A incompetência da retirada do Afeganistão tem peso relativo. Vilma Gryzinski para a edição impressa de Veja:
No
movimentado ano 400 da Era Cristã, o comandante-chefe dos Exércitos
romanos, Flávio Estilicão, um vândalo por parte de pai — no sentido
étnico, embora pela força da profissão também gostasse de quebrar coisas
—, retirou as tropas sob seu comando da distante e complicada Britânia.
Tinha assuntos mais sérios a tratar, como as invasões dos godos de
Alarico que redundariam, uma década depois, no grande saque de Roma. A
província britânica não era exatamente uma joia fulgurante na coroa de
Roma, mas o início da retirada romana marcou o arco histórico que
levaria, em menos de um século, ao fim do Império Romano do Ocidente.
Pela
grandeza, pela extensão, pela influência cultural e política, e até
pela águia com um feixe de flechas numa das garras, um dos vários
símbolos copiados do mais glorioso império da Antiguidade, os Estados
Unidos são tradicionalmente comparados a Roma. E não faltam analistas
que veem agora na espantosamente malconduzida retirada do Afeganistão a
prova que faltava do declínio do império americano. Há um tanto de
exagero e outro de wishful thinking, ou expressão de desejo, nos
prognósticos sobre o fim próximo da maior superpotência da história. Os
EUA continuam a ser a força dominante em matéria de tecnologia, ciência,
finanças, poderio bélico e soft power. Sejam as massas destituídas,
sejam os programadores bem instruídos, é para a América que as pessoas
continuam querendo ir fazer a vida.
Mas
o poder das imagens não deve ser subestimado. O estado de aturdimento
demonstrado pela cúpula americana com a rapidez da ascensão do Talibã e
os danos autoinfligidos por uma retirada catastroficamente planejada
refletem uma falência sistêmica. Não é apenas Joe Biden que parece
intimidado e perdido — além de muito mais gravemente comprometido com
uma visão alternativa da realidade do que era Donald Trump. Todo o
establishment, político, diplomático e militar, tem se comportado de
maneira patética, talvez o mais cruel dos adjetivos. Os países que
funcionam se governam sozinhos e, quando a elite dirigente escorrega, o
desgoverno parece mais chocante.
Embora
seja considerado superado e até arcaico, Edward Gibbon continua a ser o
autor da melhor definição sobre o declínio do império romano,
cirurgicamente escrutinado na sua obra monumental. “O declínio de Roma
foi o efeito natural e inevitável da grandeza imoderada. A prosperidade
alimentou o princípio da decadência; a causa da destruição
multiplicou-se com a extensão da conquista; e, tão logo o tempo e o
acaso removeram os apoios artificiais, o estupendo tecido cedeu à
pressão do próprio peso.”
O
mundo com o esgarçamento do “estupendo tecido” do império americano é
mais fragmentado e menos ordenado. E prontinho para ser progressivamente
deglutido pela China.
Adendo:
como era de praxe, Flávio Estilicão foi decapitado por um aspirante a
usurpador do trono imperial e passou para a história como um fracassado
praticante da realpolitik, tendo sido o homem que “perdeu” a província
que eventualmente criaria um império mais extenso do que o romano. O
julgamento de Joe Biden e sua pequenez imoderada pode reservar uma
sentença mais dura.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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