Para Rainer Zitelmann, colaborador do Instituto Liberal, apesar da resiliência do sentimento anticapitalista a história mostra que o sistema de livre mercado – e não o socialismo – é o maior responsável pela redução da pobreza no mundo. Entrevista ao Estadão:
O
historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, de 64 anos, seguiu à
risca a velha máxima atribuída a Georges Clemenceau (1841-1929),
ex-primeiro-ministro francês, de que “um homem que não seja um
socialista aos 20 anos não tem coração e um homem que seja um socialista
aos 40 não tem cabeça”.
Militante
maoísta na juventude, Zitelmann se tornou um defensor entusiasmado do
sistema de livre mercado e um crítico implacável do socialismo e do
pensamento anticapitalista. Ex-jornalista, ex-empresário e investidor do
mercado imobiliário,
ele escreveu uma série de livros sobre o capitalismo e sobre os
multimilionários, que se tornaram referências nas respectivas áreas.
Nesta
entrevista ao Estadão, Zitelmann – que dará uma palestra na I
Conferência Internacional da Liberdade, na sexta-feira, 3, em São Paulo,
com transmissão ao vivo pelo YouTube – fala sobre seu livro "O
capitalismo não é o problema, é a solução" (Ed. Almedina), lançado
recentemente no Brasil. Ele apresenta casos concretos e argumentos em
favor do livre mercado, em comparação com as experiências fracassadas do
chamado “socialismo real”, e analisa a resiliência das ideias
socialistas após a queda do Muro de Berlim, em 1989.
Discute também as questões da desigualdade e da redução da pobreza, em
meio a farpas disparadas contra intelectuais e acadêmicos que, em sua
visão, reforçam o sentimento anticapitalista no mundo.
O sr. afirma que o capitalismo não é o problema, é a solução. O que o leva a dizer isso de forma tão categórica?
Vou
lhe dar só um dado, mas posso lhe dar outros. Há 200 anos, por volta de
1820, antes do capitalismo, 90% da população mundial viviam na pobreza
extrema. Hoje, são menos de 10%. Mais da metade da queda se deu nos
últimos 35 anos. Veja o que aconteceu na China. No fim dos anos 1950, 45
milhões de pessoas morreram como resultado do chamado “Grande Salto
para a Frente” empreendido por Mao Tsé-Tung.
Em 1981, cinco anos depois da morte de Mao, 88% da população chinesa
ainda viviam em extrema pobreza. Foi mais ou menos quando eles começaram
a introduzir a propriedade privada e as reformas pró-mercado no país.
Hoje, menos de 1% estão nesta situação. Isso nunca aconteceu na
história. Nunca tantas pessoas saíram do estado de extrema pobreza em
tão pouco tempo como resultado de reformas pró-mercado.
O
economista francês Thomas Piketty afirma em seu livro “O capital no
século 21”, lançado em 2014, que o capitalismo levou ao aumento da
desigualdade no mundo, especialmente nas últimas décadas. Como o sr.
analisa a questão da desigualdade e as críticas de Piketty ao
capitalismo?
Antes de mais nada, é preciso considerar que o próprio Piketty
reconhece que, na maior parte do século 20, a desigualdade diminuiu.
Agora, ele diz que, a partir dos anos 1980, 1990, tempos ruins
prevaleceram, levando em conta principalmente o que aconteceu nos
Estados Unidos e em alguns países europeus. Ironicamente, foi justamente
neste período que houve o maior progresso na luta contra a pobreza
extrema no mundo. Para mim, a desigualdade não é o ponto principal. A
prioridade é a redução da pobreza. No caso da China, que mencionei há
pouco, a desigualdade obviamente aumentou nas últimas décadas, com as
reformas pró-mercado. Hoje, a China tem muito mais bilionários do que
tinha antes. Nos tempos de Mao não havia um único bilionário na China.
Hoje, há centenas de bilionários, tantos quanto nos Estados Unidos. Em
Pequim, há mais bilionários do que em Nova York. Mas ninguém na China
está pedindo para voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade
naquela época.
Ironicamente,
mesmo que a desigualdade tenha aumentado nos Estados Unidos, como diz
Piketty, milhões de pessoas estão tentando imigrar para lá, em busca de
uma vida melhor. Como o sr. vê esta questão?
Este
é um dos meus principais argumentos em favor do capitalismo. É
importante olhar para onde os imigrantes vão. Eles sempre vão de países
com menos liberdade econômica para países com mais liberdade econômica.
