sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Perceber a História — Breve história do salazarismo.

 

 


A nova newsletter de Rui Ramos para os leitores do Observador:


Como o salazarismo foi a face política da hierarquia social

A primeira pergunta que se faz em relação à ditadura salazarista tem a ver com a sua longa duração. Salazar foi chefe do governo durante 36 anos. Hoje, em democracia, é algo inimaginável. É como se, em 2012, Mário Soares tivesse sido primeiro-ministro ininterruptamente desde 1976. Como é óbvio, a primeira explicação está na ditadura. Outros autocratas, aliás, conseguiram no século XX longos períodos de poder: em Espanha, o general Francisco Franco chefiou o governo durante 39 anos, entre 1936 e 1975; em Cuba, o ditador comunista Fidel Castro manteve-se no poder quase cinquenta anos, entre 1959 e 2008, e só o deixou para ser dinasticamente sucedido pelo seu irmão mais novo.

A compressão da vida pública, através da censura à imprensa e do banimento de qualquer oposição, facilitou esses longos domínios políticos. Mas a repressão nem sempre foi suficiente para manter ditaduras. Viu-se, por exemplo, na Europa de leste em 1989 ou durante a “Primavera” Árabe em 2011: em ambos os casos, ditaduras muito mais brutais do que a de Salazar caíram perante mudanças das relações internacionais, dificuldades económicas e grandes manifestações populares. É preciso, por isso, examinar outro aspecto da ditadura salazarista: a sua relação com a sociedade portuguesa.

O salazarismo assentou sempre na ditadura. Essa ditadura pareceu por vezes “moderada”, porque, como explicou Manuel de Lucena, era meticulosamente “preventiva”. O Estado Novo era, como Salazar gostava de dizer, um regime suficientemente “forte” para não precisar de ser violento. Todos em Portugal estavam à mercê do poder. Num país pequeno e pobre, com um Estado centralizado e dirigista e uma sociedade civil fraca, não era difícil fomentar o respeito pelos “poderes constituídos” sem grandes dispêndios repressivos. Até porque Salazar não se propôs fundar, como outros ditadores, uma nova sociedade, sem classes sociais ou racialmente pura.

Salazar pôde assim aproveitar o efeito disciplinador tradicional da Igreja, do Estado e das hierarquias estabelecidas, que a repressão política respeitou. Como lembrou um inspector da PIDE, que serviu também na GNR, as grandes sevícias a que assistiu não aconteceram na PIDE, mas nos postos rurais da GNR. A pior violência não recaiu sobre estudantes de Direito por motivos políticos, mas, como em outros regimes portugueses, antes e depois do Estado Novo, sobre gente pobre.

Muita gente colaborou, independentemente das suas preferências ideológicas. É verdade que a decisão do regime de se manter pela força fazia dele a via única para quem queria exercer influência ou fazer carreira, fosse na política, na administração, na magistratura ou nas forças armadas. Mas com a guerra civil de Espanha (1936-1939) ao lado, e depois a II Guerra Mundial (1939-1945) em todo o continente, Salazar pareceu a muita gente, até entre a oposição de esquerda, preferível a outras alternativas.

Em 1940, com a França derrotada, a Inglaterra isolada, e a União Soviética colaborando com Hitler, alguns dos antigos republicanos de esquerda chegaram a propor um pacto a Salazar. Até aos militantes comunistas presos na “colónia penal” do Tarrafal, em Cabo Verde, ocorreu a mesma coisa. Em 1945-1949, a quantidade de militantes oposicionistas afastados do professorado universitário, se revela a intolerância desses anos do pós-guerra, mostra também as acomodações que tinham sido possíveis nos anos anteriores.

