Abandono da instrução básica é prática de exclusão no reino dos desiguais. José Nêumanne para o Estadão:
Educação
não é privilégio é o título da obra mais importante do fundador do
conceito de escola pública em tempo integral no Brasil, o baiano de
Caetité Anísio Teixeira, que, não por homenagem vazia, mas por mérito
incontestável, completa o nome do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais (Inep). Ou seja, a repartição pública que
administra o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no centro das
atenções no momento. Aliás, Enem e Inep são os dois piores exemplos de
como a teoria no nome é invertida: entre os privilégios de classe e de
casta no País destaca-se o elitista vezo histórico, oposto à intenção
benemérita do formulador dos Centros Integrados de Educação Pública
(Cieps), no Rio, e dos Centros Educacionais Unificados (Ceus), em São
Paulo.
Não
se trata de imposição da direita ou da esquerda, mas de uma tradição
arraigada, que deforma todas as tentativas de corrigir seu rumo.
Inspirada em Ruth Cardoso, mulher do então presidente da República
Fernando Henrique Cardoso, a pesquisadora de políticas públicas Ana
Fonseca criou o programa de Renda Mínima na gestão do tucano José
Roberto Magalhães Teixeira, o Grama, em Campinas. À época, o ex-reitor
da Universidade de Brasília (UnB) Cristovam Buarque implantou no governo
do Distrito Federal o programa Bolsa Escola. A denominação condicionava
o desembolso de dinheiro público ao incentivo para lares pobres
matricularem a prole. No primeiro governo Lula, do qual Buarque foi
ministro da Educação, a ideia original alterou o enfoque educativo para
assistencialista com o Bolsa Família, que manteve, mas não priorizou, a
necessidade da matrícula para o recebimento do dinheiro. O desgoverno
Bolsonaro deixou o programa social finar por inanição e promete
substituí-lo por outro, assumido como apenas assistencialista, o tal
Auxílio Brasil.
Essa
inversão da prioridade educacional para a assistencial direciona,
evidentemente, o objetivo social para o político, assumindo a
mendicância militante. Seja à esquerda, seja à direita, como sequência
natural dos antigos programas paternalistas das obras contra as secas e
condicionando a emergência à compra indireta dos votos num populismo
contra o povo, como o pratica o atual desgoverno. A história
contemporânea produziu a adulteração da denominação dos planos de
incentivo à educação básica em muletas sociais para a distância abissal
entre as migalhas para a instrução pública inicial e o dispêndio
insustentável no nível superior. O exemplo de Inep/Enem é de uma clareza
absoluta. Criado para avaliar e, em seguida, qualificar o ensino médio,
que seria a prioridade evidente de qualquer gestor público bem
intencionado, é usado como via de acesso para instituições superiores,
substituindo o método tradicional do vestibular. A perenidade dos
privilégios de classe e casta é óbvia, cega, muda e surda.
A
pretexto de extinguir o inexistente risco da ditadura comunista, o
golpe militar de 1964 paralisou as instituições democráticas por 20
anos, mas perdeu, por evidentes limitações intelectuais, a guerra pelo
controle ideológico dos câmpus. Quando o regime ruiu sobre os próprios
pés de barro, o domínio intelectual do marxismo-leninismo mostrou seu
fascínio de corações e mentes e exibiu sua adesão ao elitismo dominante
das origens de classe de seus devotos e prosélitos. O Inep deixou de
honrar o nome do pedagogo que o batizara. E o Enem sobreviveu à invasão
solitária do policial federal na elaboração secreta da prova. Como a
intelligentsia socialista manteve as superstições de cátedras intactas
após a invasão do câmpus da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo pelos meganhas comandados pelo coronel reformado do Exército
Erasmo Dias, em 1977.
Marx,
o papa do “socialismo científico”, não compareceu na prova a que o
menor número de inscritos desde 2005 foi submetido. Mas seu arrimo de
família e sócio minoritário, Friedrich Engels, manteve acesa a luta de
classes num quesito esquisito retirado de sua insignificante obra A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Esse texto, obsoleto há
176 anos, desde a publicação, desmoraliza os autores da prova, que
podiam ter tratado do desemprego do operariado brasileiro a olho nu na
calçada de casa. E também os fracassados interventores Jair Bolsonaro,
Milton Ribeiro e Danilo Dupas, vítimas da própria ignorância. Eles na
certa conhecem Chico Buarque e Henfil, mas dificilmente terão lido
Admirável Mundo Novo, do britânico Aldous Huxley, parodiado em canção
pelo sertanejo Zé Ramalho, sucesso na trilha sonora de O Rei do Gado,
telenovela de Benedito Ruy Barbosa. Dificilmente terão compreendido que o
título da canção, que troca mundo por gado, ironiza a alcunha
pejorativa de fanáticos bolsonaristas.
Neste
momento em que crianças desmaiam de fome nas classes, desafiando sua
exclusão da instrução pela desnutrição, a esquerda resistente e a
direita demolidora associam-se na manutenção desumana do elitismo
impiedoso que expulsa os pobres da escola e a pandemia do exame escolar.
São cúmplices da inanição letal e da repartição da ignorância, único
bem repartido na república dos desiguais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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