Com claro apoio popular, a hostilidade dos grandes media e Bernard-Henry Lévy e von der Leyen como árbitros da respeitabilidade das escolhas do povo italiano, talvez Meloni esteja no caminho certo. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
No
Domingo, 25 de Setembro, uma eleição com forte carga ideológica,
bipolarizada entre uma coligação de centro-direita (Fratelli d’Italia,
Lega, Forza Italia, Noi Moderati) e uma de centro-esquerda (Partito
Democratico, Alianza Verti e Sinistra+Europa), terminou com uma
claríssima vitória da direita, que recolheu cerca de 44% dos votos,
contra os 26% dos seus opositores.
Importante
e significativo é que, na coligação vencedora, a direita mais à
direita, os Fratelli de Giorgia Meloni, tenha tido 26% dos sufrágios, ou
seja, mais de metade dos votos dos seus parceiros de coligação. Meloni
garantiu assim a liderança do bloco vencedor, com 235 parlamentares em
400 na Câmara dos Deputados, e 115 senadores em 200 na Câmara Alta. Duas
largas maiorias absolutas.
Na
coligação triunfante há várias direitas ou famílias da Direita: a
nacionalista popular, dos Fratelli de Meloni, a conservadora
identitária, da Lega de Matteo Salvini, a liberal conservadora, da Forza
Italia de Silvio Berlusconi, e, finalmente, quase a passar
despercebido, o Noi Moderati de Maurizio Lupi, uma sobrevivência
histórica do que foi o grande partido centrista da Primeira República
Italiana, a Democracia Cristã, dominante entre 1948 e 1994.
Alguma História
Nas
eleições de 1968 – há 54 anos – a Democracia Cristã teve 39% dos votos e
o segundo partido mais votado foi o Partido Comunista Italiano, com
27%. Em 1976, já com Enrico Berlinguer, o aristocrata que sucedeu aos
ortodoxos Longo e Togliatti, os comunistas italianos alcançariam 34,4%
dos sufrágios. Democratas cristãos e comunistas eram as duas grandes
forças da Primeira República Italiana, em que o sistema proporcional
dava voz a todas as tendências e partidos, desde os neo-fascistas do
Movimento Social Italiano aos comunistas radicais do Partido Socialista
Italiano de Unidade Proletária.
Na
eleição fundacional de Abril de 1948 os Democratas-cristãos, de Alcide
de Gasperi, com o apoio da Santa Sé e dos Estados Unidos de Truman,
chegado aos 48,5%. A coligação de esquerda, uma Frente Popular de
comunistas e socialistas, ficara-se pelos 31%. É dessa altura o famoso
cartaz de propaganda lançado por Giulio Andreotti, subsecretário da
Presidência do Conselho: “Nel secreto della Cabina, Dio ti vede, Staline
no”
A
frase era de Giovanni Guareschi, o criador de Don Camillo, e seria
depois popularizada por Fernandel, em Don Camillo e L’Onorevole Peppone
(1955). O Partido Comunista de Togliatti era então um partido comunista à
antiga, estalinista, de duros costumes, como o Partido Comunista
Português de Cunhal.
Depois,
Estaline morreu e Togliatti também. A seguir a Togliatti veio Luigi
Longo e depois Berlinguer, em 1972; e com ele o Eurocomunismo e, em
Itália, o “Compromisso Histórico” entre centristas e comunistas. Mas foi
só com a morte de Berlinguer, em 1984, que se iniciou a crise
identitária dos comunistas italianos, uma crise que veio a culminar com a
queda do Muro de Berlim e com a proposta do então Secretário-geral,
Achille Occhetto, de “novos caminhos” para os comunistas. O Congresso de
Rimini, de Fevereiro de 1991, acabou com o Partido Comunista Italiano e
criou o Partito Democratico della Sinistra. Na divisão, subsistiu o
resistente Partito della Rifondazione Comunista.
Nos
anos 90, os escândalos Tangentopoli e Mani pulite, revelando a
corrupção dos grandes partidos da Primeira República –
democrata-cristão, comunista e socialista – levaram a uma profunda crise
política que marcou o fim dessa Primeira República Italiana, inaugurada
em 1948.
O
Partido Democrático, fundado em 24 de Outubro de 2007, resultou da
fusão das esquerdas pós-comunistas com o L’Ulivo, de Romano Prodi, um
católico progressista que, com as forças sobreviventes da esquerda
radical, procurou fazer frente ao centro-direita de Berlusconi.
