas — como a Confederação Israelita do
Brasil — condenaram Batista, afirmando que ele fez uma “manifestação de
cunho antissemita”. Logo depois, Luís Nassif defendeu o seu entrevistado
e afirmou que o rótulo do antissemitismo era uma “cortina de fumaça”
fomentada para quem criticava o estado de Israel — o único responsável,
segundo o jornalista, por usar o famigerado apartheid como método de
governo em relação aos palestinos da região.
O
segundo evento foi a omissão deliberada da mídia norte-americana em
torno de outra celebridade que fez afirmações claramente antissemitas e
que até agora não foi punida (ou “cancelada”) por isso. Estamos falando
da atriz Whoopi Goldberg, que, apesar do sobrenome, não é judia, mas sim
uma militante convicta do “fascismo de esquerda” que permeia a cultura
progressista dos EUA. Ela divulga crenças básicas desse movimento de
forma explícita há alguns anos e todas, em maior ou menor grau, envolvem
o ódio escancarado ao judaísmo — entre eles, a negação do Holocausto; a
defesa da proibição da graphic novel 'Maus', de Art Spielgelman, como
uma obra de arte que perturbaria os seus leitores por dramatizar a
perseguição feita pelos nazistas na Alemanha contra o povo hebreu; e de
que os judeus alemães sofreram menos do que os habitantes da Europa
Oriental durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos protestos da Liga
Anti-Difamação, Goldberg emitiu apenas algumas notas burocráticas de
desculpas e, mesmo assim, permaneceu como uma das apresentadoras do
programa The View, da TV ABC.
O
militante comunista Jones Manoel, que chegou a concorrer nas últimas
eleições a governador de Pernambuco pelo Partido Comunista Brasileiro, conhecido por suas declarações cheias de ódio, afirmou no último sábado (28), em publicação no Twitter, que "o sionismo é um projeto racista". Foi respondido por André Lajst,
presidente-executivo da StandWithUs Brasil, organização que combate o
antissemitismo: "[Jones Manoel é um] racista [que] tenta se apropriar da
causa dos outros e ainda dita o que é e o que não é ser antissemita e
judeofobico. Tenta de forma desonesta adicionar adjetivos obviamente
falsos ao movimento nacional judaico e ignora a história e fatos, típico
de quem defende ditaduras".
A
pergunta que se faz sobre as repercussões das polêmicas de Batista,
Goldberg e Manoel é: se eles não fossem progressistas, suas carreiras
seriam prejudicadas? Vejam o caso do cantor e compositor Kanye West, por
exemplo, que fez pronunciamentos de mesmo teor, e já foi devidamente
expulso da mídia, com toda a razão. A diferença é que West não pregou o
evangelho da esquerda identitária desde o início da sua conturbada
carreira e sempre foi considerado uma “pedra no sapato” no ambiente
cultural dos EUA. Já Batista e Goldberg continuam como estão, e até
possuem seus apologetas.
O assassinato
O
que nos leva ao quarto evento, que não é tão recente assim, mas que
pode nos ajudar a compreender melhor o que está em risco. No maravilhoso
livro 'Can The “Whole World” Be Wrong?' (“Pode o ‘mundo todo’ estar
errado?”), de autoria do scholar e historiador americano Richard Landes e
publicado no final do ano passado, essa relação sombria entre
antissemitismo e progressismo pode ter sido acentuada neste começo do
século XXI com o assassinato de Muhammed Al Durah.
No
dia 30 de setembro de 2000, Al Durah, uma criança de doze anos,
acompanhada por seu pai, Jamal, foram filmados pelas câmeras de Talal
Abu Rahma no meio de um tiroteio entre as forças de defesa israelenses e
as palestinas, em plena Faixa de Gaza. As imagens foram veiculadas pelo
canal France 2, com a narração do respeitado jornalista Charles
Enderlin, que endossou por completo a suposição de que os tiros que
atingiram Al-Durah vieram do lado de Israel. Apesar da comoção
jornalística inicial em torno do fato (acompanhada pelo típico
exibicionismo moral criado pelos políticos), com o passar do tempo
comprovou-se que, na verdade, a filmagem foi editada de uma maneira em
que ninguém percebeu que o verdadeiro autor dos disparos era o exército
palestino.
