quinta-feira, 2 de setembro de 2021

“Os neandertais tiveram muito sucesso no que fizeram, não foram uns fracassados”, diz arqueóloga.

 



Arqueóloga Rebecca Wragg Sykes repassa as últimas grandes descobertas sobre essa espécie e tenta derrubar alguns dos preconceitos que a cercam. Entrevista a Alberto Quero, do El País:


A relação dos neandertais com este mundo surgiu há 350.000 anos. A de Rebecca Wragg Sykes (Londres, 40 anos) com eles começou logo depois de ela completar 14 anos. Em uma visita organizada por seu colégio, Wragg Sykes viu de perto como se trabalhava em um sítio arqueológico da era romana. “Então percebi que queria estudar arqueologia”, diz.

Anos mais tarde, um vídeo projetado no Museu das Cavernas de Altamira (Espanha) a fez fechar o foco sobre o que realmente lhe interessava. Os restos romanos eram legais, mas o período do Pleistoceno era um campo muito mais “apaixonante”. “Não temos textos, não temos registros escritos, mesmo comparando com a pré-história mais recente não temos tanto material, por isso temos que usar ainda mais a criatividade para obter o máximo de informação possível”, diz Wragg Sykes numa entrevista por videoconferência.

Quinze anos de estudo são concentrados agora em seu livro Kindred: Neanderthal life, love, death and art (“Parentes: vida, amor, morte e arte dos neandertais”, inédito no Brasil), incluído pelo The New York Times entre os 100 mais destacados de 2020. “Uma nova e completa história sobre os neandertais que sintetiza milhares de estudos acadêmicos em um único relato acessível”, disse o jornal em uma de suas resenhas. O objetivo é aproximar todos os públicos das grandes descobertas recentes em torno dos neandertais, mas também levar outros detalhes sobre sua vida e seu cotidiano que não têm espaço em muitos meios convencionais.

Pergunta. Qual era seu objetivo ao escrever o livro?

Resposta. Os neandertais são interessantes porque aparecem muito na mídia. Costumo dizer que são como celebridades. Se há uma descoberta sobre os neandertais, frequentemente é noticiada. Mas o que não é noticiado são as outras informações que os arqueólogos conhecem, e que é complicado de explicar em um só artigo. Então eu quis escrever um livro que reunisse tudo o que a arqueologia moderna pode dizer sobre os neandertais, incluindo os grandes descobrimentos, mas também como a arqueologia trabalha atualmente. Queria apontar as diversas dificuldades que encontramos no que fazemos, e como as resolvemos para criar este conhecimento tão rico sobre a vida dos neandertais. Acho que às vezes não nos comunicamos fora do nosso âmbito. Alguns dos principais assuntos que aparecem na televisão ou nos grandes jornais são frequentemente relacionados à extinção deles, e eu queria falar sobre o resto dos neandertais, dos 300.000 anos antes que isso ocorresse, que também são muito interessantes. E queria pensar neles em seus próprios termos, sem ter a nós mesmos como pano de fundo.

P. Como foi o processo de criação, com a pandemia no meio?

R. Comecei a falar com meu editor sobre o assunto há uns oito anos, mas na verdade demorei uns três anos e meio para escrevê-lo. Comecei no princípio de 2017, enquanto estava na França, e depois voltei para o Reino Unido. Embora tenha sido uma experiência maravilhosa, é difícil passar de uma linguagem acadêmica, onde para cada exemplo você precisa se basear em um exame de DNA ou demonstrar seu ponto de vista, para escrever para todos os públicos. Tive que reestruturar o livro. Era o dobro de longo do que é agora. Por tudo isso, o processo foi difícil, embora eu tenha gostado de escrever a introdução dos capítulos, que são muito mais narrativas. Nisso eu me diverti muito. Quanto à pandemia, não foi difícil para mim em comparação com o que as outras pessoas tiveram que enfrentar em nível profissional. Ao final do livro menciono a covid-19 e a pandemia, porque o epílogo já se centrava em perguntas existenciais relacionadas à crise climática e as preocupações das pessoas em torno deste tema. A pandemia foi outro elemento. Para mim, mostrou como as oportunidades e a sorte desempenham um papel fundamental no que ocorre conosco como espécie, e acredito que isso seja muito importante.


P. Uma das histórias mais interessantes é a da origem do nome dos neandertais. De onde vem?

R. É uma dessas conexões históricas estranhas. Há muitas coisas antigas na história dos neandertais que nem sequer incluí, porque são extremamente esquisitas. Por exemplo, em um momento da II Guerra Mundial, havia uma caveira de neandertal sob o altar de uma velha igreja católica em Roma [risos]. Uma coisa muito estranha. O nome dos neandertais como espécie originalmente vem da caverna de Feldhofer, na Alemanha, que fica no vale de Neander [Neandertal, em alemão]. Esse vale foi batizado dessa forma em alusão a um poeta e compositor [Joachim Neander] dos anos 1600, uns 100 anos depois da sua morte. Mas antes disso já era um vale muito bonito, era um lugar muito turístico, aonde as pessoas iam se inspirar. O curioso é que o sobrenome original desta família era Neumann, mas por uma moda da época, seu avô modificou seu sobrenome e adotou o de Neander. Neumann significa “homem novo”. Então o vale de Neander foi batizado, sem que soubessem, como o “vale do homem novo”, muitos anos antes de ali serem encontrados os primeiros restos de neandertais. Não se pode imaginar um lugar mais adequado.