Na época do comunismo, ninguém falava que queria ir da Alemanha
Ocidental para a Alemanha Oriental. Hoje, ninguém vai dizer que quer ir
de Miami para Cuba. Talvez para passar umas férias, por umas duas
semanas, e olhe lá. Ninguém diz também que quer ir da Coreia do Sul para
a Coreia do Norte. Ou que quer “escapar” do capitalismo do Chile para o
“paraíso socialista” da Venezuela.
Além
da China e do Chile, que outros exemplos o sr. poderia citar de países
que prosperaram nas últimas décadas, a partir da adoção ou do
fortalecimento do sistema de livre mercado?
No
Vietnã, por exemplo, eles fizeram um grande progresso econômico nos
últimos 30 anos, com o aumento da liberdade econômica. As pessoas lá
estão muito melhor hoje. A Polônia é um dos países que mais aumentaram a
liberdade econômica no mundo nas últimas décadas. É incrível o que
aconteceu lá desde a queda do comunismo. Então, na prática, o que a
gente vê é que o capitalismo funciona.
O
sr. mencionou o caso do Chile, mas lá a esquerda, que defende maior
intervenção do Estado na economia, venceu as últimas eleições. Se o
sistema era tão bom no Chile, como o sr. afirma, por que a esquerda
ganhou a eleição?
Às
vezes, as pessoas esquecem a razão pela qual eram bem-sucedidas. O
Chile alcançou um grande progresso econômico, em termos de PIB (Produto Interno Bruto)
per capita e também de outros indicadores, nas últimas décadas. Muita
gente não sabe, mas a desigualdade diminuiu no Chile, nos últimos 10
anos. Só que as pessoas votaram num candidato socialista. Isso não
acontece só no Chile, mas em muitos países, inclusive nos Estados
Unidos, na Alemanha. Na China, está ocorrendo a mesma coisa. Eu tenho um
amigo na China que diz que eles foram tão bem-sucedidos não por causa
do Estado, mas apesar do Estado. Hoje, tem pessoas na China querendo
voltar a ter mais Estado e menos mercado. Elas esqueceram a razão que as
levou a ser bem-sucedidas.
Agora,
no Chile, parece que havia também um desejo de mudança e uma grande
rejeição pelo candidato da direita, que era pró-mercado, mas mostrava
certa nostalgia pelos governos militares. Isso também não deve ser
levado em conta?
Com
certeza. Minha namorada, que é do Chile e vive há três anos e meio em
Berlim, votou no Gabriel Boric, o candidato da esquerda, que venceu as
eleições presidenciais. Votou nele porque achava que o (José Antonio)
Kast, o outro candidato, era muito de direita, talvez como o Bolsonaro,
no Brasil. Ela esperava que Boric fosse meio moderado. Mas agora já tem
dúvidas de que tomou a decisão certa. Está vendo que ele não era tão
moderado quanto imaginava e claro que ela não quer ver o Chile voltar
aos tempos do (Salvador) Allende, nos anos 1970. Muita gente está tendo a
mesma percepção. Há um desapontamento com o Boric. No ano passado, 78%
dos eleitores do Chile votaram em favor da adoção de uma nova
Constituição no país. Hoje, segundo as últimas pesquisas, a maioria se
declara contra a nova Constituição, que é defendida pela esquerda e será
votada em 4 de setembro.
No
Brasil, está acontecendo algo parecido. O ex-presidente Lula, que é o
principal candidato da esquerda nas eleições presidenciais e aparece na
frente nas pesquisas, também está buscando alianças de centro, para
mostrar uma face mais moderada ao eleitor. Como o sr. vê esta
estratégia?
Isso
não me surpreende. É sempre assim: antes das eleições, eles tentam se
mostrar mais moderados, dizem que não são de esquerda, para conquistar
os eleitores de centro. Eles sabem que os esquerdistas vão votar neles
de qualquer jeito, mas tentam atrair, como sempre, as pessoas do centro.
A minha impressão é de que o Lula está tentando fazer a mesma coisa
agora no Brasil, procurando mostrar que mudou um pouco, que não é tão de
esquerda e ficou mais moderado. Pode ser também que seja uma questão de
falta de alternativa. O Bolsonaro, especialmente na pandemia, não foi
bem, cometeu muitos erros. Acredito que o caso do Bolsonaro no Brasil é
muito parecido com o do Kast, no Chile. Algumas pessoas só votaram no
Boric porque não gostavam de Kast, porque ele era da direita radical.
