Polícia chegou a ir na casa da criadora de um centro para mulheres vítimas de violência por insinuações de que ela propagava discurso de ódio. Vilma Gryzinski:
Primeiro
vamos colocar o contexto: a Escócia, um país que se transformou num dos
mais avançados polos do pensamento – e da práxis – politicamente
correto.
Num
exemplo desse comportamento, uma mulher trans de origem indiana, Mridul
Wadthwa, se tornou no ano passado a diretora do Edinburgh Rape Crisis,
um centro criado por mulheres em 1978 para acolher vítimas de estupro.
Nessa
condição, ela passou a dizer que as vítimas que demonstrassem
“preconceito” seriam confrontadas. Disse também que o processo de
enfrentar o preconceito – sinônimo para não aceitar mulheres trans em
espaços reservados a mulheres biológicas – fazia parte da “superação” e
aceitação do trauma da violência sofrida.
A
coisa se complicou mais um pouco quando Nicola Murray, criadora de uma
casa de acolhimento específico para mulheres que sofreram aborto por
causa da violência doméstica, divulgou que não iria mais direcionar
vítimas para o centro comandado por Wadthwa, por considerar as posições
defendidas por ela “extremamente preocupantes”.
Capítulo
seguinte: a polícia bateu na porta de Nicola Murray. Isso mesmo, ela
entrou na mira das autoridades por tuitar que o abrigo sob sua direção
era destinado apenas a mulheres biológicas.
“O
que está acontecendo nesse mundo quando a Polícia da Escócia visita uma
mulher para dizer que ela não cometeu nenhum crime de ódio, mas que
precisam ‘esclarecer o que estava pensando quando fez sua declaração’.
Isso se chama totalitarismo”, protestou Joanna Cherry, deputada pelo
SNP, o partido independentista da Escócia.
Outro
desdobramento: o lobby feminista Fair Play for Women apresentou uma
queixa oficial contra a polícia escocesa. Especificamente, pela
declaração de um vice-comandante, Gary Ritchie, ao defender a ação de
seus subordinados dizendo que “crimes de ódio ou discriminação de
qualquer tipo são lamentáveis e totalmente inaceitáveis”. Com isso,
insinuou que Nicola Murray havia se comportado de forma condenável.
Chegamos
assim a mais um capítulo das relações tensas, quando não beligerantes,
entre feministas mais tradicionais e militantes trans.
As
primeiras são contra a abertura de espaços como abrigos ou alas
hospitalares a mulheres trans que não fazem as alterações físicas para
se qualificar no novo gênero.
Também
não aceitam que, em nome de não causar ofensa a homens trans –
biologicamente, mulheres – que engravidam, todo o vocabulário específico
do universo feminino – incluindo as palavras “mãe”, “maternidade” e
“amamentar” – seja eliminado da linguagem oficial.
Esta corrente feminista tem até uma designação injuriosa, TERF, ou feministas que excluem trans, em inglês.
A
discussão, de tão surreal, parece ocorrer num universo paralelo, mas
está acontecendo no mundo real, especialmente na Inglaterra e na
Escócia.
O
assunto, por motivos óbvios, é delicadíssimo. Ser acusado de
“transfobia” é praticamente uma sentença de eliminação social. Na
Inglaterra, a organização que defende direitos para transexuais e a
qualificação de gênero baseada exclusivamente na autodeclaração,
Stonewall, tornou-se influente e poderosa em múltiplas esferas da vida
pública.
Para
dar orientação e cursos sobre o tema, já assinou contratos com
instituições como a BBC , o Ministério das Relações Exteriores e as três
forças armadas, que pagaram 80 mil libras pela assessoria. O NHS, o
serviço de saúde pública, pagou meio milhão de libras ao longo de três
anos. Ao todo, órgãos públicos colocaram mais de três milhões de libras
Recentemente,
algumas dessas instituições, incluindo a BBC e órgão responsável por
inspecionar as escolas públicas, afastaram-se da Stonewall.
A
batida na porta – sinônimo, no mundo anglos-saxão, de estado
autoritário – de Nicola Murray mostrou que a discussão ainda tem muito
espaço para esquentar.
“No
futuro, o momento atual pode ser visto como o início de um movimento
justo que abriu os olhos da sociedade para uma injustiça evidente”,
escreveu o Telegraph. “Mas também pode ser visto como uma aberração
espantosa, um período em que, tomados por uma falácia passageira,
passamos a encarar o gênero não como uma realidade biológica objetiva,
mas como um espectro subjetivo”.
O
fato de que as duas proposições podem ser, simultaneamente,
verdadeiras, ou parcialmente misturadas, acrescenta várias camadas de
complexidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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