sábado, 29 de outubro de 2022

O Brasil profundo não é esse país inquieto que entrou numa guerra no segundo turno

 



O AVANÇO DAS COTAS - A tela de Tarsila do Amaral (à esq.) e a intervenção de VEJA com os chapéus de formatura: a universidade, pelo menos, abriu as portas

A tela de Tarcisa do Amaral, adaptada na arte da Veja

Eduardo Affonso
O Globo

Uma justificativa para que sejam Lula e Bolsonaro os candidatos que chegaram ao segundo turno é que, cada um a seu modo, ambos representam o Brasil profundo. Um Brasil arcaico, avesso à mudança, agarrado à propriedade privada, obcecado com segurança, refém dos valores herdados dos tataravós — um Brasil simples, que se veria traduzido num homem comum, como Bolsonaro.

Ou um Brasil que luta contra a adversidade, a miséria, o desamparo e anseia por um líder messiânico, carismático, um pai dos pobres — um Brasil humilde, que se reconheceria num homem do povo, como Lula.

CADÊ ESSE PAÍS? – O Brasil profundo não tem nada a ver com esse das profundezas de onde emergiram janones, tiburis, nikolas, kicis, damares, zambellis, ninas, bolsonaros. O Brasil profundo é conservador, não reacionário. É religioso, não fanático. Quer justiça, não justiçamento. Prefere a liberdade à ditadura, o honesto ao corrupto, o sincero ao hipócrita, o sério ao fanfarrão. Não gosta da mentira, tampouco simpatiza com a censura. Cadê esse Brasil no segundo turno?

Brasil profundo — de verdade — é o que gerou Clementina de Jesus, Patativa do Assaré, Cascatinha e Inhana, Alvarenga e Ranchinho, Pixinguinha, Riachão. Mãe Menininha, Irmã Dulce, Chico Xavier — ninguém que pregasse invasão de igreja, depredação de terreiro, abrisse franquia de templos caça-níqueis.

Gerou Gonzagão, Elomar, Lia de Itamaracá, Dona Edite do Prato, Dona Onete, Dona Ivone Lara.

Das raízes desse Brasil nasceram a Tropicália, o Clube da Esquina, o Mangue Beat, o Pessoal do Ceará. A valsa londrina e a vanguarda de Arrigo Barnabé, a canção pelotense de Vitor Ramil, o chamamé de Helena Meirelles.

LÁ DOS SERTÕES – É o Brasil dos sertões de Guimarães Rosa, do Pantanal de Manoel de Barros, das Alagoas de Graciliano Ramos, do Pernambuco de João Cabral, das Minas (as mais fundas) de Adélia Prado, de Drummond. Da Brodowski de Portinari, da Japaratuba de Arthur Bispo do Rosário, da Aimorés de Sebastião Salgado, da Caruaru de Mestre Vitalino.

É bem outro, das profundas, o Brasil deep web, com fixações sexuais nunca dantes catalogadas — da mamadeira de piroca às crianças desdentadas, do kit gay e — Arthur do Val não precisava ter ido à Ucrânia — do clima que pinta com meninas refugiadas. E essa gente se melindra com o Especial de Natal do Porta dos Fundos…

NÃO ROUBAR? – Eurídice Ferreira de Melo, lavradora do Agreste, educou o filho para não roubar. Carl Hintze, imigrante alemão, trabalhava para um jornal de militância na “defesa dos interesses dos homens pretos”. O filho de dona Eurídice patrocinou o mensalão e o petrolão. O bisneto de Herr Hintze avalia o peso de quilombolas em arrobas. Do Brasil profundo para o mais raso em não mais que três gerações.

Há duas fotos emblemáticas na primeira página do GLOBO desta quinta-feira, 20/10. Na primeira, uma criança impõe a mão esquerda sobre a cabeça do candidato Lula, que — olhos fechados, braços em levitação — parece em transe místico. Na segunda, a primeira-dama Michelle e a ubíqua Damares oram, com semblante compungido. No Brasil profundo, a fé é sagrada. Não se confunde teatro com religião.

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