Para
Landes, a histeria midiática ao redor do affaire Al-Durah foi a
“primeira grande fake news” dos anos 2000 – e todo o jornalismo
ocidental caiu na armadilha perpetrada pelos jihadistas (aqueles que
defendem que o Ocidente infiel deve se render ao Islã). Israel sempre
foi considerado o vilão dos conflitos no Oriente Médio desde a sua
fundação em 1948, mas agora a sua maldade — comparada ao nazismo —
atingia proporções inacreditáveis, segundo esse grupo de iluminados. Não
foi por acaso, aliás, que o assassinato de Al-Durah aconteceu um dia
após o início da Segunda Intifada, a continuação do período milenarista
da luta entre o estado árabe (autorrepresentado como um pequeno Davi) e o
estado judeu (visto como um aterrorizante Golias).
Esta
foi a base para uma guerrilha cognitiva que manipulou o coração e as
mentes das pessoas comuns, incentivando a elite global progressista a
acreditar na narrativa de Enderlin e Rahma, o que enfraqueceu as forças
de segurança e de inteligência necessárias para elas impedirem aquilo
que seria o evento mais horroroso dos nossos tempos — o atentado
terrorista contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, ocorrido em 11
de setembro de 2001 em Nova York.
É
justamente dessa fraqueza que se alimenta a simbiose entre progressismo
e antissemitismo. Afinal, o ódio aos judeus sempre existiu desde que o
mundo é mundo. O que diferenciaria o desejo pela “limpieza de sangre”
(como alegavam os ibéricos na época da Inquisição católica) dessa
ideologia que cresce de forma exponencial, mesmo em um período tão
supostamente evoluído e tolerante como o nosso, traumatizado pelo que
aconteceu com o Holocausto?
O papel de Karl Marx
O
pesquisador Walter Laqueur, no seu livro 'A Face Mutável do
Antissemitismo' (publicado recentemente pela É Realizações), afirma que o
termo é de 1879, cunhado pelo jornalista alemão Wilhem Marr. Contudo,
ele apenas popularizou a palavra, que já existia na boca de alguns
luminares da época, como o famoso compositor e maestro Richard Wagner.
Quando
ocorreu o caso de Alfred Dreyfus na França entre 1894 e 1906 — no qual
um jovem oficial do Exército foi acusado de traição, mas depois
descobriu-se que o ódio a ele por ser judeu foi fundamental para que
fosse condenado injustamente —, o antissemitismo não era mais um assunto
para iniciados, e sim um tópico que fazia parte da própria organização
do Estado moderno. Havia aqueles que, entre as frestas da burocracia,
sabiam em seus corações que a defesa dos judeus era um aspecto
civilizacional e havia aqueles que jamais admitiram para si mesmos que
este tipo de preconceito era o anúncio de uma catástrofe.
Um
dos sujeitos que fazia parte deste segundo grupo foi Karl Marx. Laqueur
observa que, apesar do avô de Marx ter sido um rabino, o judaísmo era
para ele uma vergonha, chamando-a de “a religião da usura”, e seu desejo
era se afastar tanto quanto possível daquilo que seus olhos viam como
uma tradição desprezível. Em 1844, Marx escreveu o ensaio “Sobre a
questão judaica”, no qual ele responsabilizava os judeus, em especial os
banqueiros Rothschild, por todos os males estruturais do mundo. “Mais
adiante na vida”, escreve Laqueur, “Marx não tocou mais na questão
judaica como tal, embora se referisse aos judeus na sua correspondência
privada quase sempre em teor negativo”.
