É provável que alguns partidos se tornem liberais em vez de socialistas ou sociais-democratas, escreve André Abrantes Amaral no Observador:
Há
dez anos não havia muitos liberais em Portugal. Contavam-se pelos dedos
de uma mão. Hoje em dia são às dezenas de milhares e até um partido
liberal conta com 8 deputados no Parlamento. Onde estavam estes
liberais? Foram convencidos, mudaram de opinião ou já eram liberais? A
questão é relevante porque o fenómeno pode parecer estranho e também
porque há muitas tendências dentro do liberalismo. Nem todos os liberais
são de direita. Muitos dizem-se de esquerda, outros não são nem de
esquerda nem de direita, pois entendem que a distinção não é essa, mas
entre liberalismo e socialismo ou até entre liberalismo e
conservadorismo.
A
discussão pode parecer académica, mas não é. Tem implicações práticas e
é importante porque vai condicionar o debate político nos próximos
anos. Mais: pode alterar a orientação política de alguns partidos que
poderão afirmar-se como liberais e não necessariamente socialistas ou
sociais-democratas. O fenómeno está a ocorrer com o Livre e não me
admiriaria se brevemente se alargasse ao PSD e até mesmo ao PS. Uma
redefinição que terá implicações naturais no futuro da IL.
Edmund
Fawcett é um jornalista britânico que trabalhou trinta anos na
Economist, para quem acompanhou o processo de democratização de
Portugal, é tio de Boris Johnson e escreveu dois livros bastante
recomendáveis. Um chama-se ‘Conservadorismo – A Luta por Uma Tradição‘, publicado em português pela Edições 70, e um outro ‘Liberalism – The Life of an Idea‘,
cuja tradução e publicação em Portugal recomendo não só pela qualidade
da obra, mas também pela sua relevância. Neste, Fawcett conta-nos a
evolução do liberalismo desde o seu surgimento após as guerras
napoleónicas como uma “prática continuada da política conduzida por uma
série de objectivos e ideais distintos”. Não se tratava de uma corrente
filosófica, de uma ideologia devidamente estruturada, convenientemente
organizada, mas de um conjunto de ideais, objectivos, motivações e
práticas que, a partir do Congresso de Viena em 1815, orientaram
políticos e governos na melhor forma de evitarem e resolverem os
conflitos entre os Estados, controlarem o poder, fosse este político,
económico ou social, garantirem o progresso para que as gerações
seguintes vivessem melhor que as anteriores e que se respeitasse o
direito e a possibilidade de cada pessoa concretizar os seus sonhos,
utilizar a vida para se completar nas suas diversas dimensões.
Foi
esta difusão de objectivos, imprecisão na forma e nos meios para os
alcançar que permitiu a adaptação do liberalismo aos novos desafios que
surgiram nas décadas decorridas de então para cá. Desde 1815 até à
actualidade, o liberalismo estendeu o sufrágio até o voto se tornar
universal, venceu o fascismo e o nazismo e, mais tarde o comunismo.
Foram políticos liberais como os britânicos William Gladstone e Joseph
Chamberlain e os vários governantes da III República Francesa que
levaram por diante as primeiras políticas de cariz social. Homens como
Eugen Richter que se opuseram às guerras de Bismarck (que também
impulsionou o Estado social), avisou para os desequilíbrios que uma
Alemanha militarista originava na Europa e falou a favor do comércio
livre sem quaisquer restrições, do controlo orçamental e das liberdades
cívicas. Infelizmente, apesar de ter estado do lado certo da história,
Richter não tinha a flexibilidade política suficiente para originar
maiorias. Mas deixou herdeiros: primeiro, Gustav Stresemann e depois a
Alemanha que surgiria após 1945. Foram políticos, economistas,
pensadores e filósofos liberais que discutiram o valor da liberdade
individual, a sua protecção, o que esta pressupunha para que existisse
qualidade de vida, o papel que cabia ao Estado como garante no acesso à
saúde, à educação, à habitação e ao bem-estar. O papel no Estado na
protecção dos direitos civis das mulheres e das minorias, fossem estas
étnicas, religiosas ou relativas à orientação sexual das pessoas.
Esta
evolução não foi feita sem críticas de parte a parte. Houve lugar a
desentendimentos, assistiram-se a desacordos, fizeram-se e desfizeram-se
partidos políticos porque, no meio desta evolução, o liberalismo, como
foi pensado pelos políticos e governantes do início do século XIX, é
diferente dos dias de hoje. Há valores e pontos em comum, mas o papel do
Estado tornou-se mais complexo e diversificado e a “prática continuada
da política conduzida por uma série de objectivos e ideais distintos”
adaptou-se a essa nova realidade.
O
liberalismo atingiu uma amplitude tal que governantes como Margaret
Thatcher e François Miterrand puseram em prática políticas liberais. Uma
extensão de tal ordem que podemos dizer que vários membros do PSD e do
próprio PS são liberais. Uns mais liberais conservadores como Thatcher,
outros mais liberais sociais como Mitterrand ou Willy Brandt, duas
figuras que Mário Soares tanto admirava.
Por
muito que custe aceitá-lo a política é uma luta por mercados eleitorais
onde cada partido troca o seu programa por votos e lugares no
Parlamento e no Governo. Nestes combates eleitorais, a marca adquire uma
importância desmesurada. Há 40 anos quase todos os partidos se diziam
marxistas sob pena de perderem votos. Há 30 ser socialista dava
prestígio e não era um embaraço; no mínimo era-se social-democrata.
Actualmente já não é assim. Há dias surpreendi-me ao ouvir um deputado
do PS dizer que sempre fora social-democrata. Estive quase para lhe
dizer que daqui a uns anos terá sido sempre liberal social. A moda não é
só na roupa. As marcas e os símbolos não são só importantes no
vestuário, na restauração, na música, nos livros e demais artes. São
também determinantes na forma como se ganham votos, lugares e governos.
Assim,
não nos admiremos se daqui a uns anos alguns dos actuais políticos de
esquerda se digam liberais. Nessa altura, a IL, actualmente o único
partido liberal português, terá de se redefinir. Mas isso será tema para
outra crónica.
P.S.:
para discutir e conversar sobre este tema tive a iniciativa de convidar
os Professores Manuel Villaverde Cabral e André Azevedo Alves para, no
próximo dia 9 de Novembro, a partir das 18h30, no Grémio Literário, em
Lisboa, exporem a sua análise bem como responderem às questões que se
possam colocar. O objectivo é conseguirmos uma conversa amena que nos
ajude o saber como foi o passado e, a partir daí, imaginarmos aquilo com
que podemos nos deparar no futuro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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