Procuramos
saber qual é o plano das nossas autoridades para evitar que a baixa
eficácia da vacina mais aplicada no Brasil gere uma nova onda de
contágios. A resposta é preocupante. Reportagem de Duda Teixeira para a Crusoé:
A
Coronavac trouxe um ganho inestimável para o combate à Covid no Brasil.
Desenvolvida por aqui pelo Instituto Butantan, a vacina do laboratório
chinês Sinovac foi a primeira a ser disponibilizada no país, quando
outros imunizantes, pela inércia do governo federal, ainda estavam bem
longe do braço dos brasileiros. As doses evitaram que milhares de idosos
e pessoas com comorbidades fossem internadas e morressem intubadas nas
UTIs dos hospitais.
Com
a campanha de imunização em seu quinto mês e novos estudos científicos
sendo divulgados, porém, um dilema se apresenta às autoridades: a mesma
vacina que salvou milhares de vidas não tem se mostrado capaz de reduzir
a transmissão e parece ser pouco eficiente entre idosos com mais de 80
anos.
Demonizar
a Coronavac ou defendê-la a qualquer custo não trará nenhum benefício.
Mas se torna imperiosa a necessidade de desenhar políticas sanitárias
que levem em conta a baixa eficácia da vacina. Em vários países do
mundo, o tema já vem sendo discutido e medidas já foram ou estão sendo
implementadas neste momento – alguns governos que também adotaram a
Coronavac já decidiram aplicar uma terceira dose, por exemplo, como
forma de reforçar a proteção.
No
Brasil, com o debate sobre a pandemia extremamente politizado, nenhum
passo foi dado. Não há sequer estudos sendo feitos para descobrir qual é
a melhor saída para evitar que as pessoas já vacinadas, ao voltarem à
rotina acreditando estarem plenamente protegidas, acabem novamente
expostas ao vírus. A seguir, listamos algumas informações essenciais
para compreender o dilema.
O caso do Chile
O
Chile é um dos países que mais avançaram na vacinação. Cerca de 63% da
população já recebeu ao menos uma dose e 51%, a segunda. De todas as
doses aplicadas, 71% foram da Coronavac. A situação sanitária no país,
contudo, é alarmante. A taxa de novos casos está em 36 por 100 mil
habitantes, similar ao pico da pandemia, no final de março deste ano.
Das 16 regiões do território chileno, apenas três estão com uma ocupação
de UTIs menor que 90%.
As
primeiras explicações para o problema culpavam o afrouxamento precoce
das medidas de distanciamento social e a chegada de novas variantes. Mas
um terceiro fator começou a ganhar força nesta semana, depois que o
Chile foi incluído em um grupo de países díspares, ao lado da Mongólia,
das Ilhas Seychelles, do Bahrein e da Turquia. Todos eles basearam suas
campanhas de vacinação em grande parte nas vacinas chinesas Sinovac e
Sinopharm e observaram uma subida dos casos diários recentemente. Nas
Ilhas Seychelles, mais de 70% da população já tomou uma dose e 60%,
duas. De abril para maio, porém, o número de novos casos diários pulou
de 50 para 400, para atualmente ficar na faixa de 150.
Uma
das hipóteses para explicar esses novos casos é que essas vacinas,
embora sejam eficientes para reduzir o número de internações e de
mortes, não conseguiram reduzir a transmissão do vírus. Para que isso
ocorresse, dizem especialistas, essas nações precisariam ter pelo menos
75% das pessoas imunizadas.
Sem
impedir que o vírus siga se disseminando na população, o Chile está
acumulando vários outros problemas. “Uma maior circulação do vírus
continua produzindo muitos casos graves e óbitos, abarcando também
pessoas jovens e com comorbidades”, diz o médico Juan Carlos Said,
professor da Universidade do Chile e diretor da Fundação América
Transparente. “Além disso, como o vírus continua se multiplicando a uma
taxa elevada, a chance de que surja uma nova variante é maior.”

O problema brasileiro
O
Brasil está bem atrás do Chile em porcentagem da população vacinada.
Cerca de 32% dos brasileiros tomaram a primeira dose e 11%, a segunda.
“É muito provável que, até atingir 75% de cobertura, o Brasil não
consiga uma redução significativa de contágios, já que as medidas
sociais para se precaver contra a infecção não estão sendo seguidas com
muito rigor”, diz o imunologista Edécio Cunha-Neto, diretor do
Laboratório de Imunologia Clínica e Alergias da USP.
