terça-feira, 29 de junho de 2021

Esoterismo e repressão: a receita do sinistro casal no poder na Nicarágua.

 



Cada vez mais corrompidos pelo poder, Daniel Ortega e Rosario Murillo chefiam uma espécie de seita maligna que se passa por regime político. Vilma Gryzinski:


Como uma cópia farsesca dos grandes tiranos da história, Daniel Ortega e Rosario Murillo estão atingindo o paroxismo de um poder que vai ficando cada vez mais sem limites.

Ele é o presidente e ela é a vice – ou vice-versa, considerando-se como Rosario, conhecida como La Bruja, influencia cada mínima, ou máxima, medida do ex-líder guerrilheiro.

Dos tempos românticos do sandinismo, o movimento revolucionário que se formou para derrubar um ditador de folhetim, Anastasio Somoza, nada restou. Muito menos da revolução ou das ideias de esquerda, que pelo menos partiam do pressuposto da superioridade moral e de um desejo de promover o bem comum.

Aliás, nem antigos companheiros sandinistas escaparam da onda de repressão, desencadeada ao longo desse mês, com a qual Ortega pretende chegar por cima à disputa presidencial de novembro, tendo garantido a reeleição vitalícia.

Com popularidade de 20%, ele não está deixando margens da o azar. Estão presos atualmente, na cadeia mesmo ou em prisão domiciliar, cinco candidatos a presidente, incluindo Cristiana Chamorro, e um irmão que tentou preencher a lacuna.

Os dois são filhos de Pedro Joaquín Chamorro, o dono de jornal assassinado pela ditadura Somoza, no tipo de estupidez que os tiranetes cometem contra seus próprios interesses, e Violeta, a viúva que rompeu com a frente Sandinista e conseguiu derrotar Ortega numa eleição presidencial – um risco que ele resolveu nunca mais correr.

Mais frequentadores da hospitalidade do regime: o presidente do maior banco do país e o líder da principal associação empresarial, uma ex-primeira-dama, um ex-vice-chanceler. E antigos companheiros como o general reformado Hugo Torres, o Comandante Um da época da revolução, e Dora María Tellez, a Comandante Dois (o Comandante Zero morreu no ano passado de Covid-19).

“Tenho 73 anos, nunca pensei que a essa altura da minha vida estaria lutando contra uma nova ditadura”, disse Torres num vídeo feito quando já sabia que seria preso.

Torres também sublinhou a grande ironia de ir em cana pela mãos do homem que ele livrou da cadeia numa operação espetacular, quando um comando sandinista de treze guerrilheiros invadiu a festa de natal na casa de um ministro de Somoza e o tomou vários reféns importantes, negociando a libertação de 60 presos políticos.

“Há 46 anos, arrisquei a minha vida para tirar Daniel Ortega e outros companheiros do cárcere”, disse Torres.

Atos de ousadia fizeram a fama dos sandinistas, liderados por jovens de classe média cheios de idealismo esquerdista. Outra característica do movimento era a participação de um grande número de escritores e poetas.

Entre eles, Rosario Murillo, filha de fazendeiros que havia estudado na Inglaterra e na Suíça e voltado à Nicarágua para entrar de cabeça no movimento. Com a aura da vitória surpreendente dos sandinistas, ela parecia uma versão revolucionária de Bianca Jagger – até então, a nicaraguense mais conhecida fora das fronteiras do país.

Hoje, Rosario parece uma imitação barata de Frida Kahlo, sempre com roupas coloridas, viseira e joias de prata em todas as extremidades corporais, cheias de turquesas e outras pedras que dão “proteção”. Em lugar do idealismo esquerdista, puxou Ortega para uma bizarra mistura de xamanismo, catolicismo popular e toques do pensamento de Sai Baba, o falecido guru indiano que também é cultuado por Nicolás Maduro.

A ascensão de Rosario como toda-poderosa eminência parda – ou rosa, que instituiu como cor nacional – é associada a um momento escabroso, quando chamou de mentirosa e louca a própria filha Zoilamérica, por acusar Ortega de abusar sexualmente dela desde que tinha onze anos.

A “eternamente leal”, designou-a, oficialmente Ortega, como numa paródia sinistra de Nicolae e Elena Ceausescu, o tétrico casal que acabou fuzilado na Romênia, o único país onde o comunismo acabou com violência.

