Uma coisa pode jogar a favor de Rio e dos outros. Auden, o poeta, escreveu em 1939, a propósito de um movimento lançado por Willi Münzenberg, o grande e brilhante agente do Komintern, antes de cair em desgraça junto de Estaline: “Esse movimento falhará: os intelectuais apoiam-no”. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
É
um clássico nas eleições. Chega uma altura da campanha em que a
esquerda infalivelmente descobre que estamos em plena guerra civil
espanhola. A besta fascista por todo o lado mostra as suas garras
afiadas. A imunda reacção avança, impetuosa, com o fito de destruir a
nossa civilização pacientemente erguida. Os massacres a vir aproximam-se
velozmente, com o seu cortejo de infâmias e perseguições. É sempre
assim. Não falha.
Felizmente,
mil vozes de passionarias instantâneas ou rapidamente improvisadas se
erguem, com os pergaminhos todos da cultura que se opõe à barbárie. “Não
passarão!”, é o grito enérgico que mais se ouve vindo de gargantas
roucas de indignação. Os peitos fazem-se corajosamente às balas. Não,
não queremos uma longa noite que congele as nossas vidas e nos proíba de
viver o desejo da utopia. Não aceitaremos que o árduo caminho que
percorremos em direcção à felicidade seja assim brutalmente interrompido
sob os golpes da férula fascista. “Não passarão!”
Esta
alucinação ritual do passado no presente é um fenómeno muito curioso. A
única reacção saudável, é claro, é ver neste coro de aparentes
maluquinhos – alguns, admito, maluquinhos a sério – a expressão do
histrionismo delirante de comediantes falhados que em si querem
concentrar toda a atenção. Sobretudo para quem já viu isto vezes sem
conta e se lembre dos rostos que, aos olhos do coro, sucessivamente
encarnaram a sinistra figura do fascista imaginário, é quase a única
reacção possível. Não é preciso perder muito tempo a investigar o porquê
da coisa. Seria como dedicar uma vida de labor à análise semiótica do
Big Brother dos Famosos – com o qual, de resto, o estilo
“passionariaritual” oferece algumas semelhanças.
Ao
mesmo tempo, esta facilidade na regressão pode inspirar alguma
curiosidade. Porque se trata bem de uma regressão, de um retorno aos
modos mais arcaicos do pensamento. E o histrionismo dos comediantes
falhados tem algo de preocupantemente patológico. Como em certas grandes
obras literárias – o Diário de um louco, de Gógol, por exemplo, mas há
muitas -, o riso suscitado convive com a percepção funda da tragédia,
simultânea e quase indistinguivelmente. Não é impunemente que se é dado a
uma tão grande facilidade de alucinar ritualmente o passado no
presente. O cómico – ou se se preferir, o ridículo – da alucinação
revela o enclausuramento do pensamento num reduto último do qual o
discurso habitual, fora destes momentos de crise, se revela ser a
expressão atenuada. Dito de outro modo: há continuidade entre os
momentos alucinatórios e os momentos em que tudo parece obedecer aos
requisitos mínimos da racionalidade. A esquerda que aí temos é, no
fundo, coerente, embora as virtudes dessa coerência sejam eminentemente
discutíveis.
Sem
surpresa alguma, é nos chamados “intelectuais” que essa coerência é
mais manifesta. Dados à palavra fácil e aos abaixo-assinados facílimos, a
alucinação é neles, muitas vezes, o registo natural do seu pensamento,
pela própria necessidade de a si mesmos se verem como missionários
falantes e escreventes do Bem, em perpétua luta contra a sordidez do
capitalismo. A regressão é neles quase um sistema, cuidadosamente
trabalhado e experimentado. Os abaixo-assinados e “manifestos” que
regularmente aparecem como pãezinhos são um bom exemplo disso.
Mas
quando falam em nome próprio a coisa não é menos patente. Naquela
sessão do PS em que Rosa Mota, ao seu modo primitivo, tratou Rui Rio de
“nazizinho”, um desses intelectuais – Valter Hugo Mãe, um escritor que
eu nunca li, pela simples razão que o vi a falar várias vezes na
televisão e me faltam as virtudes teologais necessárias para acreditar
que o acto da escrita produza o milagre da transfiguração de um espírito
assim – lembrou o “Inverno cultural” que representou Rui Rio à frente
da Câmara do Porto, quase desejando, num gesto sacrificial, que Rio
fosse eleito primeiro-ministro “para as pessoas aprenderem [supõe-se que
até ao fim dos tempos] a serem mais espertas”, pelo menos tão espertas
quanto ele supostamente é. E, como o Mal não pode, por razões
ontológicas, subsistir sem que o seu adversário, o Bem, dê um ar da sua
graça, declarou-se embevecidamente fascinado pelo “sorriso” de António
Costa, que nos havia libertado da nefanda noite escura de Passos Coelho.
A dialéctica do horror e do êxtase, tão cara à esquerda que por aí anda
em momentos de decisão eleitoral, é o pão de cada dia do intelectual
regressivo, cujo ofício é quotidianamente alucinar, em rituais verbais, o
passado no presente, ao mesmo tempo em que tem sempre na ponta da
língua o, ó tão belo!, desejo da utopia.
Como
é óbvio pelo correr da campanha – e nisso Costa é indistinguível da
extrema-esquerda, como se viu, por exemplo, na forma como se demarcou da
afirmação de Rosa Mota, discordando da expressão, mas sem tomar posição
face ao conteúdo, ao conceito –, PSD, CDS e Iniciativa Liberal
enfrentam, na disputa eleitoral, uma formidável barreira regressiva,
cujo patente carácter alucinatório e arcaico é exactamente simétrico das
piores coisas do Chega, com a diferença que não sofre, ao contrário
deste, o escrutínio da comunicação social e apresenta uma convicção
apaixonada que declaradamente falta ao segundo, onde a convicção é um
puro efeito de superfície.
Uma
coisa, no entanto, pode jogar a favor de Rio e dos outros. Auden, o
poeta, escreveu em 1939, a propósito de um movimento lançado por Willi
Münzenberg, o grande e brilhante agente do Komintern, antes de cair em
desgraça junto de Estaline: “Esse movimento falhará: os intelectuais
apoiam-no”. Somando tudo, pode acontecer que tanta e tão vocal regressão
acabe por beneficiar a direita. Não é seguro, mas pode ser que sim.
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