domingo, 29 de agosto de 2021

O dia em que me atrevi a dar conselhos literários a Harold Bloom

 



As palavras de Harold Bloom são uma oportunidade para se enfrentar o relativismo estético blasé de toda uma geração. Paulo Polzonoff via Gazeta do Povo:


“Mas estou vivo”. É com essas palavras que Harold Bloom encerra a entrevista dada a mim no remoto ano de 2006. Hoje Bloom não está mais vivo senão na memória dos muitos que aprenderam com ele a ler as grandes obras da Civilização Ocidental. Bloom morreu em 2019, aos 89 anos, depois de toda uma vida em defesa de um espírito literário que infelizmente se perdeu.

Se essa entrevista tem história? Ô, se tem. Às vésperas de me mudar para os Estados Unidos, eu queria distância dos círculos literários e estava decidido a desistir do jornalismo. E passava os dias entre a ansiedade da viagem e planos mirabolantes de um futuro que nunca se concretizou – ainda bem. Até que, por algum motivo que me escapa, recebi um convite de um assessor de imprensa para entrevistar Harold Bloom.

Quando disquei os últimos dos trezentos algarismos que compunham as ligações internacionais daquela época, senti algo em meu espírito ruir. Agucei os ouvidos. Bloom era, para mim, o Everest, e no caminho até o cume há sempre traiçoeiras avalanches. Àquela altura da vida, começava a desconfiar das premissas que me guiavam pelo faroeste da literatura brasileira. Mas avançava com teimosia por esse deserto – até porque me faltavam alternativas.

Bloom fez as vezes de Virgílio e me conduziu por todos os círculos do inferno editorial em não mais do que meia hora de conversa que me custaram mais do que ganhei com a entrevista – que, aliás, nenhuma publicação quis comprar. Ele falou de Stephen King e “Harry Potter” e ali eu já percebi no velho e gordo mestre o mesmo cansaço que antevia em minha vida cercada por livros, escritores e controvérsias vazias.

Muita água passou por debaixo dessa ponte desde então. A tal ponto que, hoje, reconheço a petulância do entrevistador provinciano ao recomendar ao “grande crítico” que não lesse nada da literatura brasileira contemporânea. Mas não só isso. Na última década e meia, eu e Harold Bloom nos distanciamos por uma diferença espiritual irreconciliável: a crença dele no gnosticismo como forma de interpretar a literatura e a realidade.

Se reproduzo hoje esta entrevista, contudo, é porque ela é praticamente inédita (foi publicada num negócio chamado blog e que era moda na primeira década do século XXI). E também porque vejo nas palavras dele – que não tinha vergonha alguma de dizer que alguém lia mal – uma oportunidade de enfrentar o relativismo estético blasé de toda uma geração.

No final do livro “Jesus e Javé – Os Nomes Divinos”, o senhor diz que, se Javé é o Senhor da Guerra, Alá é um terrorista suicida. Não é uma afirmação perigosa de ser feita nestes tempos de intolerância religiosa?

É curioso você dizer isso. Não acho que seja uma afirmação perigosa, mas acredito que vivemos uma época perigosa. Meu livro não pretende ofender nem judeus, nem cristãos ou muçulmanos. Não falo sobre religião, mas sobre personagens literários. Mas acredito que é realmente complicado. Vivemos dias em que não sabemos quem é mais louco, se o presidente Bush ou o presidente do Irã. E, no final das contas, ambos foram eleitos democraticamente. O que é confuso, porque aprendemos desde sempre que a democracia é o melhor sistema de governo que existe. Eu acredito muito no que Churchill disse, que a democracia é o pior sistema de governo existente, com a exceção de todos os outros. É engraçado, é estranho, mas, se você pensar bem, é verdade.

Mesmo pensando em cristão e judeus como tradições literárias distintas, o senhor considera uma coexistência pacífica possível, até mesmo pela existência da sociedade judaico-cristã que o senhor chama de “farsa”?

Eu pensava que vivia um pesadelo durante a Guerra Fria, mas a Guerra Fria acabou e agora temos as guerras religiosas. Acho muito difícil que seja possível uma coexistência pacífica, não só entre judeus e cristãos, porque temos os muçulmanos no meio disso tudo. E os muçulmanos desejam que judeus e cristãos se curvem diante da lei de Alá. Realmente acredito que uma guerra próxima é possível. Há muito ódio no meio disso. Historicamente, acho que a paz é uma impossibilidade.

Como o livro, que faz críticas explícitas ao cristianismo, está sendo recebido pelos cristãos?

Meus livros sempre geram alguma polêmica. Mas acho que eles são aceitos da melhor forma possível. É claro que há reações exacerbadas. Outro dia uma mulher me ligou – e eu não sei como ela conseguiu meu número, porque ele não está na lista. Perguntou se eu era o professor Bloom. Eu disse que sim. Daí ela começou a dizer que meu livro era um livro do inferno, um livro que queria instigar a luta entre judeus e cristãos, que era um livro que destilava preconceito contra os cristãos. Daí ela começou a gritar comigo. Mas foi um caso isolado. Para minha surpresa, acho que o livro tem sido muito bem aceito por aqui.

O senhor faz declarações muito interessantes sobre as distinções entre Javé, Jesus e Jesus Cristo, que seria um personagem distinto. Fico aqui me perguntando: o leitor comum é capaz de compreender seus argumentos? Será que este tipo de leitor, que cresceu lendo autores vulgares, está capacitado para discutir suas ideias?