Ortega hoje parece fisicamente frágil e com frequência desaparece dos compromissos públicos por longos períodos – tratamento em Cuba, especulam os boatos, talvez sonhando com um efeito Hugo Chávez, o homem que deu petróleo de graça à Nicarágua, quando a Venezuela ainda podia fazer isso, e enriqueceu o casal no poder e sua abundante prole, sete filhos ao todo, excluindo-se Zoilamérica e um que morreu no grande terremoto de 1972.

Foi num desses períodos de afastamento que eclodiram os protestos estudantis de 2018, conseguindo, inesperadamente, grande adesão de outras camadas da população. Supostamente, Rosario Murillo assumiu o comando e determinou: “Vamos com tudo”.

Em discursos frenéticos nos canais de televisão controlados por seus filhos, ela desfiava adjetivos contra os manifestantes. O El País alinhou os mais usados: vândalos, pragas, delinquentes, vampiros, terroristas, golpistas e satanistas.

A reação foi além das palavras. A repressão, por forças policiais e “turbas”, a tropa de choque à la Venezuela, resultou em mais de 330 mortes. Nada menos que 150 mil nicaraguenses deixaram o país, na maioria indo para a Costa Rica – como em outros países centro-americanos, a “exportação” de gente acontece em ondas regulares.

Daniel e Rosario, como são chamados, sentiram-se mais fortes ainda – e sem precisar ouvir um grito que se tornou comum na época dos protestos: “Ortega e Somoza son la misma cosa”.

A Nicarágua é um país pequeno e com extremos de pobreza. Só fica acima do Haiti nesse quesito. Sem a Guerra Fria que ainda dominava as decisões estratégicas dos Estados Unidos quando surgiu o sandinismo, tem importância próxima de zero – mas certamente não passa em branco a possibilidade de que seja uma das portas de acesso ao Atlântico que a China está tentando abrir.

Os planos de um canal entre o Atlântico e o Pacífico que seria aberto com capital chinês para rivalizar com o do Panamá não avançaram. Pouca coisa avança na Nicarágua, exceto os delírios do casal no comando de um regime que virou uma espécie de seita.

“Uma das características do recente autoritarismo latino-americano é o descaramento, a falta de pudor. Comportar-se de maneira obscena com absoluta tranquilidade”, disse o escritor venezuelano Alberto Barrera, em artigo no New York Times.

Ele conheceu Daniel Ortega quando tinha 18 anos e liderava uma brigada de solidariedade ao movimento sandinista. Hoje, aponta as similaridades entre o modelo chavista e o que acontece hoje na Nicarágua:

“Tem grandes rasgos de nepotismo, sequestrou e solapou a autonomia dos poderes, limita a imprensa independente, controla o aparato judicial, os órgãos eleitorais e o Exército. É um modelo que permite que Ortega possa se reeleger de maneira ilimitada enquanto seus adversários são desabilitados, suspensos ou encarcerados”.

Com a diferença que, na Nicarágua, “um mesmo ator escolheu desempenhar papéis diferentes. Quem empunhou as bandeiras contra a ditadura e se proclamou um orgulhoso ‘filho de Sandino’, é hoje, pelo contrário, o mais perfeito e autêntico filho de Somoza”.

O próprio ditador nicaraguense também era um “filho”, herdeiro da dinastia criada por seu pai, o Anastasio Somoza origi
 
nal. O filho foi morto no Paraguai em 1980, num atentado praticado por remanescentes da guerrilha argentina. Tinha fugido um ano antes da Nicaragua.

É o tipo de coisa que não acontece mais. Se não se perpetuarem no poder como pretendem, deixando um filho como sucessor, Daniel Ortega e Rosario Murillo, no máximo, acabariam num hipotético exílio junto com Nicolás Maduro, quando poderiam louvar o guru Sai Baba até o fim de seus dias.

Como gente sem consciência, ou que a enterrou definitivamente em algum lugar do passado, com certeza não pensariam no mal que causaram não só a seus países, como a toda a esquerda latino-americana, conspurcada irreversivelmente pelo show de horrores praticado quando instalados no poder.
 
BLOG   ORLANDO  TAMBOSI

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