O juiz Clarence Thomas conquistou seu lugar na história de uma maneira edificante, mas, curiosamente, não é celebrado nas bolhas hollywoodianas ou no movimento Black Lives Matter. Ana Paula Henkel para a Oeste:
Não
há um dia sequer que não falemos do Supremo Tribunal Federal e seus
integrantes com suas canetadas draconianas no Brasil. Nossos
iluministros e suas decisões nada republicanas que não seguem a letra
fria de nossa Constituição são, provavelmente, um dos tópicos mais
comentados em toda roda de conversa. Hoje em dia, o brasileiro não sabe a
escalação da Seleção de Futebol, mas tem na ponta da língua os nomes
daqueles que deveriam salvaguardar nossa Carta Magna, mas que
vilipendiam suas páginas diariamente.
Apesar
de Brasil e Estados Unidos serem países muito diferentes desde o seu
nascimento, atualmente há similaridades impressionantes em pontos do
cenário político. A esquerda, por exemplo, tanto lá quanto cá, vem
usando as mesmas ferramentas para controle social e cerceamento de
liberdades, seja através da mídia, de partidos e governantes, seja
através do tosco ativismo judicial.
No
entanto, quando o assunto é a comparação da Suprema Corte do Brasil com
a Estados Unidos, talvez o único ponto em comum entre elas seja a toga
preta que os juízes usam. Digo juízes, como nos Estados Unidos, e não
essa colcha de retalhos que são nossos ministros do STF, indicados para a
Corte mais importante da nação apenas como advogados.
As
diferenças entre os tribunais são tão profundas que não caberiam em
apenas um artigo. Nossos advogados de toga do STF, que adoram lagostas,
vinhos caros e interferir em outros Poderes, vivem citando a SCOTUS
(Supreme Court of the United States), mas, curiosamente, não citam como
os honrados homens e mulheres da Corte constitucional norte-americana se
comportam como verdadeiros magistrados e protetores da lei. É claro que
há algumas pinceladas de ativismo judicial nas páginas da SCOTUS, mas
elas são a exceção, não a regra, como no Brasil.
Nesta
semana, a Suprema Corte norte-americana deu outra prova de que os
juízes constitucionalistas, indicados por presidentes republicanos,
sempre protegerão a letra fria das leis e a Constituição. A SCOTUS
derrubou na última quinta-feira uma lei de Nova Iorque que restringia os
direitos de porte de armas, no julgamento mais importante sobre o tema
em mais de uma década. Na verdade, a decisão expande os direitos de
armas em meio a um acirrado debate nacional sobre o assunto, quando a
esquerda norte-americana tenta desarmar a população de bem que quer
defender a propriedade, a família e o estado de lei e ordem. Essa é a
grande e vasta maioria da população armada nos EUA.
A
decisão, que compromete regulamentações semelhantes em Estados como
Califórnia e Nova Jersey, deve permitir que mais pessoas carreguem armas
legalmente. Cerca de um quarto dos norte-americanos vive em Estados que
podem ser afetados se suas próprias restrições de armas forem
desafiadas. O tribunal decidiu que uma lei de Nova Iorque exigindo que
os moradores provem “causa adequada” — ou uma boa razão — para portar
armas de fogo escondidas em público viola a Constituição dos EUA. A
decisão da Suprema Corte continua um padrão constante de decisões que
expandiram esse direito, sustentando que o porte de armas de fogo tanto
em casa quanto em público é garantido pela Segunda Emenda da
Constituição dos EUA. Mesmo à sombra dos tiroteios em Uvalde e Buffalo, a
maioria conservadora de seis juízes na Suprema Corte manteve uma ampla
interpretação da Segunda Emenda de “manter e portar armas”. O juiz
Clarence Thomas, escrevendo em nome dos seis juízes conservadores que
compõem a maioria do tribunal, decidiu que os norte-americanos têm o
direito de portar armas de fogo “comumente usadas” em público para
defesa pessoal. Thomas escreveu: “Não conhecemos nenhum outro direito
constitucional que um indivíduo possa exercer somente após demonstrar
aos funcionários do governo alguma necessidade especial”.
