domingo, 30 de outubro de 2022

A princesa, a máfia marroquina e o contrabando de cocaína: os Países Baixos estão se transformando em um narcoestado?

 



Amália, herdeira do trono, está na mira da Mocro Máfia, que trafica drogas para vários países da Europa. O grupo já assassinou denunciantes e jornalistas e gerou o terror nos Países Baixos. Ana Kotovicz para o Observador:


Antes de celebrar o fim do ano, Amália fará 19 anos. Se nada mudar na sua vida, a jovem — que é também herdeira da coroa holandesa — festejará a data trancada em Huis ten Bosch, o palácio do século XVII onde vivem os seus pais, o Rei Guilherme e a Rainha Máxima, e de onde está proibida de sair. Em setembro, Amália, como muitos estudantes no final da adolescência, deixou a casa dos pais, na Haia, para ingressar na Universidade de Amesterdão. Apesar de ser a primeira na linha de sucessão ao trono, mudou-se para um apartamento com outras jovens universitárias numa tentativa de ter uma vida dita normal. Já tinha surpreendido o país, em junho de 2021, quando, numa carta dirigida a Mark Rutte, chefe do Governo, abdicou da mesada real.


 A família real holandesa. Amália está no centro, ladeada pelas irmãs

Desde então, a vida de Amália mudou. Em setembro soube-se que estava na mira de uma máfia ligada ao tráfico de droga na Europa — a mesma que já visou o primeiro-ministro Rutte, um ministro belga, e que assassinou jornalistas e advogados — e, em outubro, o problema agravou-se. Amália está, de novo, na mira da Mocro Máfia e as autoridades neerlandesas acreditam que há um risco real de ser sequestrada. Guilherme e Máxima falaram ao país e explicaram a decisão tomada: a princesa regressaria a casa por questões de segurança, com aulas à distância, como em tempo de pandemia. O que ficou por dizer foi o motivo que levou os traficantes a focarem-se em Catarina Amália Beatriz Carmen Vitória, princesa de Orange.

 Amália e o Rei Guilherme

Uma princesa a ser sequestrada por narcotraficantes parece uma história mais adequada ao continente americano, seja à Colômbia de Pablo Escobar ou ao México de El Chapo, mas é na Europa que está a acontecer, acompanhada de uma escalada de violência nas ruas da capital neerlandesa. Os Países Baixos arriscam-se a ficar com o carimbo de narco Estado, depois de nos anos 1960 serem vistos como o paraíso das drogas leves, graças à legislação que facilitava o consumo de haxixe num Velho Continente onde, noutros países, isso simplesmente não era possível. Essa permissividade em relação ao consumo de alguns tipos de drogas pode, na verdade, ajudar a explicar os momentos de terror com que a população foi confrontada nos últimos meses e anos.

Máfia marroquina. Como o nome de um livro chegou aos relatórios de polícia

Mocro. É assim que os jovens imigrantes de descendência marroquina se chamam uns aos outros, uma gíria que vem, pelo menos, desde os anos 1990 e que tem um toque depreciativo. Foi já no século XXI, em 2013, que Mocro, associado à máfia, ganhou segunda vida.

Dois jornalistas neerlandeses, Martijn Schrijver e Wouter Laumans, escreveram o best seller “Mocro Maffia”, mais tarde adaptado a série televisiva de enorme sucesso nos Países Baixos — onde chegou a ser comparada a “Narcos” (Netflix, 2015), a série que conta a vida de Pablo Escobar. Daí em diante, Mocro Máfia passou a ser a designação usada pela imprensa e pelas próprias autoridades policiais para se referirem aos grupos organizados de imigrantes marroquinos, de terceira e quarta geração, que operam nos Países Baixos e na Bélgica.

“É calão. Os jovens marroquinos chamam-se mocro uns aos outros”, explicou Wouter Laumans, numa entrevista de 2019. “Lembrámos-nos de usar Mocro Máfia porque engloba tudo aquilo de que fala o livro e agora vejo a polícia a usar a expressão nos seus relatórios. Mas não são apenas marroquinos, são jovens a crescer em zonas de Amesterdão onde os turistas não entram”, disse o autor do livro, citado pela BBC. “Não têm as mesmas oportunidades, mas têm aspirações e procuram fazer carreira no submundo.”

