domingo, 30 de janeiro de 2022

Déficit de vergonha na cara



Boris, Andrew e Novak deram maus exemplos de desonra. Vilma Gryzinski para a edição impressa de Veja: 


“Tire-me a honra e minha vida terá acabado”, escreveu o supremo mestre dos dramas em que se entrechocam ambição, sede de poder e sentimento de honra. Os personagens de dias recentes que perderam a dignidade e a reputação no teatro moderno da opinião pública seriam no máximo coadjuvantes num drama de Shakespeare. Estariam mais à vontade numa comédia em que espertalhões se enroscam em suas artimanhas. Boris Johnson foi tripudiado, com justiça, pelo pedido arrevesado de desculpas por uma happy hour em Downing Street quando o resto da Inglaterra penava sob regras do confinamento. “Eu acreditei implicitamente que era um evento de trabalho”, disse ele sobre a festinha no jardim do conglomerado onde os primeiros-ministros britânicos moram e trabalham. A frase foi uma cuidadosa construção para que, mesmo encaixada num pedido de desculpas, deixasse uma saída legal a Boris no caso de uma investigação policial. Em outras palavras, uma mentira deslavada. Outro mentiroso simultaneamente coberto de desonra foi o príncipe Andrew, o filho a quem a rainha Elizabeth cortou de vez de qualquer função pública. Andrew foi segregado e degradado depois de definido que ele será objeto de uma ação indenizatória na Justiça americana por fazer sexo com uma menor de idade propiciada pelo bilionário pervertido Jeffrey Epstein. O trio de desonrados se completou com Novak Djokovic, cuja falta de classe nas quadras foi vergonhosamente transposta para fora delas com a exposição da sequência constrangedora de mentiras em que se enrolou para participar do campeonato Aberto da Austrália sem a vacinação contra a Covid.

Honra é uma virtude que parece ter ficado fora de moda, superada por sua associação à sociedade patriarcal (aquela em que, em nome dela, um marido podia — e devia — matar a mulher adúltera) e a extremos como os da “era dos duelos”, o período entre os séculos XVIII e XIX em que a mais mínima ofensa, ou suspeita dela, era levada à disputa a tiros de pistola. Um dos duelos mais famosos, ou infames, foi aquele em que Aaron Burr, então vice-presidente, matou um dos gênios da Revolução Americana, Alexander Hamilton, em 1804. Motivo: comentários insultantes que Hamilton teria feito num jantar sobre o adversário político. Mesmo tendo errado o tiro e morrido 31 horas depois de alvejado por Burr, quem entrou para a história, deixou uma frase antológica (“Se os homens fossem anjos, não seria preciso governo algum. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários quaisquer controles internos ou externos sobre os governos”) e virou musical da Broadway foi Hamilton. O senso exacerbado de honra na vida pública foi gradativamente substituído pela ideia de que “políticos são mesmo assim” e a elite é uma esbórnia só. Uma senhora de 95 anos demonstrou que ainda há quem não aceite a derrocada dos padrões. Agindo como rainha, e não como mãe — dá para imaginar o conflito —, Elizabeth II tirou do filho predileto até o tratamento de Sua Alteza Real, ao qual tinha direito desde o nascimento. Como Bill Clinton em seus contorcionismos verbais na época de Monica Lewinsky, Andrew diz que “não tem lembrança” de ter conhecido a mulher que hoje o acusa. É outra construção feita por advogados. No popular, falta de vergonha na cara.

Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773
 
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

 

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