No mesmo dia em que fizerem um monumento às 500 mil vítimas da Covid, farão uma foto comemorativa. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Meu
amigo esquisito, conversando comigo sobre as redes sociais, disse uma
frase que fez eco. “O povo de hoje tiraria selfies em Auschwitz.” Quem
seria esse povo de hoje? Será que já não fizeram essa foto? Aposto que
sim, legendada nas redes com alguma frase idiota do tipo #todoscontraopreconceito.
Seria, por acaso, o mesmo povo que faria uma selfie com os 500 mil mortos pela Covid-19 para bombar a carreira e o engajamento nos seus perfis?
A mesma gente que o grande Nelson Rodrigues dizia adorar a pobreza do
Nordeste, porque a fome dos outros tornaria essa pessoa famosa? Sim. Em
cena, há a banalidade do mal na sua versão 6G —o marketing digital é o mal banal na sua forma disruptiva.
Talvez
se a Hannah Arendt (1906-1975) estivesse viva hoje, ela escreveria uma
continuação ao seu “Eichmann em Jerusalém”, lançado aqui pela Companhia
das Letras, para descrever a banalidade do mal na sua versão digital.
Esse
comportamento ascendeu à categoria de ferramenta de mercado, de
reconhecimento, de autoestima. Enfim, se fez ethos de uma época. Ele não
se refere mais apenas a estados totalitários, mas, também, ao mais
comum dos indivíduos no seu dia a dia público e privado. O mofo que
caracteriza o estado banal do mal, hoje, vem com aromas harmonizados
para cada personalidade.
Vejamos
uma hipótese para tamanho mau-caratismo. Se o totalitarismo depende do
não engajamento da razão na ação política, arriscaria dizer que o apagão
da razão pública se dá pelas mãos da humilhação da vida do espírito
—título da obra inacabada de Arendt. Não existe pensamento público
quando ele é capturado pela fúria da razão instrumental, que evoluiu
para se transformar na ciência do marketing contemporâneo.
A
ação política racional, que cultiva a vida do espírito como o ar que
respira, sabe que uma vida pública sem isso é uma vida desumanizada.
Essa seria a verdadeira função da política: humanizar.
Platão
já sabia que uma cidade corrupta desumaniza o homem. Arriscaria dizer
que a banalidade clássica do mal se capilarizou e se tornou, como está
na moda dizer, fluída, não binária. Dos burocratas do extermínio aos
idiotas das selfies, que não percebem que Auschwitz é um monumento à
vergonha humana, a capitulação da vida do espírito se arrasta pelo mundo
inteiro.
Por
que fazer uma fotografia de si mesmo em um monumento à vergonha humana?
Para fazer viva a memória? Não. Memória é um evento público, não da
ordem de um espaço no celular ou na nuvem. Isso é simples narcisismo,
outro nome para a miséria subjetiva.
E o que dizer dos que aproveitam os 500 mil mortos pelo coronavírus no Brasil
para promover a carreira, com lágrimas de crocodilo, e engajar
seguidores? As juras de mal-estar não resistem à primeira taça de vinho
ou a um piscar de olhos. No dia em que fizer um monumento aos milhares
de mortos pela Covid-19, este mesmo idiota das selfies fará uma foto
comemorativa.
O
século 21 será do marketing —logo, da mentira— e da psiquiatria —logo,
da doença mental—, que hoje é um importante objeto do capital.
Os
profissionais de mercado colocaram o bloco na rua e agora sabemos que o
homem é um animal idiota que só quer agradar e brilhar. Eles são sempre
mais argutos do que os intelectuais almofadinhas, que posam de arautos
da ética, brincam com o niilismo de cátedra e espalham que tudo é poder,
tudo é relativo, tudo é narrativa —e, por isso mesmo, acabaram perdendo
o bonde da história.
Afinal,
fazer uma selfie em Auschwitz, com cara de conteúdo, é chique. Quem
sabe você até coma alguém graças a essa “selfie profunda”. Ir à Polônia
não é para qualquer um. A maioria vai apenas até a horrorosa Miami.
Fingir
empatia com intenções estratégicas em relação a cada coração
desconhecido que parou de bater na pandemia é o clímax da desumanização.
A simples indiferença seria um ato de honestidade sublime. Ou até o silêncio.
A
sinceridade hoje encanta como um milagre. Como diz o filósofo Simon
Critchley, no seu “Tragedy, the Greeks and Us”, lançado pela Pantheon
Books, a filosofia é fruto do desencanto. Desencanto com a religião, com
os deuses, com a política, com os homens. Os gregos desencantados
criaram a filosofia. E o desencanto continua sendo o motor da filosofia
até hoje.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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