Realmente, as pessoas não estão preparadas. Elas não querem... É complicado, porque é um livro que exige educação. Não quero impor nada. É um livro de ideias. Não sei como anda a educação no Brasil, mas tenho a impressão de que a educação no mundo como um todo tem piorado. Vivemos na Era da Informação, pessoas conseguem informação que querem a todo o momento, vivem na frente do computador. Mas não tenho certeza se isso se traduz em educação. Se elas estão abertas a discutir ideias, se conseguem compreender. Vivemos tempos estranhos...

O senhor é um crítico confessional, que se expõe muito em seus livros. O senhor acredita que seja possível fazer uma crítica objetiva, quase científica, ou a crítica é uma experiência essencialmente subjetiva?

Eu acho que o que a maioria das pessoas chama de objetividade é na verdade muito rasteiro, muito fácil de se atingir, muito estúpido. Enquanto a subjetividade, a autêntica subjetividade, é muito profunda e difícil. É uma relação forte com tudo o que foi pensado, dito e expresso com beleza. É claro que temos, no Ocidente, 3000 anos de tradição literária, espiritual e filosófica. Não é possível, de modo algum, conhecer tudo isso. Mas insisto que prefiro uma subjetividade profunda, tanto quanto for possível, a uma mera objetividade rasa.

Quando do lançamento da coletânea “Contos e Poemas para Crianças Extremamente Inteligentes de Todas as Idades”, o senhor parecia desesperançado quanto ao futuro da literatura. O senhor ainda se sente assim?

Eu estava deprimido. E não só por causa do frenesi quanto à internet ou aqueles livros bobos da J.K. Rolling, e sim pela degradação da literatura infantil em todo o mundo. Quero dizer, quantas crianças hoje, em qualquer língua, leem “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, ou quantas crianças leem “O Vento nos Salgueiros”, de Kenneth Grahame? Quantas leem Hans Christian Andersen? Houve uma queda horrível na qualidade da leitura. Quantos brasileiros leem “Os Lusíadas”? Quantos se debruçam sobre Shakespeare ou Cervantes? E por quê? Eu hesitaria em dar uma resposta, porque a televisão e o cinema são capazes de assimilar certos aspectos de Shakespeare ou Jane Austen. O problema é que as pessoas se contentam com isso e acabam tendo apenas uma leitura de segunda mão destes autores, o que é muito superficial.

Há alguma esperança?

Este é meu 51º ano como professor. E minha visão do que é a leitura é a de um jovem se apaixonando por livros. Eu o imagino saindo da sala de aula com um livro realmente bom nas mãos, se sentando embaixo de uma árvore e lendo em voz alta para si mesmo. Com que frequência isso acontece hoje? Não sei...

Há quem diga que o fenômeno “Harry Potter” é uma esperança...

Não, não, não. Eu discordo. Isso é um desastre. Geralmente as pessoas que dizem isso argumentam que pelo menos as crianças estão lendo. E que no futuro, se elas criarem o hábito, lerão coisas melhores. Mas a resposta para este argumento já foi dada pelo “Harry Potter de adultos”, um escritor horrível, deplorável: Stephen King, que resenhou um dos livros de Harry Potter no Sunday Times Book Review e disse: “É maravilhoso!”. Bem, se isso é o que as crianças estão lendo aos 9, 10, 11 anos, então aos 12, 13 elas estarão lendo Stephen King. É o que elas estarão preparadas para ler.

O senhor é um grande comentarista da Bíblia, Shakespeare, Cervantes, enfim, todos os autores canônicos. O senhor tem algum interesse na literatura contemporânea?

Faço o que é possível. A maior parte do que me chega é em inglês, mas também recebo muita coisa em outras línguas. Bem, você deve saber que eu conheço muito bem a poesia e os romances clássicos da literatura brasileira. Mas, quem, dentre os autores brasileiros vivos, você diria que eu deveria ler?

Acho que o senhor deva ler nenhum escritor brasileiro vivo. A literatura brasileira atual é muito pobre.

É, eu tinha essa impressão, mas esperava que estivesse errado.

Infelizmente, não.

Sei que há muitos poetas bons, mas eles estão mortos...

O senhor está em ótima companhia com os clássicos.

Se você me perguntasse sobre os Estados Unidos, não há muita coisa por aqui também. Bem, há Philip Roth. Mas no geral tudo é decepcionante. Não vejo nos Estados Unidos hoje ninguém capaz de escrever contos tão bons quanto os de Hemingway. A verdade é que nós não tivemos um escritor realmente bom desde Faulkner. Temos um punhado de bons poetas, como Wallace Stevens, mas ele já morreu... E você sabe, ocasionalmente temos um bom poema ou um bom poeta ou um bom romance ou um bom conto, mas nada como as obras-primas de Faulkner. Nenhum poeta tão abrangente e poderoso como Whitman. A segunda metade do século XX foi marcada por uma grande decadência, se comparada com a literatura da primeira metade do século.

Seu livro “Onde Encontrar a Sabedoria?” é uma grande reflexão sobre a vida e a morte. O senhor teme a morte?

Não. Eu penso nela. Você não pode ter 75 anos e não pensar na morte.

Eu sei. Tenho apenas 28 anos e penso muito nela...

Eu acho que eu aprendi a não pensar muito sobre isso, porque Dr. Samuel Johnson, um dos meus heróis, apesar de ser cristão, temia realmente a morte. E ele dizia que não há nada que possamos fazer, então não devemos nos lamentar. E eu acho que ele está certo. Eu mantenho isso em mente o suficiente para não me permitir ficar chateado sobre qualquer dia específico em que eu não tenha me sentido muito bem. Eu fico cansado, minhas pernas já não são como antes. Mas eu estou vivo.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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