Não por acaso, o Estado Novo proporcionou pessoal a todos os partidos da nova democracia depois de 1974. Até o V Governo Provisório de Vasco Gonçalves, em Agosto de 1975, teve direito a um representante do Estado Novo, na pessoa do professor José Joaquim Teixeira Ribeiro, vice-primeiro ministro e antigo teórico do corporativismo salazarista. Salazar não ignorava as preferências políticas do pessoal que o rodeava. Sobre o ministro Duarte Pacheco, comentou na década de 1960 a Franco Nogueira: “Bastante das esquerdas, mas como tinha grande ambição de poder, adaptou-se com facilidade”. Tudo isso permitiu a Marcello Caetano, quando lhe deu jeito na década de 1950, insistir na ideia da heterogeneidade das “correntes políticas” dentro do Estado Novo: haveria de tudo no regime – “liberais” e “nacionalistas”, “republicanos” e “monárquicos” – todos abrigados debaixo de uma liderança salazarista caracterizada pelo “eclectismo e empirismo” (na sua correspondência, Salazar também usa “eclectismo” para definir o regime).

Hoje, a quem vive numa democracia, a ditadura de Salazar pode afigurar-se monstruosa. Mas o salazarismo conseguiu parecer, em vários épocas, simplesmente a organização das elites sociais e intelectuais portuguesas – baseadas numa administração autocrática e centralizada, secundada pela Igreja Católica e pelas Forças Armadas, e na subalternização política da população, já praticada por todos os regimes anteriores – para administrar e desenvolver o país.

A ditadura tentou e pôde parecer um regime de notáveis, onde o poder pertencia aos mais educados e de boas famílias, e correspondia à hierarquia de mérito técnico e de prestígio social, num sistema em que se cooptavam entre si. A União Nacional servia para manter actualizadas as listas de notáveis destinados a preencher os imensos lugares de nomeação governamental na administração (presidentes de câmara, de juntas de freguesia), na justiça, e na rede corporativa (Grémios, Casas do Povo, etc.).

Perante a classe dirigente, estava uma sociedade ainda não industrializada e pouco escolarizada, muito segmentada entre regiões e entre actividades, onde só as classes médias estavam mais ou menos unificadas pelo ensino, e onde a Igreja Católica era a única organização de massas. Em 1960, os trabalhadores manuais ainda constituíam 71,2% da população activa (trabalhadores agrícolas eram 41,1% e os trabalhadores industriais, 31,3%). A classe média alta representava 11,4% e a classe média baixa, 15,5%. Era nestas classes médias que se recrutava a elite do salazarismo.

Salazar pôde assim esperar que não se visse em Portugal, como “noutros países” era “evidente”, uma “separação entre a classe governante e a sociedade em geral”. Isto é, a elite política da ditadura era também a elite social do país. Durante a I República, isso não fora claro. É verdade que os líderes do Partido Republicano Português (PRP) também tinham vindo das classes médias, e dispunham das credenciais académicas que se haviam tornado requerimentos do poder político. Mas a sua hostilidade ao catolicismo, num país católico, e a recusa da “boa sociedade” de lhes reconhecer qualquer autoridade, tinham feito deles uma espécie de intrusos.

Ao contrário dos líderes do PRP, os salazaristas conseguiram durante bastante tempo fazer o seu poder parecer simplesmente a face política da hierarquia social. Por isso, a atitude da maioria população foi, como talvez se pudesse esperar, menos a de resistência, e mais a da “clientelização”: perante aqueles que tinha sido habituada a ver como os seus superiores naturais – pelos seus patrimónios e genealogias, pelas suas qualificações académicas e recursos intelectuais, ou pelas posições ocupadas em instituições –, tratou de arranjar contactos e explorar relações para obter protecção e conseguir favores. Até em relação à polícia política, como recentemente sugeriu o historiador Duncan Simpson, fez isso.

Na última edição do programa E o Resto é História,conversei com o João Miguel Tavares sobre o homem que mais vidas salvou em toda a História, graças à invenção das vacinas: Louis Pasteur. Ouça aqui o podcast.

Nenhum comentário:

Postar um comentário