Um exemplo a ser seguido
E,
apesar de a Corte norte-americana e sua espinha dorsal serem um assunto
fascinante (infelizmente um sonho inatingível para nós brasileiros), é
exatamente sobre o brilhante juiz Clarence Thomas que gostaria de
escrever hoje. Tento sempre trazer para nossos encontros semanais alguém
de minha assembleia de vozes que possa refrigerar um pouco o espírito,
não nos deixar desanimar diante de tantos descalabros e bizarrices no
mundo atual. E Clarence Thomas é, sem dúvida, uma dessas vozes. Para a
nossa sorte, ele ainda está vivo e sua altivez pode — e deve — ser um
exemplo. Quem sabe, não custa sonhar, nossos “juízes” não se inspirem em
homens como Thomas.
Clarence
Thomas completou 74 anos no último dia 23 de junho e segue sendo um dos
juízes mais respeitados da Corte. No tribunal desde 1991, ele é o
segundo afro-norte-americano a ser nomeado para a SCOTUS. Sua
confirmação deu ao tribunal um elenco conservador decisivo. E a própria
vida de Clarence Thomas repudia o ódio da esquerda pelos conservadores e
pela América.

Clarence Thomas testemunha perante o Comitê Judiciário do Senado dos EUA, em 1991
A
vida de Thomas é um testemunho emocional da persistência do homem
aliada à sua fé em Deus em meio aos altos e baixos da história
norte-americana. “Venho de um lugar regular”, diz o juiz. Thomas
conquistou seu lugar na história de uma maneira edificante, mas,
curiosamente, não é celebrado nas bolhas hollywoodianas, na imprensa, no
movimento Black Lives Matter ou no Mês da História Negra. O
documentário sobre sua vida, “Created Equal: Clarence Thomas In His Own
Words” é simplesmente espetacular e foi retirado em 2021 do site da
Amazon. Sua história é, ao mesmo tempo, o epítome do melhor e do pior da
América.
Sem
fugir das sérias razões que ele e muitos outros norte-americanos
tratados injustamente podem ter para o cinismo sobre o projeto de
“liberdade e justiça para todos”, o juiz da Suprema Corte também
demonstra como transcender o ódio com magnanimidade. É uma lição que
todos podemos aprender melhor. Justice Thomas tem razões legítimas para
odiar a América. Aos 6 anos, vagava sozinho pelas ruas segregadas de
Savannah, na Geórgia, enquanto sua mãe trabalhava em turno duplo depois
que o pai abandonou a família. Eles moravam em um cortiço só para
negros, com esgoto a céu aberto nas valas perto de onde as pessoas
cozinhavam. “Savannah era o inferno”, diz ele, no documentário. Seus
avós assumiram a responsabilidade de criá-lo e o enviaram para escolas
católicas, onde Thomas recebeu uma rara e excelente educação para um
jovem negro. Após o colegial, Thomas se matriculou no seminário com o
objetivo de se tornar um padre católico. O racismo cultural de seus
colegas brancos, no entanto, acabou fazendo com que ele abandonasse o
seminário depois de receber bilhetes dizendo “Eu gosto de Martin Luther
King — morto” e ouvir um estudante do seminário se alegrar quando MLK
foi baleado. Isso foi seguido pelos distúrbios raciais e pelo
assassinato de Robert Kennedy, no verão de 1968, e fez Thomas mergulhar
na raiva: “Pela primeira vez na minha vida, o racismo e a raça
explicavam tudo para mim. Tudo aquilo havia se tornado uma espécie de
religião substituta. Eu empurrei o catolicismo de lado, e fiz tudo ser
sobre raça”.
Ele
se juntou aos revolucionários marxistas negros no College of the Holy
Cross, em Worcester, Massachusetts. Passavam o dia demonizando as forças
policiais e planejando atacá-las com pedras. Durante uma visita aos
avós na Geórgia, o avô de Thomas e o irmão veterano do Vietnã ficaram
envergonhados e irritados com suas atividades e ideologia de “poder
racial negro”, mas ele ainda se sentia justificado por fazer parte
daquele grupo e beber daquela fonte.
