Os totalitarismos começam pelo controle da língua. As regras gramaticais são, além de normas que ajudam a comunicar, uma proteção contra os que vêem na alteração da língua uma arma de domínio. André Abrantes Amaral para o Observador:
Há
dias, a colunista do Público, Carmo Afonso, achou por bem instruir os
seus leitores recomendando-lhes a aprendizagem do significado de 37
palavras de linguagem inclusiva. O texto
é interessante tanto pelo conteúdo como pela forma. Quanto ao primeiro,
parte do pressuposto que a linguagem é o resultado “de séculos de
sociedade patriarcal e do uso do género masculino quando nos estamos a
referir ao universal”. Como exemplo refere a palavra cliente e que as
empresas (é implícita a maldade) quando se dirigem a estes usam “Caro
Cliente” e não “Caro/a/e Cliente”. Ao contrário, a linguagem inclusiva,
com as 37 palavras cujo significado devemos aprender sob risco de
ficarmos atrasados, inclui todas as pessoas (que, por sinal, é uma
palavra feminina de que fazem parte os homens). Entre as 37 palavras
estão os pronomes cuja utilização correcta passa pelo reconhecimento de
“dois sistemas não oficiais de pronomes neutros: elu e ile”.
Sou
totalmente contra qualquer tipo de discriminação. Seja racial, de
género, social, sexual, profissional. As pessoas nascem com uma
dignidade própria, sua (a dignidade também é uma palavra feminina, seja
de mulheres ou de homens) e devem expressar em liberdade o que são,
desenvolverem-se em total harmonia com as suas crenças, valores, a
educação que lhes foi transmitida. Este é um ponto sem discussão. O
mesmo não sucede com a utilização deste princípio elementar que deve
regular as nossas vidas tornando-o num pretexto com vista a alterar a
língua e, dessa forma, controlar o modo como nos exprimimos. Este truque
é antigo, relaciona-se com o tom e com a forma do texto ao qual já lá
vamos.
Atentemos,
primeiro, ao conteúdo da mensagem de Carmo Afonso que evidencia uma
confusão entre o género gramatical das palavras e o sexo biológico. É
que estes, por vezes, confundem-se, mas não são o mesmo. Veja-se a
palavra ‘pessoa’ que propositadamente utilizei em cima: tanto as
mulheres como os homens são pessoas. Um homem é uma pessoa. Pessoa é um
nome feminino, mas um homem é masculino. Parece uma aula da escola
primária mas, e desgraçadamente para a nossa vida numa sociedade
educada, a matéria tem de ser recordada. É curioso que, tanto ‘vida’
como ‘sociedade’ também são palavras femininas (o próprio vocábulo
‘palavra’ é feminino): eu tenho uma vida e vivo numa sociedade, apesar
de ser homem. Mas há mais: a gramática é de tal modo complexa que o
género das palavras muda entre as diferentes línguas. Tomemos, por
exemplo, a palavra cadeira: em português é um nome feminino, à
semelhança do françês (une chaise), mas não tem género em inglês (chair)
e em alemão é masculino (der Stuhl). Mar em português é masculino, mas
em francês é feminino. O Sol (masculino em português), die Sonne
(feminino em alemão), o jornal (masculino em português) e die Zeitung
(feminino em alemão). Os casos são inúmeros e não quero aborrecer o
leitor com uma repetição desnecessária. O relevante é que nem sempre há
uma relação entre o género das palavras e o género relativo ao sexo
biológico.
E
chegamos ao segundo ponto que é a forma, o tom arrogante que prepassa
do texto da colunista do Público. Na verdade, Carmo Afonso não nos
ensina. É mais subtil que isso e aparentemente modesta. A colunista
sugere-nos, encaminha-nos, concede-nos a oportunidade de aprender.
Porque se não o fizermos ficamos para trás. “Já não há desculpas”, tal
qual diria uma professora depois de dada a matéria. Infelizmente, não
creio que estejamos perante um simples caso de pedanteria, mas de um
texto com um objectivo político concreto: a utilização da língua como
arma de controlo, de vigilância do modo como nos expressamos, de como
comunicamos uns com os outros. Não há aqui nada de novo, como sabemos
pela história dos totalitarismos que começam pelo domínio da
comunicação. A referência que fiz em cima à gramática é importante
porque as regras gramaticais são, além de um conjunto de normas que nos
ajudam a comunicar, uma protecção contra a arbitrariedade dos que visam
utilizar a língua como arma política e de domínio.
Só
assim se compreendem os despropósitos que referi nos primeiros
parágrafos e que usam uma discriminação (que é condenável) para que se
atinjam objectivos políticos. Também não há aqui qualquer novidade.
Durante o século passado os direitos dos trabalhadores foram uma
bandeira dos partidos comunistas e sabemos bem como viviam os
trabalhadores nesses regimes despóticos. Sabemos que é nas sociedades
liberais que os direitos sociais foram e estão salvaguardados. São
factos do conhecimento público que se aprendem em qualquer
estabelecimento de ensino. Tal como as regras da gramática.
Numa
sociedade livre que se preze qualquer pessoa é livre de pensar e de
escrever o que quer. Da mesma forma é importante que tenhamos
consciência do oportunismo político de certos crentes em determinadas
crenças. Excluir (como Carmo Afonso explicitamente faz no seu texto)
quem não segue as suas regras é fazer o que, alegadamente, diz querer
evitar. Uma vez mais a história demonstra-nos que é o que sucede quando
se começa pela imposição de regras arbitrárias.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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