“O
juiz começou a conversar comigo, ele não ia me dar uma chance. Eu
comecei a chorar e disse que não faria nada mais de errado. Aí uma
pessoa conversou com ele, e ele disse: vou te dar a liberdade assistida.
A medida socioeducativa salvou a minha vida. Um tanto de colegas do
bairro em que eu morava morreu. E essa chance que eu tive do curso foi a
chance que eu tive para mudar a minha vida".
Esse
é o relato de Carlos Daniel, 19 anos, morador de Belo Horizonte. Ele e
outros jovens que passaram pelo Sistema Socioeducativo em Meio Aberto do
Brasil, destinado a ressocializar crianças e adolescentes infratores,
são os personagens de “Meio Aberto”, documentário realizado pela ONG
Visão Mundial, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente e a Bonita Produções, que será lançado em 2 de junho, no
Reserva Cultural. O documentário ficará em cartaz até o dia 30, com exibições diárias e gratuitas, sempre às 12h30.
Em dezembro do ano passado, a Visão Mundial divulgou a pesquisa “Diagnóstico da Política de Atendimento Socioeducativo em Meio Aberto”,
em que trazia dados inéditos sobre as dificuldades enfrentadas por
profissionais do sistema de garantia de direitos de crianças e
adolescentes, além dos próprios adolescentes que passam pela medida
Socioeducativa em meio aberto. Agora, os números da pesquisa viraram
histórias reais e relatos transformadores. Por que as medidas em meio
aberto são importantes? Por que acolher é melhor do que encarcerar?
Quais as causas que levam os jovens a cometerem crimes? Essas são
algumas perguntas que o documentário busca responder.
“Estamos
em um ano eleitoral e, mais uma vez, lidamos com o fato de o Brasil ser
um dos países que mais apreendem e encarceram suas crianças e
adolescentes. O filme cria uma plataforma para discutirmos esse problema
e trazer para o espaço público os desafios enfrentados pelos atores
sociais envolvidos na aplicação das medidas socioeducativas. Por meio de
histórias reais e emocionantes, o documentário nos permite ter uma
perspectiva mais humanizada sobre a questão”, diz Welinton Pereira, diretor de relações institucionais e advocacy da Visão Mundial.
Ao
todo, o filme traz entrevistas com 5 personagens das cidades de
Fortaleza, Recife e Belo Horizonte, além da análise de diversos
especialistas.
As gravações foram realizadas em 2022, com roteiro de Letícia Justo e direção de Daniel Reis.
Causas infracionais
Medidas
Socioeducativas são um conjunto de medidas que visam, a partir do ato
infracional cometido, promovendo a proteção social e a integração à
sociedade de adolescentes e crianças em conflito com a lei. Dependendo
da natureza do conflito, as medidas podem ser cumpridas em meio aberto,
seja por meio da liberdade assistida ou da prestação de serviços à
comunidade.
‘Ambas
têm intencionalidades diferentes, mas preveem um caráter educativo e a
construção de um novo projeto de vida para o adolescente. Uma é focada
mais nas questões individuais do jovem e a outra, na devolutiva para a
sociedade”, diz Larissa Mazzotti, coordenadora-geral do Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas (Comec).
De
acordo com a Pesquisa Nacional de Medidas Socioeducativas em Meio
Aberto, realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social, em 2018,
cerca de 117 mil adolescentes em conflito com a lei cumpriram medidas
socioeducativas em meio aberto. As circunstâncias pelas quais uma
criança ou adolescente comete um ato infracional podem estar associadas a
diversos fatores.
A
pesquisa da Visão Mundial, lançada em dezembro do ano passado em
parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda), apontou que a maior parte dos adolescentes
autores de ato infracional no Brasil já recebeu algum tipo de ameaça de
morte, seja por organizações criminosas, como facções e milícias; por
instituições do Estado, como as polícias Militar e Civil; ou até mesmo
por seus próprios familiares.
Segundo
o levantamento, em média, 89% dos profissionais que trabalham com o
atendimento de crianças e adolescentes em meio aberto (como juízes,
promotores, defensores públicos, assistentes sociais, psicólogos) já
ouviram relatos referentes a ameaças de morte.
Soma-se a isso o cenário de vulnerabilidade ao qual muitos dos infratores estão expostos.
“Nós
temos uma lógica na nossa sociedade que ainda é muito patriarcal. Os
jovens acabam assumindo a figura masculina que é ausente dentro de seus
ambientes familiares. A maioria vem de famílias numerosas, com muitos
irmãos e mães solos. Isso faz com que eles se lancem a serem os
responsáveis da família para ajudar a mãe, que muitas vezes têm apenas o
benefício federal como renda certa ao final do mês. Assumir esse
protagonismo é algo que leva, na grande maioria dos casos, a eles
infracionarem”, comenta
Vanessa Pessoa, analista em Assistência Social e Direitos Humanos na
Chefia de Divisão do Centros de Referência de Assistência Social (CREAS).
A
pesquisa da ONG – que desde 1975 atua na proteção de crianças e
adolescentes em áreas de vulnerabilidade social no Brasil – também
mostrou que ainda existem muitos empecilhos para o trabalho dos agentes
públicos.
Quando
questionados, por exemplo, sobre cursos referentes à Política Nacional
de Assistência Social, sendo esse tipo de preparação fundamental para a
atuação em sinergia dos atores que diretamente operacionalizam as
medidas socioeducativas em meio aberto, 86% dos juízes, 83% dos
promotores de justiça e 93% dos defensores públicos afirmaram não ter
participado de qualquer tipo de capacitação nos últimos 12 meses.
Quando
questionados sobre capacitação específica sobre a Lei do Sinase,
majoritariamente juízes (72%), promotores de justiça (78%) e defensores
públicos (85%) afirmaram não terem participado de nenhuma. Mais do que
isso, segundo o relatório da Visão Mundial, 33% dos defensores, 49% dos
juízes e 74% dos promotores declararam não haver atuação da equipe
técnica multiprofissional nas instituições do sistema de justiça.
A
consequência dessa falta de integração e de amplo conhecimento reflete
em um sistema baseado na punição, e não na formação dessas crianças e
adolescentes para estarem mais integradas à sociedade.
"Quando
se fala em sonho, não se fala em limites. Porém, o que a gente, que
cresce numa sociedade de classe baixa, tem para conseguir construir os
nossos sonhos? Nós que viemos dessa origem, muitas vezes não temos a
mesma condição. A minha história, espero que ela não seja só contada,
mas seja uma inspiração no meio dos jovens", relata Márcio Silva, 20 anos, morador de Recife e personagem de “Meio Aberto”.
Ficha técnica:
Direção: Daniel Reis. Montagem: Arthur Plaza. Roteiro: Letícia Justo. Produção Executiva: Daniel Reis e Ela Sodré. Coordenação Técnica: Cristiano Favotto. Produzido por: Breno Nogueira e Valentino Kmentt. Realização: Visão Mundial e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Produtora: Bonita Produções.
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