Um
ponto que deve ajudar aliviar a situação por aqui é que a porcentagem
da população brasileira que tomou a Coronavac é de 47%. Levadas em conta
as doses que devem chegar ao longo do ano, a participação da vacina no
cômputo geral deverá ser de apenas 19% — como há outras fórmulas sendo
administradas na população, portanto, o risco de se repetir aqui o
quadro chileno é um pouco menor, o que não elimina o fato de que, se
nada for feito, as pessoas que tomaram a Coronavac não estarão
plenamente protegidas.

A experiência de Serrana
O
Instituto Butantan afirma que, com 75% da população-alvo imunizada,
Serrana, a cidade do interior de São Paulo onde houve uma campanha
massiva de vacinação com a Coronavac para mapear a eficácia do
imunizante, registrou uma queda de 95% nas mortes por Covid, de 86% nas
internações e de 80% nos casos sintomáticos.
Mas
o boletim epidemiológico municipal indica que o vírus continua se
alastrando, mesmo com 95% dos moradores imunizados. O pico de casos
novos por mês foi de 706, em janeiro, antes de a vacinação em massa
começar. Em maio, o total de novos casos confirmados foi de 333, maior
do que o esperado. “Notamos uma pequena mudança no perfil dos casos.
Estamos com uma procura maior de crianças (por centros de saúde), com um
aumento dos casos positivos”, diz a secretária de Saúde do município,
Leila Aparecida Gusmão.
O total de mortos por Covid chegou a 19 em março, a pior marca. No mês passado, ocorreram sete óbitos.
A eficácia da Coronavac
Segundo
um estudo clínico conduzido pelo Instituto Butantan, a eficácia da
Coronavac é de 50,7% para casos leves, 83% para casos moderados e 100%
para casos graves. No entanto, um estudo feito por pesquisadores do
grupo Vebra Covid-19 (sigla para Vaccine Effectiveness in Brazil Against
Covid-19), que inclui cientistas de vários países, mostrou uma eficácia
média de 42% entre pessoas com mais de 70 anos. Dividindo os
voluntários segundo a idade, o quadro fica mais preocupante. Entre os
indivíduos de 75 a 79 anos, a eficácia foi de 49%. Para aqueles com mais
de 80 anos, ficou em apenas 28%.

Em
nota enviada a Crusoé, o Butantan contestou os dados do estudo. “Cabe
esclarecer que foram usados dados secundários e de qualidade duvidosa,
além de baixo número amostral, sobre o percentual de casos positivos de
infecção pelo coronavírus entre idosos com 80 anos ou mais vacinados com
as duas doses”, diz o texto. O trabalho feito pelo Vebra Covid-19,
porém, foi o maior já feito com pessoas com mais de 70 anos, ao incluir
15,9 mil voluntários desse grupo etário. É uma amostra considerável. No
estudo clínico feito pelo próprio Butantan, apenas 1.260 pessoas com
mais de 60 anos foram avaliadas.
O mecanismo de ação
Em
laboratório, amostras de sangue de pessoas vacinadas com duas doses de
Coronavac indicam que a vacina não foi suficiente para fazer o organismo
reagir à cepa P1, de Manaus. Isso ocorre porque o mecanismo de ação do
imunizante não passa pela produção de anticorpos neutralizantes, mas
envolve outros sistemas, que ainda não são bem conhecidos. “As dúvidas
sobre qual é o mecanismo também surgem quando se estudam outras vacinas
que usam vírus inativados, como a da pólio e da hepatite A. Mesmo assim,
essas vacinas provocam uma resposta satisfatória do organismo”, diz
Daniel Bargieri, professor e pesquisador do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisas em Vacinas.
É
possível que o mecanismo de ação da Coronavac tenha relação com a
dificuldade em conter o alastramento da pandemia no Chile e em outros
países. Vacinas que usam RNA mensageiro, como as da Pfizer e da Moderna,
estimulam o organismo a produzir um anticorpo específico contra a
proteína Spike, usada pelo coronavírus para entrar nas células. Nas
pessoas imunizadas com Coronavac ou com a vacina da Sinopharm, o
processo é mais longo e complexo.
