domingo, 1 de janeiro de 2023

No Ano Novo, recomeçar a contagem dos dias é tão forte que tem algo de sagrado

 



Charges de ano novo | André Dahmer, Benett, Bier, Orlando e Rafael -  Seguinte

Charge do Bier (Arquivo Google)

Luiz Felipe Pondé
Folha

O Ano-Novo tem algo de sagrado. As pessoas sentem que recebem uma nova chance para refazer a vida de uma forma melhor. São idiotas por isso? Não. O calendário —no nosso caso, uma mistura de cristianismo com romano pagão— carrega em si o nascimento de Jesus Cristo, um deus para os cristãos.

É o caráter da contagem crescente dos anos, misturada com meses e dias que se repetem, que produz a sensação de algo sagrado, não o fato de ser uma contagem cristã. Mesmo descrentes podem sentir esse efeito de renovação do Ano-Novo. A cada Ano-Novo, se volta ao começo da contagem dos meses, e aí está o efeito de renovação. Volta-se ao início de novo.

O QUE É O SAGRADO? – Uma das definições mais operacionais é a do historiador de religiões comparadas romeno Mircea Eliade (1907-1986).

O estudo das religiões comparadas se caracteriza por identificar semelhanças entre as diversas religiões históricas, apontando estruturas que se repetem.

Uma dessas estruturas é o que ele chama de dialética do sagrado e profano —”O Sagrado e o Profano”, da editora Martins Fontes. É dessa definição que falamos hoje. Ao somar anos, o calendário aponta para um avanço linear. Na Antiguidade cristã e na Idade Média, para quem sabia em que ano estava, o avanço do calendário implicava a ideia da chegada do fim do mundo e o julgamento divino —ideia comum em muitas religiões: fim de mundo, julgamento dos deuses.

É UM RECOMEÇO – Mas o caráter repetitivo, cíclico, é que dá a sensação de recomeço, renascimento. Muitas religiões associaram ao longo do tempo esse caráter cíclico de uma vida que se repete e se renova às estações do ano que se repetem infinitamente.

Por isso, não são idiotas as pessoas que se sentem renovadas no ano novo, apesar de que 1º de janeiro é uma quarta ou quinta de uma mera semana. Qual é a diferença, afinal?

A diferença é o caráter sagrado que o ciclo estabelece. Sagrado é poder para Eliade, poder criador, transformador, aniquilador e poder de permanência. Profano é o que está à mercê do poder sagrado. Você sai com um santinho ou com uma pedra de cristal na bolsa porque um representa uma pessoa supostamente poderosa porque mais perto de Deus, e a outra, uma pedra que tem o poder de durar muito tempo, ao contrário de você, frágil e que dura pouco.

IMENSO E MISTERIOSO – O caráter cíclico do recomeço do ano novo remete ao poder do tempo sagrado que permanece no horizonte se repetindo ao longo do tempo cósmico — o universo nos parece sagrado porque é imenso e misterioso.

Ainda que seja mera convenção, ela é acompanhada de festas, rituais, roupas especiais, altera a contagem dos dias nos negócios, implica prazos jurídicos, enfim, tem uma eficácia simbólica. O homem é um animal simbólico, já dizia o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945).

O tempo sagrado altera a percepção de qualquer dia da semana para quem acredita. Natal, Ano-Novo, Dia do Perdão judaico, Ramadã islâmico, para dar alguns exemplos. Datas que se repetem e dão a chance às pessoas de pensarem a si mesmas num ciclo maior da vida e agir sobre ele.

ALGO DE SOBRE-HUMANO – Por isso, muitas vezes, essas datas implicam a suspensão das atividades cotidianas comuns — profanas, banais — para que as pessoas se dediquem ao efeito simbólico de um tempo que transcende o cotidiano. O fato de tudo ser uma invenção humana, do ponto de visto histórico, social, filosófico ou psicológico, só reforça a percepção da função poderosa da criação de calendários sagrados.

Claro que para quem crê, há algo de sobre-humano nisso tudo. Você pode ser uma pessoa que não crê em religião histórica nenhuma e sentir que o universo “muda” com o Ano-Novo e abre uma nova era de energias para você recomeçar num tempo eterno como o próprio universo. Quando essas datas são esquecidas, elas perdem a eficácia, como no caso de judeus assimilados que não interrompem seu dia a dia para as datas sagradas do judaísmo.

A força do recomeço eterno da contagem dos dias é tão forte que mesmo quem não faz rituais de ano novo sente a força dessa data. Neste momento, nos unimos aos nossos ancestrais pré-históricos, contemplando algo maior do que nós.

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