sábado, 31 de julho de 2021

Sobre Galileu e os negadores da ciência

 



Ensaio de Rogério Passos Severo e Ricardo Doninelli Mendes, publicado pelo Estado da Arte:


Na história de uma cultura, alguns episódios parecem cristalizar o espírito de uma época. Para a nossa cultura moderna e científica, as descobertas do astrônomo Galileu e sua posterior condenação pelo tribunal do Santo Ofício, em 1633, estão nessa categoria. Essa sequência de eventos e o ânimo com que Galileu os viveu exibem de modo límpido tanto o brilho e o potencial do pensamento científico quanto a infâmia intelectual e a mesquinharia moral que seguidamente os aguarda. Como vivemos hoje tempos de renovadas infâmias e mesquinharias, revisitar a biografia de Galileu é quase um imperativo, sobretudo para as novas gerações, que poderão então se reconhecer como filhos e filhas que somos todos da liberdade e da torpeza.

O livro recém publicado de Mario Livio, Galileu e os negadores da ciência (editora Record), é uma biografia atualizada do grande astrônomo. Apresenta de modo acessível suas principais contribuições à ciência moderna e alguns meandros do seu julgamento e condenação. O autor é um astrofísico respeitado e naturalmente o ponto forte do livro está na discussão das descobertas de Galileu à luz do que sabemos hoje. Mas, claro, há diversas outras boas biografias de Galileu já disponíveis. A peculiaridade desta reside não apenas na discussão atualizada dos feitos científicos de Galileu, mas também no contraponto recorrente ao longo do livro entre as reações negativas que as descobertas de Galileu suscitaram na igreja e as formas contemporâneas de negacionismo científico. Mencionam-se sobretudo o negacionismo climático contemporâneo, que rejeita o aquecimento global por causas antropogênicas, e o negacionismo biológico, que põe em dúvida a teoria darwinista da evolução. O livro foi originalmente publicado em inglês em 2020, portanto escrito provavelmente em 2019, antes da pandemia começar. Tivesse sido escrito mais recentemente, decerto incluiria também os casos surpreendentes de médicos cloroquineiros e outras fantasias destes nossos tempos pandêmicos.

Mario Livio claramente admira Galileu: “não apenas o fundador da astronomia e astrofísica modernas […] mas também um símbolo da luta pela liberdade intelectual” (p. 9). Galileu é apresentado como uma espécie de herói, que vive os seus estágios típicos. Primeiro resolve um conjunto de problemas (em astronomia) por meio de grandes feitos intelectuais, depois sofre a reação vil de personagens sombrios, é preso e tem seus livros proibidos, e ao final é redimido pela história da ciência. Galileu notabilizou-se como um defensor do modelo heliocêntrico em astronomia, apresentado inicialmente em 1543 pelo cônego polaco Nicolau Copérnico. Galileu nasceu em 1564, em Pisa, na Itália, época em que os modelos astronômicos predominantemente aceitos ainda eram geocêntricos, isto é, colocavam a Terra no centro do universo. O modelo copernicano tornou-se amplamente aceito apenas no final do século seguinte. Inicialmente a discussão e as disputas a esse respeito estavam restritas aos círculos mais fechados e técnicos da astronomia. Galileu contribuiu substancialmente para abrir esses debates por meio de argumentos contundentes e inovações técnicas. Em particular, notabilizou-se por ter sido o primeiro astrônomo importante a usar lunetas, posteriormente aperfeiçoadas por ele próprio e rebatizadas de “telescópios”. Lunetas já eram usadas há bastante tempo na Europa, mas sobretudo para fins recreativos. Galileu direcionou-os aos astros, onde descobriu as crateras da Lua, as fases de Vênus, quatro das luas de Júpiter (hoje conhecemos 79) e, por fim, as manchas solares. Todas essas descobertas contradiziam os modelos geocêntricos até então predominantes em astronomia. As crateras da Lua indicaram que sua superfície é imperfeita e nesse sentido parecida com a da Terra, diferente do que dizia a tradição, na qual a física dos astros seria bem diferente da física terrestre. As fases de Vênus — fenômeno em que Vênus aparece parcialmente iluminada pelo sol, como nas fases da nossa Lua — eram mais facilmente explicáveis pelo modelo copernicano e nesse sentido também contradiziam a tradição. As luas de Júpiter mostraram que nem tudo gira ao redor da Terra e as manchas solares indicavam (pelo seu movimento rotatório) que o Sol gira ao redor de si, o que era um indício indireto da tese copernicana, que previa o movimento rotatório da Terra.