O
vencedor da eleição de 94 foi a Forza Italia, de Berlusconi. Com o fim
da Guerra Fria e da União Soviética e os chineses a aparecerem como
super-capitalistas de direcção central, estava então na moda,
mundialmente, achar-se que a Política podia e devia ser dominada pela
Economia e que governar uma nação era como gerir um negócio.
Não era bem a mesma coisa, como se veria, mas Berlusconi ganhou com 43% dos votos.
Em
1996, foi a vez da vitória do centro esquerda, com Prodi e os
ex-comunistas, agora pós-comunistas, porque os partidos da Primeira
República tinham desaparecido mas os eleitores não. Assim, tal como
Berlusconi apanhara os eleitores da democracia cristã e alguns
sociais-democratas e se aliara aos pós-fascistas de Fini, o L’Ulivo e o
Partido Democrático apanhavam os eleitores comunistas, socialistas e da
esquerda da democracia cristã.
A
Segunda República caminhou para o bipolarismo
centro-direita/centro-esquerda – o centro-direita com a Forza Italia, a
Alianza Nazionale pós-fascista de Fini, a Lega Nord e outros partidos
menores, unidos na coligação La Casa Delle Libertá; e o centro-esquerda
com coligações de geometria variável, ora lideradas pelo L’Ulivo, ora
pelo Partido Democrático. Mas esse “bipartidarismo” acabou há dez anos
com nova fragmentação. Porque em Itália, como na Europa e no mundo, as
forças políticas sistémicas do quase meio século de Guerra Fria não se
adaptaram às transformações dos novos tempos.
A
globalização e o globalismo, que trouxeram o crescimento económico na
Ásia, trouxeram também a desindustrialização e o congelamento e a
regressão da renda das classes trabalhadoras e das classes médias na
Europa e nos Estados Unidos. Seguiu-se a crise das identidades e
soberanias nacionais europeias perante a imigração descontrolada, a
escalada dos poderes de Bruxelas, a desnacionalização das economias
nacionais – e a reacção ao poder estratégico das novas esquerdas, agora
empenhadas na imposição de projectos hedonistas, anticristãos e
experimentalistas para reescrever ou cancelar a História e a humanidade.
A
ausência de resposta dos partidos tradicionais a estes problemas e
desafios e o abandono pelas esquerdas das classes trabalhadoras explicam
o aparecimento e o triunfo de novos partidos. Só na Anglo-América o
sistema bipartidário e as suas consequências em termos de mecânica
eleitoral permitiram a sobrevivência dos partidos tradicionais, mas com
profundas mudanças na ideologia e na prática.
Nos
Estados Unidos, a radicalização foi especialmente evidente – com o
Partido Republicano radicalizado no sentido do conservadorismo
identitário, como reacção aos efeitos do globalismo, da
desindustrialização e da radicalização do Partido Democrático, dominado
pelos delírios das novas esquerdas.
Razões da vitória
Foi
com esta vaga de fundo que os Fratelli d’Italia e Giorgia Meloni, com
uma agenda nacionalista, cristã, conservadora, justicialista e
anti-globalista, multiplicaram seis vezes, em quatro anos, o apoio entre
os italianos. O que parece ter chocado muita gente. Até por cá.
Também
aqui, os juízos de políticos, comentadores e pivots sobre as eleições
italianas conseguiram superar todas as expectativas, mesmo as mais
pessimistas; com o desconhecimento de conceitos básicos – do que são o
fascismo, o nacionalismo, o populismo, o conservadorismo, a Direita, a
extrema-direita – a tocar a indigência.
Tudo
foi e é falado, citado, misturado, numa confusão em que é difícil
distinguir a ignorância da má-fé. Meloni e os partidos da coligação “de
extrema-direita” são fascistas; já os partidos da “coligação
democrática” não são nem estalinistas, nem trotskistas, nem coisa
alguma. E porque é que Meloni é “populista”? Porque “cavalga o
descontentamento do povo” e “faz promessas que não pode cumprir”, chegou
a esclarecer um deputado do Partido que nos governa.
Mas
o pior ainda é o moralismo, o maniqueísmo, a permanente afirmação de
rectidão moral e cívica perante as “coisas terríveis” que podem vir, ou
que estão para vir – como se não estivéssemos já estruturalmente
mergulhados em muitas outras, e bem mais concretas, coisas terríveis.
Pouco importa: em Portugal os “cidadãos vigilantes” parecem preferir
alertar-nos para outros perigos, denunciando, na Suécia, os nazis; em
Itália, os fascistas; em Espanha, os franquistas; na Hungria, as
malfeitorias do abominável Orbán; e na Polónia, a tenebrosa reação
católica.