Depois
que ele se formou na Faculdade de Direito de Yale, no entanto, a única
pessoa que contrataria Thomas era um republicano. Os empregadores
presumiram que os graduados negros de Yale eram de menor calibre do que
os brancos por causa da ação afirmativa e se afastaram dele. “A parte
mais difícil de aceitar o emprego foi que ele era republicano. E a ideia
de trabalhar para um republicano era, na melhor das hipóteses,
repulsiva”, diz Thomas. No entanto, com uma esposa e um filho para
sustentar, Thomas engoliu seu desgosto e aceitou o emprego no Missouri.
O
trabalho era como procurador-geral adjunto. Hoje, rindo de seu eu mais
jovem, ele diz: “Na época, meu pensamento era que todos os negros eram
prisioneiros políticos. Esse era o nível com que eu olhei para o sistema
de justiça criminal”. No entanto, através de seu trabalho, Thomas
entrou em contato com tantos casos e dados que ele teve de finalmente
reconhecer que isso não era verdade. A grande maioria dos negros
envolvidos no sistema de justiça criminal estava lá por motivos justos.
“Foi uma dessas experiências de estrada para Damasco”, diz ele, no
filme, engolindo em seco, com uma dor óbvia em seus olhos.
Thomas
trabalhou em Direito societário em seguida, depois voltou para o
Direito público. Ao longo do caminho, tornou-se cada vez mais
conservador em seu pensamento. A imprensa acabou descobrindo e o tornou
notório. O ápice disso foi a batalha de confirmação de Thomas para a
Suprema Corte dos EUA, em 1991 — recomendo uma pesquisa no YouTube, você
assistirá a cenas lamentáveis de latente racismo de senadores
democratas, inclusive Joe Biden.
O
documentário explora de forma significativa essa saga, incorporando
imagens da audiência com flashbacks atuais de Thomas e sua esposa,
Virginia. Você verá que não é difícil se emocionar com os clipes do que
Thomas chamou de “linchamento de alta tecnologia”, diante de acusações
hediondas de abuso sexual. Sim, como todo manual para desacreditar
conservadores, havia uma acusação de assédio sexual. A acusadora de
Thomas, Anita Hill, mudou sua história várias vezes e não conseguiu
corroborar suas alegações. Pesquisas da época mostram que a maioria dos
norte-americanos acreditava que ela estava mentindo.
O
tratamento injusto de Thomas continua até hoje, principalmente nas mãos
de pessoas filiadas ao partido político que afirma representar o
antirracismo. O documentário mostra alguns dos insultos que pessoas e
publicações proeminentes aplicaram a Thomas que seriam furiosamente
criticados como racistas se aplicados a alguém com diferentes
compromissos filosóficos. Aparentemente, o racismo só importa para as
pessoas que controlam a cultura e se ele puder ser usado como arma
política contra seus oponentes.
Mesmo
já próximo de uma possível aposentadoria, a história de Clarence Thomas
não termina com um documentário. Seu corpo monumental de erudição
constitucional justifica sua mente, e a fé justifica sua alma. Como
reflexo dessas graças, e embora tenha todos os motivos para ser
vingativo e amargo, Clarence Thomas escolheu não ser. Em vez disso, ele é
grato, eficaz e alegre. Talvez acima de tudo entre os juízes da Suprema
Corte, a jurisprudência de Thomas mostre veneração pelas ideias
majestosas do que alguns racistas automaticamente desqualificam porque
um bando de “homens brancos” concordou com eles. No entanto, as maiores
ideias dos Pais Fundadores da América — homens que descendem de uma
grande gama de pessoas de aparências diferentes — transcendem
construções mentais menores, como raça, sexo e opção sexual, e nos
possibilitam fazê-lo também. É por isso que Thomas ama e enaltece esses
homens, assim como todas as pessoas sábias o suficiente para ver além da
pele na alma o fazem.
O
honroso cumprimento de seus deveres por Clarence Thomas,
independentemente do sofrimento que eles trouxeram, não apaga os pecados
cometidos contra ele, mas os redime. Ele, majestosamente, transforma o
que foi um trampolim para a glória em apenas uma pedra de tropeço de
vergonha. Esta é a história norte-americana e a história de Thomas. E
pode ser a de cada um de nós também. Pena que essa estirpe de homem e
juiz não faz parte dos discursos hedonistas de nossos ministros do STF.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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