O jornalista, especializado em histórias de crime, acredita que o aparecimento destes grupos em Amesterdão está ligado às oportunidades que surgem (ou não) na sociedade. “Não são diferentes de banqueiros ou jornalistas, querem fazer dinheiro. Como não são bons a jogar futebol e não têm cérebro para lutar no mundo, este é o meio que encontram. Não é apenas um problema de droga, é um problema social”, acrescentou Laumans.

A Mocro Máfia não é uma rede única de traficantes, como o ​​Cartel de Medellín, de Escobar, ou o Cartel de Sinaloa, de El Chapo. É uma designação geral para as várias organizações criminosas da região, com muitos gangues rivais a operar no mesmo território. Com ligações privilegiadas aos cartéis colombianos e mexicanos, a cocaína chega aos portos belgas e neerlandeses e, dali, segue para o resto da Europa. Atualmente, a Europol considera que os dois países constituem o centro nevrálgico do tráfico de cocaína na Europa, ficando com uma posição que outrora era ocupada pela Península Ibérica.

“Começaram a vender resina de cannabis”, explicou à France 24 David Weinberger do Instituto Francês de Assuntos Internacionais e Estratégicos. “Tornaram-se especialistas em contrabando e alguns deles ramificaram-se para a cocaína, muito mais lucrativa”, explicou o investigador, especialista em tráfico de drogas, alertando para o facto de a Mocro Máfia ter conseguido acabar com um monopólio controlado por organizações mafiosas italianas como a ‘Ndrangheta. Agora, domina o mercado, como atesta a Europol.

“O epicentro do mercado de cocaína na Europa mudou-se para norte. O aumento do uso de remessas em contentores a partir dos portos de alto volume da Antuérpia, Roterdão e Hamburgo consolidou o papel dos Países Baixos como ponto de paragem e levou a que a zona costeira do Mar do Norte ultrapassasse a Península Ibérica como principal ponto de entrada da cocaína que chega à Europa”, lê-se no relatório da Europol de 2021 sobre esta droga.

Querer controlar o submundo e os portos de Antuérpia (Bélgica) e de Roterdão (Países Baixos), fundamentais para quem quer distribuir cocaína pela Europa, leva à violência — e essa passou as fronteiras do submundo. Isso é visível nas ameaças atuais à princesa de Orange e a Mark Rutte (que foi proibido de passear na sua bicicleta e de fazer as deslocações entre casa e o seu gabinete utilizando esse meio de transporte), ou na tentativa de sequestro, em setembro, de Vincent Van Quickenborne, ministro belga da Justiça, que abraçou a causa de combater o narcotráfico.

Mas foi antes, a partir de 2019, quando jornalistas e advogados começaram a ser assassinados em plena rua e em plena luz do dia — entre eles Peter R. de Vries, figura pública que apaixonava o país — que os alarmes soaram mais alto do que nunca em Amesterdão. A guerra dos gangues era mais do que isso.


 O sítio onde Peter R de Vries foi baleado tornou-se local de culto

Narco Estado 2.0. Menos grave do que o México, mas a rolar como uma bola de neve

“Chamo os Países Baixos de narco Estado 2.0.” As palavras são de Jan Struijs, presidente de um dos maiores sindicatos de polícia do país, o Nederlandse PolitieBond. O Observador contactou o sindicato, mas devido a elevados pedidos de imprensa estrangeira, a resposta passou por remeter o jornal para declarações de Struijs à imprensa do país. Resposta idêntica chegou das autoridades policiais neerlandesas.

“Não somos o México, com 14 mil cadáveres, mas há, na nossa economia paralela, um atentado à ordem pública”, referiu o presidente do Nederlandse PolitieBond, afirmando que existe um número nunca antes visto de pessoas que recorrem a segurança pessoal, como políticos, juízes, promotores, polícias ou jornalistas. “Há um risco grave com o crime organizado. É um problema enorme, que está a ser abordado em várias frentes, mas temos um longo caminho a percorrer.”

