Primeiro de uma série de artigos de Bruna Frascolla sobre os movimentos na direita, publicada pela Gazeta do Povo:
Desde
2016 não tenho uma boa relação com a esquerda. O ano do impeachment foi
um marco da degeneração do ambiente intelectual universitário, com
professores fiscalizando redes sociais de alunos e se revelando, em suas
crenças, indiscerníveis de aluninhos de DCE.
O
grosso da gente que se considerava “de esquerda” entrou num surto do
qual não saiu até hoje, e os que não entraram adotaram uma destas duas
posturas: ou reviram suas crenças políticas e abandonaram o rótulo, ou
passaram a se considerar a única esquerda verdadeira, ainda que composta
por uma meia dúzia de gatos pingados. O primeiro grupo é cheio daqueles
que aprenderam a fazer contas e passaram a se dizer liberais. As
corporações empresariais ocuparam o lugar sagrado do Estado em suas
cabeças.
Esse
movimento na esquerda em 2016 coincidiu com a identificação da esquerda
com o fanatismo identitário. Se a esquerda tradicional não via com bons
olhos essas correntes burguesas que desprezam o trabalhador para tratar
de moda afro e beijo gay, em 2018 era ponto pacífico que a eleição de
Bolsonaro constituía um risco à vida de negros, gays, mulheres, índios,
quilombolas, pessoas portadoras de nanismo etc.
Os
escritores costumam ter uma ideia do perfil do seu leitor. De minha
parte, percebo que existe um nicho da esquerda que gosta de coisas que
escrevo. Trata-se dos dois ou três gatos pingados que se mantiveram na
esquerda tradicional e chamam a atual de ex-querda. O que os atrai na
minha escrita é a minha oposição incondicional ao identitarismo, por
eles partilhada. Sinto que posso ter uma conversa honesta com eles, por
mais extravagantes que sejam suas ideias. Mas não posso fazer o mesmo
com um identitário, seja ele um autodeclarado esquerdista ou liberal. Em
matéria de política nacional, esses gatos pingados tendem a se reunir
em torno de Aldo Rebelo, embora este não se diga mais de esquerda e
tenha saído do PCdoB. Ciro Gomes é complacente com o identitarismo e
misturou-se demais com o lulismo em sua trajetória. A pegada
nacionalista meio retrô de Aldo Rebelo pode ser vista em seu portal
Bonifácio.
Assim,
olhando para trás, podemos dizer o seguinte acerca da esquerda: ela
comportava um dissenso interno muito amplo, sofreu uma pressão por
uniformização, essa pressão foi vitoriosa e hoje ela não comporta mais
dissenso. Reina o pensamento único progressista ou identitário.
Eu
acho que a mesma pressão está ocorrendo na direita, e acho que a
pressão é para que haja um pensamento único disfarçado de esquerda e
direita; um pensamento idólatra de corporações empresariais e
visceralmente antidemocrático. Um pensamento pró cartel que enxerga os
Estados nacionais ora como obstáculo (na medida em que são democráticos e
legalistas), ora como instrumento (na medida em que têm poder de compra
e monopólio da violência legítima).
As correntes da nova direita na década de 00
Chamo
de nova direita aquela que surgiu independentemente do apoio à ditadura
militar. O liberalismo de Roberto Campos remonta à ditadura, mas é um
pensamento autônomo em relação a ela. Em 1983, Donald Stewart Jr.,
brasileiro, criou o Instituto Liberal no Rio de Janeiro, e suas
atividades estão em continuidade. À frente do instituto está Lucas
Berlanza, pesquisador aficionado por Carlos Lacerda. Por aí se vê que
esse liberalismo faz jus ao aspecto político, que é a democracia.
Carlos
Lacerda foi, na maior parte da vida, um defensor da democracia contra
regimes autoritários: esteve contra Vargas e fez campanha pela
redemocratização. Com a ditadura militar, guardou uma relação ambígua,
já que aderiu a um golpe que tirasse Jango e pusesse apenas um general
num mandato tampão para o país se aquietar. É uma corrente americanófila
e promove o norte-americano Milton Friedman, um autodeclarado
neoliberal.
Creio
que esta seja a direita organizada mais antiga do Brasil em atividade.
Embora fosse composta por alguns gatos pingados, a esquerda
provavelmente os tinha em mente ao chamar meio mundo de neoliberal.
Uma
corrente independente do Instituto Liberal, porém aparentada, é a dos
“austríacos”, isto é, a dos seguidores da escola austríaca de pensamento
político-econômico. Ludwig von Mises dá nome ao instituto e Friedrich
Hayek pertence à corrente. Junto com os anarcocapitalistas seguidores de
Rothbard, agregam-se no Instituto Mises Brasil, fundado em 2007, em São
Paulo, por Hélio Beltrão. O site do Instituto Mises poderia ter
informações sobre sua história. Seja como for, depois dos anos 10 o
anarcocapitalismo seria moda na juventude, portanto podemos apontá-lo
como uma tendência independente que alcançou bastante sucesso no mercado
de ideias. Seu foco no aspecto econômico não deixa de lado a teoria
política.
Em
2008, Olavo de Carvalho funda o Curso Online de Filosofia (COF). Era um
intelectual autodidata munido de uma personalidade carismática e um
trajeto bastante agitado. Sua vida já incluía passagens por: Partido
Comunista Brasileiro, comunidade mística islâmica, cursos de astrologia e
colunas nos jornais mais respeitados do Brasil. O sucesso foi
estrondoso, e já em 2008, mesmo ano da fundação do curso, Olavo de
Carvalho já contava com milhares de admiradores pelo Brasil, muitos dos
quais fanáticos insuportáveis que passavam o dia xingando os outros na
internet.