Após a queda do
Muro de Berlim, em 1989, muita gente acreditava que o socialismo
ficaria para trás. Mas hoje, 33 anos depois, o que se vê é que as ideias
anticapitalistas não apenas sobreviveram, como se revigoraram. Em sua
visão, o que explica esta resiliência do socialismo, mesmo com o
fracasso do “socialismo real”?
Nos
anos 1990, ninguém acreditava no socialismo, porque a derrocada do
comunismo era muito recente. Mas, com o tempo, as pessoas esqueceram o
que aconteceu e o anticapitalismo se tornou mais forte de novo. Mesmo na
Alemanha. Nós tivemos um plebiscito no ano passado para decidir sobre a
expropriação de propriedades de companhias imobiliárias com mais de 3
mil apartamentos. 56% dos eleitores em Berlim votaram pela expropriação e
pela nacionalização dos apartamentos excedentes. Na Alemanha Oriental
eles tinham imóveis de propriedade do Estado. Foi um desastre. Adolf
Hitler congelou os aluguéis. Os comunistas fizeram a mesma coisa. Foi
outro desastre. Os aluguéis eram muito baratos na Alemanha Oriental,
mas, quando o Muro de Berlim caiu, 26% da população não tinham o próprio
banheiro. Tinham de sair de casa para ir ao banheiro. Na Alemanha
Ocidental, mesmo sem congelamento de aluguéis, todo mundo tinha o seu
banheiro em casa. Quando houve a reunificação da Alemanha, foi preciso
fazer um investimento de 80 bilhões de euros (R$ 408 bilhões) para
construir novas casas e renovar e modernizar as antigas casas da antiga
Alemanha Oriental. Mesmo assim, agora, o último governo de Berlim
congelou os aluguéis e a população votou pela nacionalização dos
imóveis. O filósofo (Friedrich) Hegel (1770-1831) disse certa vez que “a
única coisa que você pode aprender com a história é que as pessoas não
aprendem nada com ela”. É uma afirmação muito pessimista, mas ele tem um
ponto aí.
O
anticapitalismo parece ter um grande apelo em setores influentes da
sociedade e um espaço imenso no debate. Até que ponto isso também ajuda a
entender a reabilitação das ideias socialistas?
Os
defensores do livre mercado perderam a guerra das ideias, a guerra
ideológica. Os inimigos do capitalismo são muito mais fortes na
comunicação. As pessoas que deveriam defender o capitalismo, como os
empreendedores, não fazem isso. Os socialistas comparam o capitalismo
real com a utopia de uma sociedade perfeita. Isso seria o equivalente a
comparar o casamento de alguém não com o de outras pessoas, mas com um
casamento ideal do qual se fala em algum livro. Não é justo. Se a gente
comparar o nosso casamento com os de nossos amigos, talvez ele não seja
tão ruim quanto pode parecer. Eu sou um historiador. Levo em conta os
fatos históricos. No meu livro, não falo sobre teorias, mas de fatos,
evidências. Comparo o capitalismo com o que é possível comparar, com
exemplos concretos da história: Chile X Venezuela, Coréia do Sul X
Coreia do Norte, Suécia nos anos 1970 X Suécia depois, o Reino Unido
antes e depois da (Margaret) Thatcher. Quando você fala dos problemas
que existiam na União Soviética e em outros países comunistas, eles
dizem: “Nós não queremos nada parecido com o que foi a União Soviética
ou a Alemanha Oriental. Queremos algo diferente, queremos socialismo de
verdade”. Os socialistas tentaram de tudo. Tentaram um modelo na China
diferente da União Soviética, um modelo na Iugoslávia diferente da
Romênia, e assim por diante. Quando os regimes fracassam, eles não
entendem que a ideia é que estava errada e não a forma como o socialismo
foi implementado.
No
livro, o sr. fala sobre o sentimento anticapitalista de intelectuais e
acadêmicos. Em sua visão, por que eles criticam tanto o capitalismo?
