terça-feira, 2 de novembro de 2021

Uma mulher eram três homens

 



Sempre fiquei perplexo quando diziam que Chico Buarque “compreende a alma feminina”. Que compreensão é essa, e que verso exemplifica isso exatamente? Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva:


Esse é o escândalo atual (um pequeno escândalo, um escandalinho) do mundo literário espanhol. É compreensível que seja um escândalo, em alguma medida – ninguém mais hoje em dia fica chocado quando uma mulher é, na verdade, um homem, mas quando são três talvez seja um pouco demais.

Carmen Mola era supostamente uma professora universitária de álgebra e mãe de três filhos que, nas horas vagas, escrevia thrillers ultraviolentos de caráter feminista. Era elogiada por “entender a alma feminina” e considerada a Elena Ferrante da Espanha (um exagero, os livros de Elena Ferrante são bem melhores). O Instituto da Mulher de Espanha disse que os livros de Mola “ajudam a entender a realidade e as experiências femininas nos dias de hoje”.

Mas quando um livro de Mola foi escolhido para receber o Prêmio Planeta deste ano, no valor de 6,42 milhões de reais, três roteiristas homens se identificaram como os autores verdadeiros por trás do pseudônimo feminino. Esses roteiristas, Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero foram chamados pela imprensa e pela internet de golpistas e estelionatários: o crime deles, parece, foi vender o produto artesanal chamado “sensibilidade feminina” com a garantia de que era feito por uma autêntica nativa do sexo feminino da tribo indígena das mulheres, mas aparentemente era só um produto falsificado.

A autora que “desvendava a sensibilidade feminina” era na verdade três dudes. Mas a sensibilidade feminina é uma invenção masculina, digo eu.

Não. Espera. Eu não penso isso de verdade. Eu pensaria isso de verdade se fosse mais corajoso, se não fosse irritar ninguém nem nada – mas neste clima atual, quem quer irritar alguém? Até uns dez anos atrás era considerado ok provocar as mulheres, vê-las ficando furiosas e tal, ou pelo menos era considerado ok entre os homens e entre as duzentas mulheres com senso esportivo que existiam no mundo. Mas agora é considerado vil, então nem em pensamento eu penso isso que eu escrevi aí em cima.

Mas, digamos, se eu fosse outra pessoa, se fosse mais corajoso, diria não só isso como também o seguinte: não só a sensibilidade feminina é uma invenção masculina, como a sensibilidade masculina é uma invenção masculina também.

O crítico literário Harold Bloom disse que Shakespeare criou o ser humano, “a personalidade tal como a entendemos”. Parece um exagero, eu sei. Mas, se é assim, quais escritores criaram a sensibilidade feminina? Evidentemente Shakespeare, Flaubert e Tolstói. Grandes autoras como Jane Austen parecem ter estado mais preocupadas com a sociedade do que com a “sensibilidade feminina”.

Sempre fiquei perplexo quando diziam que Chico Buarque “compreende a alma feminina”. Que compreensão é essa, e que verso exemplifica isso exatamente? Ninguém me diz com clareza, então vou chutar. É só a percepção de que, sei lá, mulheres têm facetas e desejos conflitantes? São fortes mas vulneráveis, e essa papagaiada toda? Acho que sim, porque acabei de ver num reality show uma mulher chorando e dizendo: “Foi muito bom pra mim passar por essa experiência (uma experiência banal qualquer de reality show) porque eu descobri que eu tenho, sim, uma força enorme, sou uma guerreira… mas que também tenho um lado frágil, menininha…” Isso não é meio óbvio para todo mundo? Até um caracol tem esse nível de compreensão da alma feminina.

De modo que quão difícil é “desvendar a alma feminina” num romance? Fazendo força pra lembrar aqui, as únicas vezes que um romancista foi acusado de criar personagens femininas inconvenientes, foi quando elas eram boas demais. Esse, aparentemente, é o único tipo de mulher implausível.

Para ser justo, também se reclama quando a personagem feminina é má demais. De modo que mais uma vez chego à conclusão de que, para “desvendar a alma feminina”, só é preciso fazer um esforço mínimo para colocar alguma coisa conflitante ou muito levemente complexa na personagem. Mas é assim com personagens masculinos também, não?

Um dos autores espanhóis que escrevia como Carmen Mola, Antonio Mercero, disse ao El Pais que não escreveu com esse nome para ganhar mais dinheiro: “Não sei se um pseudônimo feminino venderia mais do que um masculino. Não tenho a menor ideia, mas duvido.”

Sim, certo: eles escolheram se passar por uma autora porque achavam que venderiam menos.

A verdade é que sempre se reclama do machismo do mercado literário, jornalistas escrevem editoriais furibundos, leitoras fazem campanhas, criam slogans e hashtags do tipo “leiam mulheres” (as amigas que sigo em aplicativos de leitura quase só leem mulheres), mas é evidente que faz muito tempo o mercado literário é dominado pelas mulheres, seja escrevendo, editando ou lendo. Há muito tempo é uma vantagem ser mulher no mercado literário, e talvez na sociedade como um todo.

Mas quando as mulheres vão reconhecer isso? Quando vão confessar que ganharam esse jogo já há algumas décadas? Nada pior que ser um mau ganhador que trapaceia para dizer que não ganhou uma partida.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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