Internamente,
Olavo era famoso pela tese do sucesso do gramscismo no aparelhamento
das instituições de ensino e da produção cultural, pela denúncia do Foro
de São Paulo e por apresentar uma seleção de autores diferente da
apresentada nas universidades. (Registro, aliás, o seu feito de trazer a
obra de Voegelin para o Brasil.) Externamente, era conhecido pela
agressividade dos seus seguidores e pela bizarrice de suas teorias, tais
como a da Pepsi feita com fetos abortados. Bastava uma alma escrever na
internet que, ao contrário do que Olavo disse, a Pepsi não tem feto
abortado, e apareceriam comentaristas que ela nunca viu mais gordos
xingando-a e fazendo mil estrepolias exegéticas para dizer que Olavo tem
razão.
Eu
não tenho problemas com a figura do louco que mistura a Verdade à
sandice. Há até alguma beleza nisso e o teatro retrata. Mas eu tenho
problemas com o pinscher que escolhe uma pessoa para confiar cegamente e
fica latindo contra quem abale a sua crença. Esses não podem ser
levados a sério como interlocutores e são tão incapazes de discussão
quanto um identitário que xinga todo mundo de racista ou transfóbico.
O PT feliz com Bolsonaro
Enquanto
a esquerda estava em plena calmaria nos anos que precediam o
impeachment, as múltiplas correntes da direita fervilhavam.
Conheciam-se, articulavam-se, brigavam por protagonismo nas
manifestações. Não havia nenhuma pauta definida, nenhum candidato
discernível. A tradicional pauta da intervenção militar sempre aparecia
em cartazes, por mais que a nova direita protestasse. E segue
aparecendo. Quanto aos partidos, que fazer? Em 2013, os manifestantes
proibiram as bandeiras de partido. O verde e amarelo imperava, sem que
surgisse nenhum partido capaz de representar os anseios difusos das
multidões antipetistas.
Um
deputado folclórico começou a ganhar destaque. Lá na mais vetusta
direita havia um deputado que representava no Congresso os interesses
dos militares da Repressão e defendia abertamente Ustra. Juntava-se aos
evangélicos na causa contrária à agenda LGBT, que ainda nem tinha Q.
Os
petistas acharam-no um vilão perfeito e parecem ter se esforçado para
dizer ao Brasil: “Se vocês não ficarem conosco, vão ter que ficar com o
bicho papão!” E apontavam Bolsonaro. Muito mais tarde, já em 2018, Breno
Altman chegou a chamar de ideal a presença de Bolsonaro no segundo
turno, porque ela significava a certeza da vitória do PT. (Breno Altman é
um intelectual orgânico, dono do portal Opera Mundi. Vocês podem ver a
cabeça dele entre a de Maduro e Evo, ao lado de Stédile.)
O PT se revelou um péssimo leitor da realidade.
Correntes de direita surgidas na década de 10
Dessa década são o Partido Novo (2011), o MBL (2014) e o Livres (2016).
Comecemos
pelo mais velho. O Novo foi a primeira iniciativa político-partidária
do antipetismo. Assim, não é de admirar que estivesse coalhado de
futuros apoiadores de Bolsonaro: era a única opção que se apresentava
como antissistema então. Apesar de a base de apoiadores ser grande, a de
financiadores iniciais era centralizada. Os financiadores eram do Itaú
Unibanco. Podemos dizer que é um partido de banqueiros monopolistas que
contou com adesão ampla.
O
MBL (2014) brotou do meio olavete e tinha o fito de liderar
manifestações de massas para tirar o PT da presidência. Ao contrário do
Novo, o MBL nasceu com o intuito de ser um movimento de massas, em vez
de uma instituição partidária. O MBL nunca se movimentou para formar um
partido próprio; em vez disso, optam por tratar partidos como
hospedeiros. Do jeito que é capilarizado e gozava de apoio antipetista, o
MBL não teria grande dificuldades para criar um partido.
O
Livres (2016) tem como seu nome de proa Fábio Ostermann. Ele foi um dos
fundadores do MBL e saiu em 2015. Diz que saiu do movimento por querer
que ele fosse institucionalizado e ganhasse transparência. Talvez
possamos descrever o Livres como o resultado de um racha no MBL, com
Renan Santos ficando e Ostermann criando um movimento novo. Ao contrário
do MBL, o Livres não tinha tanta facilidade para regularizar um
partido. Assim, optaram por um acordo com o coronel dono do PSL para
fazerem da sigla a sua casa.
Destaco,
porém, que o Livres plantou uma tremenda confusão filosófica na praça.
Seu slogan é “liberal por inteiro”. Isso deveria significar “liberal na
economia e nos costumes”, como se a face política do liberalismo
político não fosse a base, e não houvesse “liberalismo político”. Então
se o sujeito sabe fazer conta e é a favor de bundalelê, é liberal, mesmo
que seja contra a liberdade de expressão e defenda a centralização do
poder de decidir o que é Verdade nas mãos das agências de checagem. Uma
barbaridade.
Uma
barbaridade que é tendência na direita aceita pela mídia tradicional e
que tende a torná-la indiscernível da “ex-querda” identitária.
Nesse sumário, faltou um racha importante ocorrido dentro do olavismo, que fica para a próxima.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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