A
união entre os movimentos totalitários e o antissemitismo se tornou
cada vez mais agressiva no século XX, seja com os pogroms russos antes,
durante e depois da Revolução de 1917, seja com os campos de
concentração nazistas — ou então com as teorias conspiratórias
fomentadas pela elite intelectual do Ocidente, todas baseadas na
paranoia fajuta de um documento supostamente histórico, mas que era
outra gigantesca fake news: Os Protocolos dos Sábios do Sião (publicado
em um obscuro jornal francês em 1903).
Walter
Laqueur conta que, “embora suas origens ainda sejam obscuras,
acredita-se que [o documento] tenha sido criado por agentes da polícia
secreta czarista (a Okhrana) na França antes da virada do século XX, mas
isso nunca foi provado conclusivamente”. O documento alega que “os
judeus usam todos os tipos de organizações secretas, e suas principais
ferramentas são a democracia, o liberalismo e o socialismo. Eles
estiveram por trás de todos os transtornos da história, apoiando a
demanda pela liberdade do indivíduo; também estavam por trás da luta de
classes, de todos os assassinatos políticos e de todas as grandes
greves. Os conspiradores induzem os trabalhadores a tornarem-se
alcoólatras e tentam criar condições caóticas, elevando os preços dos
alimentos e disseminando doenças infecciosas”.
"Fascismo de esquerda"
Qualquer
semelhança com o assassinato fabricado de Muhammed Al Durah pelas
supostas forças israelenses não é mera coincidência. É a mesma corrente
de notícias falsas que atinge os hebreus — e, consequentemente, o
Ocidente. E assim como o caso Al Durah permitiu que os jihadistas
ficassem cada vez mais estimulados a praticarem um ataque terrorista
contra os EUA, uma vez que a imprensa mundial ficou submissa à narrativa
dos palestinos contra Israel, o contágio nocivo das ideias insanas do
Protocolo deixou que a Europa se tornasse cada vez mais pusilânime a
respeito do ódio contra os judeus e legitimou, com o beneplácito das
suas elites, a ascensão de um sujeito como Adolf Hitler.
Assim,
a dificuldade de conceituar corretamente o antissemitismo implica no
fato de que o próprio Mal assume disfarces surpreendentes para enganar
até mesmo as pessoas mais esclarecidas. Por esse mesmo motivo, como bem
observou Carl Friedrich, é possível também perceber uma estrutura
constante no fenômeno, o qual se encontra na seguinte afirmação: a de
que o antissemitismo é “uma manifestação de decadência cultural, isto é,
do desgaste da crença fiel em normas éticas; ou, em palavras mais
fortes, uma recaída no barbarismo”. E, no caso específico do nazismo (e
dos jihadistas que o apoiaram na época e que depois venderam a narrativa
do assassinato de Al Durah como se fosse verdadeira para a imprensa
contemporânea), era igualmente “uma referência à natureza profundamente
anticristã e à sua hostilidade para com a civilização”.
Eis
o ponto de contato do “fascismo de esquerda” adotado pelas nossas
celebridades tupiniquins e internacionais e o antissemitismo que assola o
mundo ocidental: o ódio aos judeus que elas divulgam sem pudor não é
apenas um aviso contra as “minorias desprotegidas”, mas principalmente
um alerta sobre como há um claro processo de escravizar todo o globo
terrestre — e de preferência com a ajuda da mesma elite que supostamente
deveria nos proteger disso tudo.
É
por isso que se deve tomar muito cuidado quando os progressistas usam e
abusam do termo “terrorista”. Na verdade, de acordo com Michael
Burleigh em 'Blood and Rage – A cultural history of terrorism' [Sangue e
Ódio - Uma história cultural do terrorismo], o uso do terror é uma
tática usada por agentes assimétricos, que podem ou não terem relação
com algum Estado, coordenados via uma entidade acéfala ou uma
organização hierárquica, com o intuito de criar um clima psicológico de
medo para compensar o poder político legítimo que não possuem — e com a
imposição deste mesmo desejo de poder no mundo todo, de preferência
usando como meio a criação de uma comunidade fundada no sofrimento, numa
comunhão de vítimas assassinadas ou feridas as quais elas devem sofrer
em função de um projeto muito maior: o da libertação da raça humana dos
grilhões da escravidão espiritual e material.