A terceira dose
O
Instituto Butantan sustenta que nada indica, por ora, a necessidade de
uma terceira dose de Coronavac. Contudo, em outros países que apostaram
nas vacinas chinesas, com vírus inativado, algumas medidas já foram ou
estão em vias de ser adotadas para reforçar a eficácia da vacina. Nos
Emirados Árabes Unidos e no Bahrein, a terceira dose já é uma realidade.
Na Turquia, a dose de reforço deve começar a ser aplicada na população
geral em julho. O presidente Recep Erdogan, de 67 anos, já ganhou a sua.
No Chile, é possível que a a aplicação da terceira dose comece em
setembro.
No
início de junho, o diretor da Sinovac, Ying Weidong, afirmou que uma
terceira dose da vacina poderia multiplicar por dez a resposta de
anticorpos no período de uma semana, ou por 20 em duas semanas. O
resultado precisaria ser comprovado com mais pesquisas. “Não seria algo
surpreendente. Vacinas que usam vírus inativados geralmente são dadas
várias vezes. Na da pólio, por exemplo, são necessárias três doses, e
ainda são dadas mais duas doses de reforço”, diz Bargieri, da USP.

A combinação de vacinas
Administrar
outra vacina em quem já tomou duas doses de Coronavac também é uma
hipótese plausível, embora ainda não existam estudos apontando quais
imunizantes poderiam ser combinados com a fórmula chinesa. Para o médico
infectologista Julio Croda, que integra o grupo Vebra Covid-19, uma
combinação de vacinas pode ser vantajosa. “Estudos já mostraram que
vacinas diferentes estimulam mecanismos distintos, garantindo maior
proteção”, diz Croda.
Pesquisas
combinando vacinas têm sido feitas na Espanha e no Reino Unido. Como
começaram a surgir casos de trombose com a AstraZeneca, alguns países
europeus começaram a aplicar a vacina da Pfizer ou da Moderna em pessoas
que tinham tomado a primeira da AstraZeneca.
“Combinar
vacinas não é uma ideia nova, pois essa técnica já foi utilizada com
outras doenças, como o ebola”, diz Alberto Borobia, diretor da unidade
de pesquisas clínicas do Hospital Universitário La Paz, em Madri, que
realizou o primeiro estudo combinando as vacinas. Todos os voluntários
que receberam as duas doses, de AstraZeneca e Pfizer, exibiram
anticorpos neutralizantes duas semanas depois. Eles também tiveram um
aumento de quatro vezes na resposta de defesa celular.
Caberá
a cada país decidir se é o caso de combinar vacinas, realizando ou não
estudos prévios para medir os riscos envolvidos. “Essa é uma decisão de
política sanitária. Países europeus fizeram a mistura de vacinas e não
notaram problemas relevantes”, diz Antonio Carcas, professor de
farmacologia da Universidade Autônoma de Madri, que também participou do
estudo espanhol. “Mas acredito que o melhor para o Brasil seria fazer
um estudo semelhante ao nosso, para avaliar a resposta imunológica e a
segurança da combinação. Isso ajuda na tomada de decisões”, diz.
A solução
Recentemente,
circularam rumores de que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga,
estaria preocupado com a baixa eficácia da Coronavac em idosos e pensava
em encerrar os contratos de compra da vacina. Nesta semana, Queiroga
negou a informação. “Não há nenhum tipo de mudança de estratégia do
Ministério da Saúde em relação a esse imunizante”, disse. “Essa vacina
tem sido útil. Essa é a posição oficial do Ministério da Saúde até que
exista algum dado científico que faça com que tenhamos uma posição
diversa”, disse ele.
Nos
próximos meses, o debate sobre a Coronavac deve ganhar corpo. Entre a
população, jovens e adultos que ainda não foram vacinados devem se
proteger assim que essa possibilidade for oferecida. Todas as vacinas
disponíveis no Brasil já se provaram capazes de reduzir o risco de
internação e de morte. Mas não basta. Se há meios de reforçar a proteção
em faixas da população atendidas com uma vacina que tem sido útil para
evitar o pior, mas não freia o contágio, é essencial que essa discussão
seja feita de forma séria — e baseadas em estudos que, até o momento,
não estão sendo feitos. As autoridades precisam se convencer,
urgentemente, de que é preciso avaliar a questão a partir de dados
científicos, sem viés político, de modo a ajustar a política sanitária,
para o bem de todos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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