quarta-feira, 28 de julho de 2021

Assassinado pelos imbecis de ambos os sexos

 



Ensaio de Andrei Venturini Martins, publicado pelo Estado da Arte:


A escrita de Nelson Rodrigues, jornalista e um dos maiores dramaturgos do Brasil, sempre foi recheada de polêmicas, as quais enfrentou com muita coragem, não se deixando moldar pelo coro dos indignados. Em 1980, deu sua última entrevista a J. J. Ribeiro, repórter do jornal O Opiniático, veículo mineiro de cunho sensacionalista. Em uma conversa descontraída, o pensador pernambucano falava o que a censura do século XXI classificaria como impublicável.

Não é de hoje que uma parva multidão de idiotas se avoluma. “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”. É evidente que a turba de néscios grita palavras de ordem há muito tempo, mas com o irromper de uma geração que passa boa parte do tempo lambendo as telas dos seus smartphones, o eco de seus urros foi capaz de ultrapassar as fronteiras da sua parca vizinhança e alcançar um número gigantesco de consumidores, aumentando o nível de reclusão mental da multidão.

Essa reclusão mental[2] — termo criado pelo também pernambucano, Joaquim Nabuco, para se referir ao frenesi violento dos revolucionários franceses — foi muito bem ilustrada por Nelson Rodrigues: “Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”. Os idiotas não andam sozinhos, mas em bandos, e apresentam um rosto grasso de indignação ética, repudiando impetuosamente todos aqueles e tudo aquilo que não reafirma seu impulso destemido de transformar o mundo em um Narciso à sua imagem e semelhança. Com o dedo em riste, os idiotas dizem como o mundo deve ser, como devemos nos comunicar, impõem o que somos obrigados a tolerar e os valores que deverão pautar nossos comportamentos. São libertários, alimentados pela liberdade dos feitores: “Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura”. Envolto pela bolha imaginária da reclusão mental, o idiota não pensa, seja à direita ou à esquerda, e, com seu rosto esculpido pelo ódio, se torna incapaz de um pensamentozinho.

Acéfalo, o idiota é jovem, em sua grande maioria. Mas que o leitor não se engane, pois a juventude se estendeu, se desvencilhou do tempo, e hoje se faz presente em todas as idades. Os tristes mortais se esqueceram de crescer, e passaram a ser acompanhados pela fragilidade emocional, o isolamento superconectado, a descrença religiosa, a insegurança financeira e o fantasma da indefinição de gênero. Para esses, o polemista ofereceu o seguinte conselho: “Jovens: envelheçam rapidamente!”. É uma sugestão preciosa para quem ainda valoriza o amadurecimento: viver é carregar consigo os amargores da experiência, as lembranças das vitórias episódicas e um lamento triste do fracasso. “Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”. Permanecer com aquela firmeza ou tonicidade quase estoica não é uma opção diante de um universo que se desmancha assolado pela contingência, mas uma necessidade para todo aquele que não aceita se entregar à violência do mundo. Para conviver com este espetáculo cósmico macabro, organizado por um demiurgo mal-intencionado, uma dose de supérfluo é necessário, algo que falta aos espíritos infantis, que pensam que a vida só vale por aquilo usualmente percebido como indispensável e prioritário, seja uma causa, um amor ou uma carreira. “O homem só é feliz pelo supérfluo”.


Não se consagra uma vida inteira ao supérfluo, mas sem ele nem mesmo conseguimos saborear o que chamamos de essencial. Navegando, então, entre o supérfluo e o essencial, Nelson Rodrigues nos deixa alguns recados.

Às mulheres bonitas, recomenda: “Era preciso que alguém fosse de mulher em mulher anunciando: ser bonita não interessa, seja interessante”. A beleza deslumbrante da mulher encanta meus olhos, contudo, quando mensuro o peso dessa beleza sobre os ombros da mulher, lembro da via crucis e seu principal personagem, o nazareno. Quantas mulheres perderam sua vida no intuito de transformar plasticamente seus corpos em objetos de admiração de si mesmas e dos outros? Quantas lamentam que seu rosto não se espelha em uma foto cheia de filtros? Ser bela é fácil: basta um bisturi, um bom cirurgião ou, se tiver sorte, as graças da natureza. O problema é que a beleza passa: “A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”. A bela paisagem perfeita para turista é, para o caiçara, repetitiva e enfadonha. A harmonia das formas não resiste ao tempo e torna-se monótonacansa o olhar. Mas isso não significa que a beleza deve ser desprezada: “Considero que uma mulher deve estar sempre preparada, sempre bonita, sempre maquilada, seja para o marido, seja para os outros, seja para si mesma”.[3] Portanto, a mulher bonita deve zelar por sua beleza, pois essa é uma característica que lhe é própria, é sua natureza: assim como a lei da gravidade faz as coisas pesadas caírem, a mulher bonita chamará atenção. Contudo, esteja ciente de que a beleza se desmancha e, por isso, cuide de ser interessante.

