Foi nesse ambiente um tanto conturbado que Deus resolveu conceder a FH e Lula um encontro. Roberto DaMatta para O Globo
Corre
nas altas esferas celestes uma anedota instrutiva sobre as preocupações
de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e a opinião de Deus
Todo-Poderoso.
Aflito
com a polaridade brasileira, preocupado com o número de almas que, por
causa da pandemia, estão lotando o céu e fazendo com que os anjos do
purgatório façam jornadas duplas de atendimento, as Altas Esferas
chegaram a pensar em ampliar o espaço de recepção do purgatório devido a
essa dramática emergência.
Soube
disso por meio de um amigo médium. O astral, disse-lhe uma entidade
espiritual adiantada e de muita luminosidade, está muito assoberbado,
precisamente pela quantidade de almas que vem recebendo. Nessa
emergência, comentou que os ex-mortos brasileiros são difíceis. Dão
trabalho, pois a maioria chega ao purgatório demandando tratamento
privilegiado. Já tivemos que intervir em discussões de caráter político —
absolutamente proibidas no outro mundo — quando controvertiam que
morreram por sabotagem de vacinas... Os espíritos brasileiros (que são
brasileiros de espírito), prosseguiu o médium, demoram a aprender que,
no outro mundo, não há disputas de poder, pois o poder do Absoluto Poder
é total. E não é fascista, porque é obra da eternidade, que se fez num
quando não havia tempo ou espaço.
Um
dos maiores problemas das almas brasileiras é a igualdade cósmica. Elas
querem manter suas hierarquias materiais nacionais, e isso torna
difícil lidar com políticos, juízes, militares, empresários e policiais,
bem como com os criminosos por eles mortos em algum confronto.
O
médium relatou que, em muitas preleções de adaptação, anjos superiores e
poderosos dissolveram manifestações de queixosos que, mesmo no outro
mundo, exigiam atendimento usando o “você sabe com quem está falando?”,
que não é válido no astral. Aqui, disse a alma por meio do médium, não
se pode negar a regra da fila, segundo a qual quem primeiro chega,
primeiro é atendido. Numa certa ocasião, tivemos que chamar o Arcanjo
Gabriel e seu irmão, Rafael, ambos com estatura suficiente e prontos a
usar suas espadas de lâminas de fogo para obrigar as relutantes almas
brasileiras a obedecer à fila final que os levaria ao infinito glorioso
do nada.
As
almas nativas do Brasil querem manter suas prerrogativas
sociopolíticas, e uma delas perguntou a um anjo se aqui havia um STF,
ficando muito decepcionada ao descobrir que, no plano imaterial, a alma
já se encontra no Supremo e já passou pelo umbral, presidido por São
Pedro, em cujo gigantesco cinema astral ela vê o filme de sua vida e
testemunha todos os seus pecados, devidamente conferidos pelo anjo
cobrador em seu computador da velha maçã.
Um
dia essas almas recusaram o maná. Queriam pizza ou feijoada. Disseram
que o maná celestial não tinha gosto. Houve um novo tumulto, debelado
pelos anjos exterminadores comandados por Luis Buñuel.
Foi
nesse ambiente um tanto conturbado que Deus resolveu conceder a FH e
Lula um encontro. Coisa raríssima, mas concedida porque o almoço que
fraternalmente os reuniu tornava-os dignos de uma graça especial.
—
Vou conceder a cada um de vocês, ex-presidentes desse Brasil machucado
com a pandemia, que o demo vos enviou sem minha expressa permissão, uma
grande graça. Perguntem o que mais os preocupa, e Eu responderei.
(Ao ouvir a pergunta, Lula cochichou a FH: “Deus é populista...”.)
— Quem vai perguntar primeiro? —retumbou o Altíssimo, criando uns dois ou três buracos negros.
Fernando Henrique sorriu e, com sua voz melodiosa, falou:
—
Deus, Você, que é um ente dos mais capazes e cultos que conheço, um ser
cosmopolita e civilizado, quando é que vamos liquidar a má-fé, a
hipocrisia e a corrupção no Brasil?
Deus respondeu:
— Meu filho, um dia isso vai acabar. Houve avanços, nas não foi na sua administração.
Voltando-se para Lula, Deus indagou:
—E o que você, Luiz Inácio, pensa disso?
Lula foi veemente:
—
Bem, Deus Todo-Poderoso, nos meus governos não houve corrupção, muito
menos má-fé e hipocrisia. A herança maldita era enorme. Toda essa
narrativa foi inventada por gente que queria condenar a mim, o PT e a
política.
Deus
ouviu, recordou o conto de Machado de Assis “A igreja do diabo”, que
motivou revolucionários debates no céu e no inferno, e, olhando para os
dois, respondeu:
—
Fiquem tranquilos. Continuem praticando a sagrada comensalidade que une
aqui no céu e elege nesse vosso mundo sofrido. Mas prestem atenção: a
corrupção, a má-fé e a hipocrisia um dia vão acabar no vosso país, que
será justo e democrático. Mas não será na minha administração.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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