A
escrita de Nelson Rodrigues, jornalista e um dos maiores dramaturgos do
Brasil, sempre foi recheada de polêmicas, as quais enfrentou com muita
coragem, não se deixando moldar pelo coro dos indignados. Em 1980, deu
sua última entrevista a J. J. Ribeiro, repórter do jornal O Opiniático,
veículo mineiro de cunho sensacionalista. Em uma conversa descontraída, o
pensador pernambucano falava o que a censura do século XXI
classificaria como impublicável.
Não
é de hoje que uma parva multidão de idiotas se avoluma. “O grande
acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do
idiota”. É evidente que a turba de néscios grita palavras de ordem há
muito tempo, mas com o irromper de uma geração que passa boa parte do
tempo lambendo as telas dos seus smartphones, o eco de seus urros foi
capaz de ultrapassar as fronteiras da sua parca vizinhança e alcançar um
número gigantesco de consumidores, aumentando o nível de reclusão
mental da multidão.
Essa reclusão mental[2]
— termo criado pelo também pernambucano, Joaquim Nabuco, para se
referir ao frenesi violento dos revolucionários franceses — foi muito
bem ilustrada por Nelson Rodrigues: “Outrora, os melhores pensavam pelos
idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação
realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o
extermina”. Os idiotas não andam sozinhos, mas em bandos, e apresentam
um rosto grasso de indignação ética, repudiando impetuosamente todos
aqueles e tudo aquilo que não reafirma seu impulso destemido de
transformar o mundo em um Narciso à sua imagem e semelhança. Com o dedo
em riste, os idiotas dizem como o mundo deve ser, como devemos nos
comunicar, impõem o que somos obrigados a tolerar e os valores que
deverão pautar nossos comportamentos. São libertários, alimentados pela
liberdade dos feitores: “Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem
os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a
liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada
qual tem no bolso a sua ditadura”. Envolto pela bolha imaginária da
reclusão mental, o idiota não pensa, seja à direita ou à esquerda, e,
com seu rosto esculpido pelo ódio, se torna incapaz de um
pensamentozinho.
Acéfalo,
o idiota é jovem, em sua grande maioria. Mas que o leitor não se
engane, pois a juventude se estendeu, se desvencilhou do tempo, e hoje
se faz presente em todas as idades. Os tristes mortais se esqueceram de
crescer, e passaram a ser acompanhados pela fragilidade emocional, o
isolamento superconectado, a descrença religiosa, a insegurança
financeira e o fantasma da indefinição de gênero. Para esses, o
polemista ofereceu o seguinte conselho: “Jovens: envelheçam
rapidamente!”. É uma sugestão preciosa para quem ainda valoriza o
amadurecimento: viver é carregar consigo os amargores da experiência, as
lembranças das vitórias episódicas e um lamento triste do fracasso.
“Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”.
Permanecer com aquela firmeza ou tonicidade quase estoica não é uma
opção diante de um universo que se desmancha assolado pela contingência,
mas uma necessidade para todo aquele que não aceita se entregar à
violência do mundo. Para conviver com este espetáculo cósmico macabro,
organizado por um demiurgo mal-intencionado, uma dose de supérfluo é
necessário, algo que falta aos espíritos infantis, que pensam que a vida
só vale por aquilo usualmente percebido como indispensável e
prioritário, seja uma causa, um amor ou uma carreira. “O homem só é
feliz pelo supérfluo”.
Não se consagra uma vida inteira ao supérfluo, mas sem ele nem mesmo conseguimos saborear o que chamamos de essencial. Navegando, então, entre o supérfluo e o essencial, Nelson Rodrigues nos deixa alguns recados.
Às
mulheres bonitas, recomenda: “Era preciso que alguém fosse de mulher em
mulher anunciando: ser bonita não interessa, seja interessante”. A
beleza deslumbrante da mulher encanta meus olhos, contudo, quando
mensuro o peso dessa beleza sobre os ombros da mulher, lembro da via
crucis e seu principal personagem, o nazareno. Quantas mulheres perderam
sua vida no intuito de transformar plasticamente seus corpos em objetos
de admiração de si mesmas e dos outros? Quantas lamentam que seu rosto
não se espelha em uma foto cheia de filtros? Ser bela é fácil: basta um
bisturi, um bom cirurgião ou, se tiver sorte, as graças da natureza. O
problema é que a beleza passa: “A beleza interessa nos primeiros quinze
dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”. A bela
paisagem perfeita para turista é, para o caiçara, repetitiva e
enfadonha. A harmonia das formas não resiste ao tempo e torna-se
monótonacansa o olhar. Mas isso não significa que a beleza deve ser
desprezada: “Considero que uma mulher deve estar sempre preparada,
sempre bonita, sempre maquilada, seja para o marido, seja para os
outros, seja para si mesma”.[3]
Portanto, a mulher bonita deve zelar por sua beleza, pois essa é uma
característica que lhe é própria, é sua natureza: assim como a lei da
gravidade faz as coisas pesadas caírem, a mulher bonita chamará atenção.
Contudo, esteja ciente de que a beleza se desmancha e, por isso, cuide
de ser interessante.
Até
agora, falei das mulheres bonitas que, como tudo que é belo, são raras.