Além dessas descobertas — todas muito impactantes na comunidade científica da época —, Galileu também formulou e colocou em prática alguns dos princípios básicos daquilo que hoje conhecemos como ciência moderna. Em particular, ele concebeu de modo explícito a tarefa do cientista como ancorada na experimentação e teste de hipóteses. A ciência antiga e medieval era, nesse sentido, bastante diferente do que passamos a chamar de ciência a partir da modernidade, uma vez que consistia basicamente num procedimento de sistematização de observações com base em princípios metafísicos. Com Galileu e outros “experimentadores” desse período moderno, as observações passaram a funcionar como um instrumento de teste de enunciados gerais e não apenas como instrumento de conhecimento de coisas particulares. Portanto, o estatuto e a função das observações no interior da ciência mudaram radicalmente. Além disso, Galileu foi um dos precursores da ideia de que as regularidades da natureza podem ser apreendidas por fórmulas matemáticas, algo que hoje é o beabá das ciências naturais. E por fim, Galileu formulou os rudimentos da ideia moderna de leis da natureza, descobertas empiricamente por meio da generalização de regularidades observadas. Um exemplo claro da aplicação dessas ideias todas foram os seus famosos experimentos com o plano inclinado, por meio dos quais calculou regras para a aceleração da queda de objetos — tópico mais tarde retomado por Isaac Newton.

Essas contribuições intelectuais e técnicas de Galileu foram inicialmente discutidas apenas em círculos mais restritos de cientistas e estudiosos. No século XVI, não houve reações religiosas significativas ao copernicanismo. No entanto, o contexto da Reforma protestante produziu uma caça às heresias no interior do catolicismo. E foi nesse contexto mais controvertido que funcionou o famoso tribunal da Inquisição que acabou por condenar Galileu 1633 à prisão domiciliar, obrigando-o a abjurar suas ideias para evitar punições mais severas. Seus livros, junto com o de Copérnico, foram incluídos no Índice de livros proibidos da igreja católica, lá permanecendo por mais de um século (mais de dois séculos, no caso de Copérnico). A heresia estaria na afirmação de que a Terra se move, contradizendo algumas passagens bíblicas interpretadas literalmente. Mas a esse respeito, mesmo o argumento teológico é fraco, uma vez que supõe que as teses teológicas relevantes incluem não apenas as que dizem respeito à salvação da alma mas abrangem igualmente a descrição do mundo físico, algo que autores clássicos da própria tradição cristã, como Santo Agostinho, já haviam criticado. A opção inicial de alguns religiosos para conciliar o copernicanismo com as leituras mais literais da Bíblia consistiu em interpretar os livros de Galileu e Copérnico como instrumentos matemáticos para o cálculo observações futuras e não como descrições de como as coisas realmente são. Nesse sentido, inauguram um tipo de leitura de textos científicos ainda comum até hoje na filosofia da ciência, onde os chamados autores “antirrealistas” — como, por exemplo, Bas Van Fraassen — sustentam que efetivamente não temos como saber se as partes mais abstratas e teóricas da ciência são descritivas da realidade ou apenas instrumentos úteis para a previsão de observações.

A sugestão de Livio é que o negacionismo científico não é novidade de nossos tempos, mas que acompanha a ciência moderna desde o seu nascimento. No entanto, fica ainda faltando no livro algum argumento mais substancial para mostrar que o negacionismo com que Galileu foi recebido e os negacionismos científicos contemporâneos são espécies de um mesmo gênero. Uma vez que os contextos sociais e culturais mudaram muito de lá para cá, está faltando a demonstração da continuidade dos dois fenômenos. Mas revisitar a obra e a trajetória de Galileu é sempre uma inspiração para os que prezam a inteligência e a coragem. A tradução para o português está muito bem feita, vale a pena essa leitura.


Rogério Passos Severo é professor do Dept. Filosofia da UFRGS.
Ricardo Doninelli Mendes é mestre e doutorando em Filosofia na UFRGS.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Nenhum comentário:

Postar um comentário