De
resto, com todas estas terríveis iliberalidades prestes a acontecer por
essa Europa fora, é natural que, aqui, a nossa cinquentenária
democracia estremeça e sofra – ou rejubile, com a nostálgica
possibilidade de um papão, de um velho inimigo que a distraia e distraia
o povo das reais misérias que o assolam. A crer nos alarmados
comentários, parece que o fascismo vem mesmo aí; e vem como na velha
canção, “ora com botas cardadas ora com pezinhos de lã”, para acabar com
tudo o que é bom e justo e próspero e puro e generoso; vem qual minhoca
que ameaça infiltrar-se na impoluta maçã democrática – e logo no
coração da União Europeia.
Tentemos
raciocinar: o fascismo triunfou em Itália em Outubro de 1922. Era um
movimento fundado por um ex-socialista revolucionário, leitor de
Maquiavel, de Nietzsche, de Pareto e Sorel, levado pela questão nacional
a abandonar o socialismo. O fascismo movimento e o fascismo regime
foram totalitários, anti-democráticos, anti-liberais. Tiveram imitadores
por toda a Europa e, na Alemanha de Hitler, transmutaram-se em
nacional-socialismo, uma doutrina radicalizada num messianismo
etnocêntrico levado a extremos apocalípticos singulares e
intransmissíveis.
O
fascismo italiano nasceu de uma conjuntura de guerra civil de baixa
intensidade numa Itália traumatizada, como toda a Europa, pela ameaça
comunista e pelo espectro do genocídio de classe na Rússia. Mas cem anos
depois a conjuntura é outra. Se não, se não for outra, se é, como
sugerem, de uma simples repetição que se trata, se, com Meloni, vier de
facto aí o fascismo, então teremos também de nos precaver e alarmar à
esquerda, não vão os normalizados partidos da esquerda radical,
convertidos à Europa dos novos “direitos humanos”, livres do passado e
de cercas sanitárias, apanhar-nos de surpresa e impor-nos um comunismo à
antiga.
A
nova direita italiana – como algumas das novas direitas populares
europeias – define-se por valores nacionais, cristãos, europeus e de
justiça e solidariedade social. E define-se sobretudo pelos seus
inimigos – o globalismo, o multiculturalismo, as políticas radicais de
policiamento da linguagem, de cancelamento da História e de refundação
experimentalista da humanidade.
Ao
contrário do que, geralmente, acontece na Esquerda, internacionalista,
na Direita, nacionalista, o modo de enquadrar os valores comuns é
diferente de cultura para cultura, de nação para nação.
De
qualquer modo, Meloni – que começou na política, ainda adolescente, na
Frente da Juventude do Movimento Social Italiano (o partido neo-fascista
de Giorgio Almirante), que seguiu depois a desfasticização de
Gianfranco Fini, na Alianza Nazionale, e que veio a fundar, em 2014, os
Fratelli d’Italia – foi claríssima quanto ao lugar do fascismo e de
Mussolini:
“O fascismo é um momento da nossa História nacional e Mussolini é também uma personagem histórica.”
Não
fugia à questão, limitava-se a lembrar a pertença ao passado de uma
realidade aos que, por maniqueísmo, e perante a vaga europeia de
resistência a alguns dos seus “dogmas estabelecidos”, não hesitavam em
usá-la para pôr em causa a legitimidade da soberania popular (que os
“populistas da extrema-direita”, e nunca os “democratas”, sempre
manipulavam).
Ouvido
pela RAI 3 em vésperas da eleição italiana, um dos mais proeminentes
disseminadores de alguns destes “dogmas estabelecidos”, Bernard-Henry
Lévy (que Michel Houellebecq descreve como “um filósofo sem uma única
ideia original mas com excelentes relações”), não pode ter sido mais
claro: caso os eleitores italianos escolhessem a coligação de
centro-direita, a escolha não era respeitável e, como tal, não devia ser
respeitada.
Também
Ursula von der Leyen, antes das eleições italianas, não hesitou em
ameaçar com os instrumentos de retaliação financeira de que “a Europa”
dispunha uma Itália que “avançasse para uma situação difícil”, obrigando
a União Europeia “a agir, como fizemos com a Hungria e a Polónia.”
Com
claro apoio popular, a hostilidade dos grandes media e Bernard-Henry
Lévy e von der Leyen como árbitros da respeitabilidade das escolhas do
povo italiano, talvez Meloni esteja no caminho certo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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