Até agora, falei das mulheres bonitas que, como tudo que é belo, são raras. Há também as mulheres feias, as quais não são tão raras assim. Tão feias que nem a medicina ajuda. Eu sei que, nesse momento, o coro dos indignados costuma entrar em ação, mas eu não tenho culpa de a feiura ter sido tão bem distribuída pela Natureza. Além disso, existe espelho, e ele não mente, ao contrário dos humanos. “A maioria das mulheres pensa que é bonita. E vive, envelhece, morre nessa ilusão. Há o espelho, que nos retransmite a imagem, com absoluta fidelidade”.[4] O que fazer quando a verdade insuportável se desvela? Myrna as aconselha: “De uma maneira geral, é sempre interessante que a mulher se faça de difícil. (…) Até uma esposa deve, de vez em quando, resistir. E com muito mais razão uma mulher feia. A mulher feia precisa jogar, até a última hora, com uma premeditada ‘dificuldade’. Precisa se fazer, por bastante tempo, ‘inconquistável’”.[5] Essa escassez do contato mais profundo cria, milagrosamente, um interesse indelével do amante. Ser inconquistável: eis a mística da mulher feia. Porém, que ela não se esqueça da astúcia, daquela que está contida na natureza de toda mulher, e que a permite ser interessante.

Não raro, belas e feias sempre se encontram, já que, sem fazer nenhuma distinção de pessoa, a contingência sempre se manifesta por seu papel corrosivo, direcionando a humanidade ao nada. Se estamos fadados a perder as formas — a nos deformar —, nos restaria cultivar aquilo que é interessante. Todavia ser interessante é difícil, raro, e exige um esforço tremendo para forjar tal imagem, assim como a energia que se despende na produção de moedas falsas: “O ser humano é o único que se falsifica”. Macacos, gazelas e marrecos não se falsificam, diz o dramaturgo. Entretanto o que mais restaria ao pobre humano senão falsear a si mesmo para se tornar minimamente interessante? É uma pergunta difícil de ser respondida. Afirmo, porém, que quando se trata da beleza e da arte de ser interessante, a medicina mostra-se uma ciência muito mais simplória na produção da beleza, quando comparada à astúcia cotidiana das mulheres interessantes: a produção hospitalar de beleza depende de um número reduzido de técnicas médicas, ao passo que ser interessante é um astucioso trabalho de uma vida inteira, ou, talvez, uma dádiva da graça.

Penso que o conselho dado às mulheres na década de 1980 também poderia ser aplicado aos homens. Com suas barbinhas bem-feitas e perfumadinhas, sobrancelhas alinhadas, tatuagens engenhosamente impressas em braços torneados e desérticos de pelos para sublinhar o visual, sem se esquecer dos cabelos aprumados, fio a fio, Nelson Rodrigues, provavelmente, diria aos homens, com sua voz alta e rouquenha: ser bonito não interessa, seja interessante.

Tal conselho instigaria os homens, talvez, a buscarem aquele alto valor excelente e distinto, cuja grandeza se faz ainda mais gloriosa por ser tão raro entre os varões: ser interessante. Uma mulher que busque um homem interessante corre o risco de repetir a tragédia camusiana de Calígula: busca-se a lua, ou melhor, procura-se aquilo que não se pode encontrar.[6] É “mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha” (Mt. 19, 23) do que uma mulher encontrar um homem interessante. Se a humanidade dependesse de que as mulheres encontrassem homens interessantes, “assistiríamos um espetáculo tenebroso; ou seja: o súbito despovoamento do mundo”.[7] Bem-aventurados os homens desinteressantes, pois eles herdarão a terra. Não precisa ser profeta para fazer essa constatação quase matemática. O homem é feiíssimo, abrutalhado, pouco confiável, violento, estranho, portanto nem belo nem interessante, como algumas mulheres. A mulher foi capaz de realizar um ato heroico e assombroso: erotizar o homem desinteressante. Por isso, na minha opinião — pura opinião mesmo! —, o homem ser amado pela mulher é mais um daqueles mistérios insondáveis que pairam sobre a Terra.

A “vida como ela é” é crudelíssima para todos aqueles seres racionais compostos de cromossomos xx ou xy. O que fazer diante de um quadro tão difícil? “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”. Esse ensinamento de Nelson Rodrigues foi dado aos homens, contudo eu não tenho dúvida que ele vale para todos os mortais. Nesse caso, a “bunda” é a grande metáfora rodriguiana da vida: quando nela nos aprofundamos, corremos o risco de nos deparamos com um cheiro horrível. Não suportamos ficar submersos por muito tempo no mais profundo e sem fundo da vida, pois é preciso respirar. Por isso, “passar a mão na bunda” da vida é tornar a existência mais leve e reservar-se o direito de algumas superficialidades que nos desviem do mal-estar que nos habita.

Quando o miserável humano se põe a meditar sobre sua condição, ele se torna mais pensativo, melancólico, percebe que “tem uma face linda e outra hedionda”. Ao “passar a mão no rosto”, e corajosamente “reconhecer a própria hediondez”, o homem salva si mesmo, se redime da canalhice, da mentira e, como um santo que conhece as sombras que pairam sobre sua alma, passa a sentir vergonha: “Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam”. Nelson Rodrigues era menos pessimista do que eu.

Agora entendo o epitáfio do profeta: “Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”.


Notas:

[1] Alexandre Flores ALKIMIM. A última entrevista de Nelson Rodrigues. Entrevista de

1980 dada ao repórter J. J. Ribeiro, do periódico “O Opiniático”. Revista Bula, 2016. Acessível em: <https://www.revistabula.com/5753-a-ultima-entrevista-de-nelson-rodrigues-2/>. Demais citações neste artigo, sem referência específica, poderão ser encontradas na mesma entrevista.

[2] Cf. Joaquim NABUCO, Minha Formação. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 73.

[3] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 44.

[4] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 79.

[5] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 80-81.

[6] Albert Camus. Caligula. Paris: Editions Gallimard, 1958, ato I, cena 4.

[7] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 27.

Andrei Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.
 
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