P. Lendo o livro dá a sensação de que sabemos tudo sobre os neandertais. É assim?

R. Há muitas coisas que desconhecemos. Não sabemos qual é o ponto mais oriental que habitaram. A caverna de Denisova, na Sibéria, é o ponto mais oriental onde encontramos restos. Mas isso não significa que seja o ponto mais oriental aonde chegaram. Entre Denisova e o Pacífico há só estepes e algumas montanhas, mas não há razão para que não pudessem chegar significativamente mais longe. Tampouco sabemos quão longe eram capazes de se deslocar como indivíduos. Temos duas formas de medir isso. Podemos olhar os isótopos de seus ossos, que nos dizem que podiam andar 50 quilômetros. Mas poderia não ser uma medida real. A única outra forma pela qual podemos fazer isso é rastreando a pedra das ferramentas que criavam, e dizer que uma ferramenta veio de uma montanha que fica 100 ou 300 quilômetros adiante. Quando você tem essas distâncias tão grandes, significa que os neandertais se moviam individualmente nessas escalas? Ou entregavam esse tipo de objetos em alguma espécie de intercâmbio? Não sabemos ainda.

Inclusive não compreendemos completamente por que há tantas formas de fazer ferramentas de pedra, porque havia. Não eram feitas de uma única forma, e não sabemos por que todos os grupos de neandertais conheciam todos os tipos de tecnologia. Isso é muito difícil de explicar. Se houver um sítio arqueológico muito bem conservado, ele pode dizer coisas incríveis sobre o que estava acontecendo ali, como esse lugar está conectado com outros sítios, com a paisagem. Mas há aspectos fundamentais que não sabemos. Deslocavam-se em grupos? Com que frequência? É difícil de dizer. Podemos olhar para isso de uma perspectiva individual e pensar “talvez se deslocassem muito entre grupos”, mas provar que todos faziam isso é complicado, porque viveram durante um intervalo de tempo enorme e em uma área muito ampla. Mas acho que estamos melhorando em entender que precisamos esperar muita diversidade nas coisas que eles faziam.

P. O livro também pretende derrubar os clichês que há em torno da figura dos neandertais. Por que esses clichês estão tão arraigados?

R. Acho que é algo estranho, porque os neandertais foram os primeiros hominídeos que encontramos. Foi a primeira vez que soubemos que havia outro tipo de humano no planeta. Foram mostrados como algo com que nos comparar desde o princípio das origens humanas. Acho que nesse sentido sempre olhamos de uma forma muito entusiasmada para as diferenças e salientamos que eles são como um lixo. Temos uma visão negativa porque queremos explicar por que eles não estão mais aqui. Não há neandertais ao nosso redor, e queremos explicar isso de uma forma que nos ponha em bom lugar. E queremos fazer assim porque é como emolduramos nossa explicação das coisas. Definitivamente, há uma visão negativa persistente sobre os neandertais, tanto na ciência como na cultura. Mas, por outro lado, se eu conheço alguém, em um trem ou uma situação similar, e digo que trabalho com neandertais, muito frequentemente me dizem “Ah, não são tão estúpidos como se achava”. Mas as pessoas ainda gostam de usar a palavra neandertal como insulto. Isso se separou da arqueologia, o insulto continua aí.

P. Mas os neandertais viviam em grupos, preocupavam-se com os outros, dormiam em camas, se interessavam pela arte, tinham uma cultura e um algo parecido com uma linguagem. Poderíamos pensar que no fundo não somos tão diferentes.

R. Se você observar o que os Homo sapiens faziam na época em que os neandertais estavam vivos, a maior parte daquele tempo, faz entre 350.000 e 40.000 anos, os restos arqueológicos são muito semelhantes. Há muito pouca diferença. É só um pouco depois de 100.000 ou 60.000 quando começam a ser vistas algumas diferenças em nível estético e possivelmente também em algumas tecnologias de caça [...]. Acho que um dos grandes elementos que podem representar uma diferença, em termos da extinção, é que neste ponto os grupos do Homo sapiens tinham uma organização social diferente. Temos evidências arqueológicas de objetos simbólicos, como pingentes de pedra. Inclusive a genética sugere que os primeiros grupos de Homo sapiens não estavam isolados uns de outros. Viviam em grupos pequenos, mas estavam bem conectados. E isso se parece muito com o que vemos na população extrativista recente. As pessoas se moviam entre grupos o tempo todo. Muitos deles não tinham um vínculo de sangue, mas tinham redes de apoio amplas. E isso é o que talvez os neandertais não tivessem, então acredito que o que talvez tenha realmente feito a diferença está relacionado com as comunidades sociais dos primeiros Homo sapiens.

P. Os neandertais eram quase tão inteligentes como nós, mas mesmo assim desapareceram. Podemos aprender algo com isso?

R. Acho que tinham uma inteligência impressionante, e de alguma forma podemos dizer que era a mesma. Mas talvez eles não pensassem no mundo exatamente como nós pensamos, como essa ideia de uniões entre pessoas. Talvez não fizessem tantas conexões entre ideias. Acho que temos que pensar que os neandertais tiveram muito sucesso no que fizeram, não foram uns fracassados. Uma boa comparação é observar a história profunda da Terra e as grandes extinções maciças anteriores. Frequentemente há animais que estavam muito bem adaptados ao meio ambiente, e mesmo assim foram extintos. Houve um elemento de sorte. E temos que nos perguntar por que levou tanto tempo? Sabemos que os Homo sapiens saíram da África entre 150.000 e 200.000 anos atrás. Se éramos tão superiores, por que demoramos tanto tempo para substituí-los e chegar à Europa? Por que aconteceu tão tarde? Mais ainda quando o que vemos desse período é que houve numerosos encontros, por isso vemos através da genética, sabemos que houve mestiçagem. Há algo que é diferente, e talvez a sorte seja o fator principal. Nosso desejo de nos conectarmos com todos e socializarmos não nos torna mais inteligentes, só nos torna diferentes. E isso poderia ajudar.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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