A opinião de Strujis não mudou muito nos últimos anos. Em 2019, à BBC, o sindicalista já usava os mesmos termos quando falava da morte de Derk Wiersum, um advogado que representava Nabil B., membro da Mocro Máfia que se dispunha a revelar os seus segredos em tribunal, no julgamento Marengo, o mais mediático dos últimos anos. Pai de dois filhos, Wiersum, 44 anos, foi assassinado à porta de sua casa, atingido na cabeça, em pleno dia. A mulher assistiu a tudo.

A partir desse dia, advogados e procuradores envolvidos em julgamentos de narcotráfico passaram a ter proteção policial.

“Se olharmos para a infraestrutura, para o dinheiro angariado pelo crime organizado e para a economia paralela… Sim, temos um narco Estado”, considerou Jan Struijs, opinião que mantém até hoje.
A morte do advogado, do irmão da testemunha e do jornalista que era uma estrela pop

O advogado não foi o primeiro a ser abatido por narcotraficantes. Assim que o nome de Nabil B. foi conhecido, o seu irmão, sem relações conhecidas ao submundo, foi assassinado. No entanto, foi preciso a morte de Wiersum para a sociedade reagir. “Wiersum era um advogado branco” e era visto, entre as elites do país, como “um deles”, defendeu Yelle Tieleman, jornalista neerlandês de investigação, ao The Guardian. “Foi nesse momento que todos no governo perceberam que isto era sério” e que o narcotraficante Ridouan Taghi “estava a retaliar não apenas no submundo, mas também na sociedade civil”.


 Red Light District, Amsterdão

A história de Nabil B. resume-se em poucas linhas: trabalhava para Ridouan Taghi, um dos homens mais procurados do país, quando teve de orquestrar a morte de um elemento de um gangue rival. Por engano, foi um amigo de infância de Nabil quem acabou morto. A culpa levou-o a tornar-se testemunha da coroa holandesa no julgamento Marengo — nome escolhido aleatoriamente por um computador —, que decorre até hoje. Os réus são 16 narcotraficantes e Taghi. Se o assassinato do irmão de Nabil chegou aos jornais, a morte de Derk Wiersum, a 18 de setembro de 2019, mudou tudo. Meses depois, em dezembro, Taghi, que se encontrava a monte, foi detido no Dubai.

“O crime organizado passou dos limites”, disse o então ministro da Justiça Ferdinand Grapperhaus, considerando que um ataque a um funcionário do tribunal é também um ataque ao Estado Democrático de Direito. “A segurança destas pessoas não pode ser sequer questionada.”

O Rei Guilherme repetiu as mesmas palavras, reforçando a ideia de que o país estava perante um ataque ao Estado de Direito. Mark Rutte considerou o assassinato perturbador. A autarca de Amesterdão, Femke Halsema, falou em violação do Estado constitucional: “O assassinato de um irmão de uma testemunha da coroa foi frio. Assassinar um advogado é ainda mais baixo.” Em resposta ao sucedido, o ministro Grapperhaus aumentou o orçamento e os recursos humanos alocados à luta contra o crime organizado.

Nas janelas, a fotografia de Wiersum aparecia pendurada um pouco por todo o lado e os advogados eram aconselhados a usar coletes à prova de balas.

O jornalista de investigação Peter R. de Vries, que tinha recusado proteção policial depois de em maio de 2019 ter sido avisado de que era um alvo de Taghi, afirmou que os narcotraficantes queriam passar “uma mensagem de terror”, que servia para assustar a testemunha e qualquer pessoa que pensasse ajudá-la. Mais tarde, em 2020, aceitaria ser consultor da equipa de Nadil B. porque, argumentou ele, a testemunha telefonou-lhe pessoalmente e queria “enviar um sinal claro aos assassinos de Reduan B. e Derk Wiersum”. Vries seria assassinado em 2021.


Peter R de Vries foi assassinado em 2021

Baleado a 6 de julho, depois de uma aparição televisiva na RTL Boulevard, as imagens de uma câmara de videovigilância mostram o momento em que foram disparados cinco tiros contra o jornalista. Foi levado para o hospital, mas morreu nove dias depois. A rua onde foi atacado, a Lange Leidsedwarsstraat, tornou-se local de culto e as mensagens de condolências chegaram de todos os cantos da sociedade neerlandesa, incluindo do Rei e de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia desde 2019.