Há também as mulheres feias, as quais não são tão raras assim. Tão
feias que nem a medicina ajuda. Eu sei que, nesse momento, o coro dos
indignados costuma entrar em ação, mas eu não tenho culpa de a feiura
ter sido tão bem distribuída pela Natureza. Além disso, existe espelho, e
ele não mente, ao contrário dos humanos. “A maioria das mulheres pensa
que é bonita. E vive, envelhece, morre nessa ilusão. Há o espelho, que
nos retransmite a imagem, com absoluta fidelidade”.[4]
O que fazer quando a verdade insuportável se desvela? Myrna as
aconselha: “De uma maneira geral, é sempre interessante que a mulher se
faça de difícil. (…) Até uma esposa deve, de vez em quando, resistir. E
com muito mais razão uma mulher feia. A mulher feia precisa jogar, até a
última hora, com uma premeditada ‘dificuldade’. Precisa se fazer, por
bastante tempo, ‘inconquistável’”.[5]
Essa escassez do contato mais profundo cria, milagrosamente, um
interesse indelével do amante. Ser inconquistável: eis a mística da
mulher feia. Porém, que ela não se esqueça da astúcia, daquela que está
contida na natureza de toda mulher, e que a permite ser interessante.
Não
raro, belas e feias sempre se encontram, já que, sem fazer nenhuma
distinção de pessoa, a contingência sempre se manifesta por seu papel
corrosivo, direcionando a humanidade ao nada. Se estamos fadados a
perder as formas — a nos deformar —, nos restaria cultivar aquilo que é
interessante. Todavia ser interessante é difícil, raro, e exige um
esforço tremendo para forjar tal imagem, assim como a energia que se
despende na produção de moedas falsas: “O ser humano é o único que se
falsifica”. Macacos, gazelas e marrecos não se falsificam, diz o
dramaturgo. Entretanto o que mais restaria ao pobre humano senão falsear
a si mesmo para se tornar minimamente interessante? É uma pergunta
difícil de ser respondida. Afirmo, porém, que quando se trata da beleza e
da arte de ser interessante, a medicina mostra-se uma ciência muito
mais simplória na produção da beleza, quando comparada à astúcia
cotidiana das mulheres interessantes: a produção hospitalar de beleza
depende de um número reduzido de técnicas médicas, ao passo que ser
interessante é um astucioso trabalho de uma vida inteira, ou, talvez,
uma dádiva da graça.
Penso
que o conselho dado às mulheres na década de 1980 também poderia ser
aplicado aos homens. Com suas barbinhas bem-feitas e perfumadinhas,
sobrancelhas alinhadas, tatuagens engenhosamente impressas em braços
torneados e desérticos de pelos para sublinhar o visual, sem se esquecer
dos cabelos aprumados, fio a fio, Nelson Rodrigues, provavelmente,
diria aos homens, com sua voz alta e rouquenha: ser bonito não
interessa, seja interessante.
Tal
conselho instigaria os homens, talvez, a buscarem aquele alto valor
excelente e distinto, cuja grandeza se faz ainda mais gloriosa por ser
tão raro entre os varões: ser interessante. Uma mulher que busque um
homem interessante corre o risco de repetir a tragédia camusiana de
Calígula: busca-se a lua, ou melhor, procura-se aquilo que não se pode
encontrar.[6]
É “mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha” (Mt. 19,
23) do que uma mulher encontrar um homem interessante. Se a humanidade
dependesse de que as mulheres encontrassem homens interessantes,
“assistiríamos um espetáculo tenebroso; ou seja: o súbito despovoamento
do mundo”.[7]
Bem-aventurados os homens desinteressantes, pois eles herdarão a terra.
Não precisa ser profeta para fazer essa constatação quase matemática. O
homem é feiíssimo, abrutalhado, pouco confiável, violento, estranho,
portanto nem belo nem interessante, como algumas mulheres. A mulher foi
capaz de realizar um ato heroico e assombroso: erotizar o homem
desinteressante. Por isso, na minha opinião — pura opinião mesmo! —, o
homem ser amado pela mulher é mais um daqueles mistérios insondáveis que
pairam sobre a Terra.
A
“vida como ela é” é crudelíssima para todos aqueles seres racionais
compostos de cromossomos xx ou xy. O que fazer diante de um quadro tão
difícil? “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda
dela”. Esse ensinamento de Nelson Rodrigues foi dado aos homens, contudo
eu não tenho dúvida que ele vale para todos os mortais. Nesse caso, a
“bunda” é a grande metáfora rodriguiana da vida: quando nela nos
aprofundamos, corremos o risco de nos deparamos com um cheiro horrível.
Não suportamos ficar submersos por muito tempo no mais profundo e sem
fundo da vida, pois é preciso respirar. Por isso, “passar a mão na
bunda” da vida é tornar a existência mais leve e reservar-se o direito
de algumas superficialidades que nos desviem do mal-estar que nos
habita.
Quando
o miserável humano se põe a meditar sobre sua condição, ele se torna
mais pensativo, melancólico, percebe que “tem uma face linda e outra
hedionda”. Ao “passar a mão no rosto”, e corajosamente “reconhecer a
própria hediondez”, o homem salva si mesmo, se redime da canalhice, da
mentira e, como um santo que conhece as sombras que pairam sobre sua
alma, passa a sentir vergonha: “Só acredito nas pessoas que ainda se
ruborizam”. Nelson Rodrigues era menos pessimista do que eu.
Agora entendo o epitáfio do profeta: “Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”.
Notas:
[1] Alexandre Flores ALKIMIM. A última entrevista de Nelson Rodrigues. Entrevista de
1980 dada ao repórter J. J. Ribeiro, do periódico “O Opiniático”. Revista Bula, 2016. Acessível em: <https://www.revistabula.com/5753-a-ultima-entrevista-de-nelson-rodrigues-2/>. Demais citações neste artigo, sem referência específica, poderão ser encontradas na mesma entrevista.
[2] Cf. Joaquim NABUCO, Minha Formação. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 73.
[3] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 44.
[4] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 79.
[5] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 80-81.
[6] Albert Camus. Caligula. Paris: Editions Gallimard, 1958, ato I, cena 4.
[7] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 27.
Andrei
Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no
Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e
pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da
Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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