Imediatamente, as milícias do "ódio do bem" se mobilizaram para atacá-la nas redes sociais. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Já
virou rotina, o que não quer dizer que seja algo normal. Durante a
cerimônia de premiação dos BRIT Awards, em Londres, na última
terça-feira, a cantora Adele, a grande vencedora das categorias “Álbum
do Ano”, “Música do Ano” e “Artista do Ano”, declarou: “Eu realmente amo
ser mulher e ser uma artista feminina. Eu amo. Estou muito orgulhosa de
nós, realmente estou”.
Pronto. Isso bastou para a cantora ser acusada de transfobia. Imediatamente, as milícias do "ódio do bem" se mobilizaram para atacá-la nas redes sociais. Adele também foi classificada como TERF (“trans-exclusionary radical feminist”), termo pejorativo que designa as feministas que teriam preconceito contra pessoas trans.
(O
mesmo rótulo, aliás, foi usado no cancelamento da escritora
J.K.Rowling, autora de “Harry Potter”, que cometeu o crime de criticar o
uso da expressão “pessoas com vagina” no lugar de “mulheres” para
designar... Mulheres, isto é, pessoas com vagina.)
Esta
foi, aliás, a primeira edição dos BRIT Awards que não premiou um
Artista do Ano masculino e uma Artista do Ano feminina: a intenção da
mudança era não excluir “pessoas não-binárias” e reconhecer todos os
artistas “exclusivamente pela sua música e seu trabalho, em vez de por
como eles escolhem se identificar ou por como outros podem vê-los.”
[grifo meu]
Adele
ainda fez a concessão de dizer que entende por que o prêmio mudou, mas
não adiantou nada: foi sumariamente cancelada. Em questão de minutos,
internautas “do bem” se mobilizaram para pregar o boicote às músicas da
cantora, que teria ofendido gravemente pessoas “não-binárias” e
“transgênero”: "Quem pensaria que Adele era transfóbica e usaria a
plataforma do prêmio para pedir a destruição da comunidade trans?",
perguntou um usuário do Twitter.
Pois
é. Uma mulher dizer que ama ser mulher está pedindo a destruição da
comunidade trans. É este o nível da argumentação da militância
identitária. O que isso sinaliza?
Tem
uma questão de fundo aí. Mas antes observem como o texto de
justificativa da mudança do prêmio reduz sutilmente o fato de ser homem
ou mulher a uma questão de escolha, como se homem fosse quem optasse se
identificar como homem e mulher fosse quem optasse por se identificar
com mulher. Obviamente, não é: qualquer um é livre para se identificar
como quiser, é claro, mas a biologia e a genética importam.
E
qual é a questão de fundo? Para princípio de conversa, há uma
contradição óbvia na decisão de abolir premiações específicas para
homens e mulheres para apoiar a diversidade, mas essa contradição parece
passar despercebida para todos os envolvidos no debate.
A
luta legítima da minoria trans é pelo respeito à diversidade, mas,
paradoxalmente, o que se fez foi eliminar a diversidade, tornando todos
os artistas sexualmente indiferenciados. Respeitar a diversidade de
verdade seria criar novas categorias para os grupos que se sentem
preteridos ou excluídos e buscam reconhecimento, e não jogar todos no
mesmo saco da "neutralidade" sexual, como se isso existisse.
Como
se não bastasse afirmar que gosta de ser mulher, Adele cometeu a
ousadia de encerrar seu discurso dedicando a vitória à sua família:
“Queria dedicar esse prêmio ao meu filho. E a Simon, pai dele. Por toda
nossa jornada, não apenas a minha.”
E
aqui a equação fecha. Defender a instituição da família nuclear, com
pai, mãe e filhos, também é percebido como algo ofensivo pela militância
progressista. A família é hoje percebida como uma instituição fascista,
heteronormativa e machocêntrica, que só serve para reproduzir valores e
práticas que precisam ser abolidas da sociedade.
Mas esse episódio, como tantos outros, revela outras duas contradições:
A
primeira contradição é lutar pela tolerância praticando e pregando a
intolerância. Raras vezes se viu tanto ódio quanto o dos grupos que se
apropriam de bandeiras de minorias, legítimas em sua origem, para
perseguir e esfolar desafetos. Os linchamentos morais e os
cancelamentos, cada vez mais frequentes, são prova inequívoca de que
aqueles que dizem combater a intolerância são os mais intolerantes.
A
segunda contradição é lutar não por direitos iguais, mas por direitos
diferenciados. Por óbvio, nenhuma pessoa “trans”, como nenhuma pessoa
pertencente a qualquer minoria, pode ser desrespeitada ou ser vítima de
preconceito, o que significa dizer: nenhuma pessoa pode ser tratada de
forma diferente das demais por ser trans ou pertencente a qualquer
minoria.
Mas
afirmas que ninguém pode ser prejudicado por suas escolhas ou suas
origens implica afirmar também que ninguém pode ser beneficiado por suas
escolhas ou suas origens.
A
dificuldade começa, justamente, quando o horizonte deixa de ser uma
sociedade harmônica, onde todos tenham direitos iguais e se tratem com
respeito, e passa a ser uma sociedade dividida em grupos que se odeiam e
que buscam um tratamento especial às custas dos direitos dos outros.
Uma
sociedade assim não tem com dar certo: uma sociedade na qual os
oprimidos buscam não a igualdade de direitos, mas tomar o lugar dos
opressores, repetindo as suas piores práticas e adotando a mesma
premissa do modelo de sociedade que afirmam combater, qual seja: aquele
no qual pessoas são tratadas de formas diferentes com base em sua
identidade e sua origem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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