As investigações apontaram num sentido, embora não tenham ainda sido provadas: de Vries foi vítima do gangue de Taghi por ter ajudado Nadil. A agravante é que, nessa altura, Taghi já estava detido, o que significava que continuava a operar a sua rede a partir da prisão.

Como se resolve o problema? Mudar a lei parece o único caminho

Nos Países Baixos assume-se que as duas coisas estão interligadas: as coffee shops de Amesterdão, onde os turistas (e os moradores) sempre puderam fumar haxixe sem problemas, foram o rastilho para o problema de narcotráfico e violência que têm em mãos. Em 1960, os Países Baixos estavam à frente do resto da Europa com a sua lei que permitia a venda de drogas leves (pequenas doses). No entanto, o cultivo comercial de droga é ilegal e os fornecedores são necessariamente as redes criminosas que operam no país. Além disso, imperava a ‘Gedoogbeleid’, ou seja, a política de tolerância em relação à cannabis.

Estabelecidas ali as redes de narcotráfico, que aproveitavam a eficácia da rede de transportes neerlandesa, trocar drogas leves por cocaína era óbvio e muito mais lucrativo. Como se resolve o problema? Mudar a lei parece ser o único caminho. No entanto, os políticos estão parados a olhar para uma bifurcação.

Femke Halsema, a presidente da câmara de Amesterdão, defende que a legalização total da cannabis e da cocaína é a melhor escolha. Ao mesmo tempo, quer proibir os turistas de consumir drogas em coffee shops, o que, acredita, irá tornar o mercado mais pequeno e menos apetecível. Os seus opositores na câmara preferem dar um passo atrás e deixar de tolerar o consumo de drogas leves.


Femke Halsema, a presidente da câmara de Amsterdão, defende que a legalização total da cannabis e da cocaína é a melhor escolha

Em outubro, num encontro com ministros da Justiça e da Administração Interna de seis países europeus (Portugal não participou), Halsema defendeu a sua opção. “Vamos encarar os factos: a guerra às drogas não funciona, confiscar droga não funciona. E a regulamentação da cocaína não está no cenário. Espero que seja possível concordarmos que precisamos de criar uma estratégia alternativa.”

A sua ideia, desde 1996 (quando era criminalista), sempre passou por legalizar todo o mercado de drogas, no seu país e na Europa. “Ao criminalizar a oferta e a procura só ajudamos o mercado negro”, defendeu Halsema, lembrando que foi possível regular o mercado do tabaco com bons resultados. “No meu coração, estou convencida de que o melhor resultado para a nossa sociedade pode ser alcançado descriminalizando a cocaína e regulando o mercado.”

No entanto, a primeira a opor-se à ideia da autarca de Amesterdão foi a ministra Dilan Yeşilgöz, que nos Países Baixos é responsável pela pasta da Justiça. “O problema que temos é tão grande e tão urgente que prefiro focar-me no que podemos fazer do que em assuntos onde não podemos fazer tanto.”

Enquanto os políticos não chegam a um consenso, o problema aumenta. “O que é certo é que estas redes estão a operar como as redes do México”, defendeu David Weinberger, citado pela France 24. “Isto quer dizer: aterrorizar pessoas, enviando este tipo de mensagem forte que as autoridades públicas consideram um risco. Itália viu isso com o assassinato de procuradores anti-máfia.”

Ao invés de o problema estar circunscrito, ele aumenta e atravessa cada vez mais fronteiras. Em Espanha, segundo o El Mundo, já no final de outubro foi desmantelado um gangue com ligações à Mocro Máfia neerlandesa que pretendia instalar-se na Catalunha para lavar dinheiro do narcotráfico. “Se não impedirmos, em poucos anos a Mocro Máfia será tão terrível aqui quanto na Holanda”, escreve o jornal, citando uma fonte ligada à investigação criminal.

Em Portugal, a Polícia Judiciária não respondeu às perguntas do Observador sobre a eventual presença de redes ligadas à Mocro Máfia. No entanto, os relatórios mostram que há cada vez mais rotas de migrantes marroquinos a passar por Portugal, como se pode ler no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) e nos relatórios da Europol.

Jovens, solteiros, capazes de recorrer à violência. É isso que os angariadores de narcotraficantes procuram. E é esse o perfil dos jovens que desembarcam na costa da Península Ibérica.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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