Este
é o meu capítulo preferido. É meio complicado, mas vou tentar explicar
brevemente. Eu venho de uma família de background acadêmico. Então,
estou à vontade para falar do assunto. Na visão acadêmica, quanto mais
livros você lê, quanto mais conceituados são seus diplomas
universitários, mais do alto você olha para as pessoas e para um homem
de negócios que não leu tantos livros. Muitos intelectuais veem, talvez,
que aquele vizinho pobre, que talvez fosse um mau aluno na escola e que
não leu tantos livros quanto eles, hoje tem um negócio próprio ou uma
franquia do McDonald’s e ganha mais dinheiro do que eles. Tem um carro
melhor e uma casa maior. Isso para eles é uma prova de que o mercado
falhou, porque se o mercado estivesse certo eles é que deveriam estar
nesta posição. Fiz dezenas de entrevistas com os super-ricos, para um
livro que escrevi sobre o tema, e me dei conta de que há o aprendizado
implícito e o explícito. O aprendizado ou conhecimento implícito é o que
podemos chamar de “escola da vida” ou intuição. É um jeito diferente de
aprender. O aprendizado explícito é aquele baseado nos livros e no
aprendizado acadêmico. Os intelectuais não entendem como funciona o
aprendizado implícito. Acham que são superiores aos empreendedores,
porque têm diplomas universitários ou a sabedoria dos livros e eles,
não. Outro ponto importante é que, em geral, os intelectuais pensam em
teorias e escrevem sobre teorias. Para o capitalismo, você não precisa
de tanta teoria. É tudo desenvolvido de forma mais espontânea e não de
acordo com um plano. Lênin disse que o movimento dos trabalhadores não
viria das teorias socialistas e que os intelectuais é que tinham de
levar o socialismo para os trabalhadores. Os intelectuais têm um papel
no socialismo que não têm no capitalismo.
O
sr. diz que após a queda do comunismo o pensamento anticapitalista
adquiriu novas formas de expressão. A que formas exatamente o sr. se
refere?
A
mais importante é a defesa da ecologia e a luta contra a mudança
climática. Eu não faço parte dos grupos que dizem que a mudança
climática é uma mentira. Eu acredito que se trata de um problema real.
Mas, para muitos dos que levantam essa bandeira, a questão ambiental não
é o grande problema. Para eles, o inimigo é o mesmo, o capitalismo. Se
fossem falar sobre fome e pobreza, não teriam argumentos, porque está
claro que o capitalismo melhorou a vida das pessoas. Então, mudaram de
foco. Outro dia li um livro da economista anticapitalista Naomi Klein. O
título era Capitalismo vs. Mudança Climática. No prefácio, ela diz que
não se importa tanto com a mudança climática, mas que é uma ferramenta
muito importante na luta contra o capitalismo. Ao ler o livro, você vê
que as ideias dela são totalmente anticapitalistas, contra o livre
mercado e em defesa da economia planificada. Essas pessoas dizem que o
que causa o problema ambiental é o capitalismo. Mas, se você pegar o
Indice de Performance Ambiental, da Universidade Yale, e compará-lo com o
Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, verá que os
países mais livres são os que têm os melhores resultados ambientais. Em
relação ao PIB, as emissões de carbono da Alemanha Oriental eram 3
vezes maiores do que as da Alemanha Ocidental. Não havia nenhum país com
piores índices ambientais do que a União Soviética.
Fora
a questão ambiental, o sr. afirma no livro que o movimento contra o
capitalismo incorporou também a luta contra a globalização. O que o sr.
pode falar sobre esta questão?
Frequentemente,
a postura contra a globalização, é claro, é relacionada com o
pensamento de esquerda, mas nem sempre é assim. Também é ligada ao
pensamento de direta. Você tem isso na esquerda, na direita populista e
na direita radical. O (Donald) Trump é um exemplo perfeito da direita
contra a globalização. Na Alemanha, também tem gente de direita contra a
globalização. Muitas vezes, os argumentos da direita e da esquerda são
diferentes, mas no fim o resultado, o protecionismo, é o mesmo.
Na sua avaliação, considerando tudo que o sr. falou, por que o capitalismo gera tanta oposição e tantas críticas?
Eu
considero o sentimento anticapitalista como um tipo religião política.
No passado, há séculos, a religião era muito forte na Europa. No mundo
moderno, o anticapitalismo se tornou uma nova forma de religião. O papel
do diabo hoje é desempenhado pelo capitalismo. Você pode culpar o
capitalismo por todos os problemas do mundo: pobreza, fome, mudanças
climáticas, guerras, sexismo, racismo e até a escravidão, que foi
adotada muito antes do capitalismo. Até os seus fracassos pessoais na
vida você pode atribuir ao capitalismo. A diferença entre a religião e o
anticapitalismo é que a religião promete o paraíso depois da morte e o
socialismo promete em vida.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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