Ora,
aqui temos a exata definição, sem automatismos verbais, do que acontece
entre os jihadistas e a única nação realmente democrática que existe no
Oriente Médio: o estado de Israel (e também com os EUA, o país que
simboliza a democracia no resto do mundo, o que nos leva a concluir que o
antiamericanismo, uma outra doença fomentada pela esquerda, é mais uma
variação do antissemitismo).
Não
à toa, a elite progressista acompanha a narrativa dos palestinos porque
ela também se aproveita da confusão em torno da palavra “democracia”.
Para os seus integrantes, a democracia deles seria a da Revolução
Francesa, a do Iluminismo que pratica um governo autoritário a guiar o
povo de cima para baixo, enquanto Israel, por mais defeitos que possa
ter (como qualquer país vibrante), pratica a democracia liberal de fato,
cujas decisões são feitas de baixo para cima e sempre respeitando
aquilo que Michael Oakeshott chamava de “a dinâmica imprevisível da
conduta humana”.
Assim,
a cooptação do conceito de “terrorismo” pela esquerda progressista para
eventos graves, mas que não chegam à loucura de eliminar a população de
um país que representa uma parte importante do gênero humano (como é o
caso de Israel), é uma das mutações da maldade que infecta o mundo
contemporâneo. O antissemitismo é um problema gravíssimo que envolve a
todos nós porque o início da verdadeira democracia não se deu em Paris
ou até mesmo na Atenas clássica, como alegam os manuais de política, e
sim naquilo que o teólogo Os Guinness chama em 'A Carta Magna da
Liberdade' (lançado no Brasil pela Edições Vida Nova) de “a Revolução do
Sinai”, quando Moisés recebeu a revelação de que há somente um único
Deus e que o povo hebreu se tornou nada mais, nada menos que o
representante de toda a humanidade.
Independentemente
do fato de vivermos em um momento histórico completamente diferente do
que aconteceu no Êxodo do Egito ou até mesmo na Europa devastada pela
Segunda Guerra Mundial, a nossa situação não mudou sob hipótese nenhuma
porque o ódio contra os judeus é algo que avilta a própria natureza
humana.
Como
o próprio Guinness reforça, o mundo contemporâneo até pode estar muito
distante do mundo com que teve de lidar Moisés, o grande líder judeu.
Afinal de contas, “ele é moderno e avançado, e não tradicional; é
urbano, e não rural. Contudo, os princípios expostos no Êxodo e nos
primeiros livros da Bíblia são ao mesmo tempo atuais e atemporais. O
problema não é que as ideias são obsoletas, e sim, que a nossa geração
não se distingue pela análise cuidadosa dos primeiros princípios, pelo
seu compromisso com a construção persistente e paciente, ou pelo debate
respeitoso dos desafios futuros. Hoje uma afirmação é algo a ser
primeiro atacado e só depois avaliado. É a receita das mídias sociais
para o preconceito e a loucura”.
E
é o esquecimento dessa aliança sagrada com a qual nossa Civilização de
fato começou que se tornou a origem de todas as fake news que dominam a
nossa sensibilidade e que acompanham o antissemitismo até hoje, seja com
o caso de Muhammad Al Durah, seja com a crença de que Os Protocolos dos
Sábios de Sião são verdadeiros. Negar a Revolução do Sinai, como querem
os jihadistas e a esquerda progressista, numa união de delírio
cognitivo que infelizmente contagiou a maioria da nossa sociedade (em
especial, a brasileira), é o único terrorismo que precisa ser combatido.
O resto é apenas o ruído de quem ainda não entendeu o que realmente
movimenta a memória do mundo.
Martim Vasques da Cunha é autor de 'Um Democrata do Direito' (Metalivros, 2021).
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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