Algo de que pouco se fala atualmente é a bancarização promovida pelo Bolsa Família. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
No
penúltimo texto, o leitor deixou um comentário que contém duas opiniões
encontradiças: o menor custo de vida no interior do Nordeste
refletiria o maior custo de vida numa capital do Sul, porque esta banca o
Bolsa Família daquele; e pagar condomínio implica geração de emprego,
refletindo assim uma atividade econômica saudável.
Começo
com esta última objeção, que é a mais fácil de resolver: o ponto em que
insisto é justamente na separação entre uma perspectiva coletivista e
uma perspectiva individual. O que é bom para índices econômicos pode ser
uma catástrofe no plano pessoal. No frigir dos ovos, a obrigação de
pagar condomínio é uma insegurança para a propriedade privada. Tem muito
condomínio que custa mais do que eu gasto com alimentação – eu sou
sozinha, e o que não falta nas capitais do Brasil é gente sozinha
pagando condomínio de quarto e sala. Se alguém como eu ficar
desempregada por muito tempo, o condomínio será uma preocupação maior do
que a alimentação. Deixando de pagá-lo, corre-se o risco de ter o
apartamento tomado pelo condomínio. É quase como viver numa comuna, dado
que não há controle individual sobre o preço do condomínio, e há todos
os problemas típicos de um governo, tais como assembleias intermináveis,
roubo e superfaturamento de obras. O emprego do porteiro (que aliás não
paga condomínio porque mora em favela) não é um motivo para eu me
amarrar a um fardo tão grande.
As
redações do ENEM não ficam mandando os alunos resolverem os problemas
da humanidade, como se fossem burocratas? O cidadão comum padece de um
mal similar: olha para índices da sociedade como se fossem burocratas, e
são capazes de celebrar esses sem atinar que comemoram as próprias
despesas. A capacidade de julgar a própria vida segundo critérios
individuais parece se esvair pelo ralo sem que ninguém note.
Bolsa Família é introdução de capitalismo
Marcos
Lisboa fez um texto bastante divertido contando o cisma que o Bolsa
Família causou dentro do PT. O partido se elegera prometendo o Fome
Zero, que arrecadaria alimentos para distribuí-los às famílias
cadastradas. Após o fracasso do programa, veio o Bolsa Família, que
arrecada dinheiro para distribuí-los às famílias cadastradas para elas
fazerem o que bem entenderem. Os dinossauros da economia da UFRJ e
UNICAMP ficaram doidos; Maria da Conceição Tavares xingou Marcos Lisboa
de “papalvo” no jornal. Tudo porque ele era – corretamente –
interpretado como um liberal. De fato, a base teórica de Marcos Lisboa
era o “imposto negativo” de Milton Friedman, um autodeclarado
neoliberal.
Algo
de que pouco se fala atualmente é a bancarização promovida pelo Bolsa
Família. No começo do governo Lula, o documento mais importante de um
cidadão era a cédula de identidade. Uma senhora que hoje tenha uns 80
anos e tenha vivido sempre como dona de casa não tinha CPF ou usava o do
marido. No sertão, roceiro tampouco portava outro documento que não o
CPF. O Bolsa Família implicou a criação de CPF para cada brasileiro e
fez com que os beneficiários tivessem uma conta no banco pela primeira
vez.
Como
economista liberal de metrópole, Marcos Lisboa parece usar o termo
“pobreza” só com o significado de “falta de dinheiro”. É um conceito que
não funciona para sociedades arcaicas. Nelas, é possível ter fartura e
conforto sem ter dinheiro. Por outro lado, alguns algarismos numa etérea
conta bancária pouco podem contra uma seca avassaladora, que deixe uma
grande extensão rural sem comida.
O
sertão já tinha uma atividade econômica dinâmica: a comida não caía do
céu, as casas não brotavam do chão, o pequeno comércio já existia.
Existia uma economia com pouca finança envolvida; um tipo arcaico de
economia. Uma dúvida que tenho, já procurei sobre, e não encontrei, é a
de se o Bolsa Família não causou inflação. Quase tudo o que se escreve
sobre Bolsa Família é com essa visão pecuniária da economia, onde quem
tem fartura sem dinheiro é pobre, mas quem vive apertado com dinheiro é
classe média.
Seja
como for, os sertanejos logo encontraram duas coisas para pôr o
dinheiro: moto e eletricidade. O Luz Para Todos levou a eletricidade ao
interior do Nordeste e é importante para as atividades rurais: para
manter granja, irrigar plantações etc. E as motos substituíram os
jegues, cuja carne hoje é destinada à medicina tradicional chinesa. (Os
criadores locais davam conta do trabalho até aparecerem ONGs esdrúxulas
tais como a Save The Donkeys entrando com ações pata fechar os
criadouros e forçar os criadores a venderem os jegues para criadores
chineses, contra os quais as ONGs não se manifestam.)
Vá
lá que minha experiência é pouca, mas a única coisa ruim de Bolsa
Família que eu vi na zona rural foi a seguinte: apontam-me uma favela
construída em área outrora produtiva, tomada por Pastoral da Terra. É
coisa estranha, dado que favelas ficam sempre em núcleos urbanos, aonde
os pobres vão se estabelecer para encontrar trabalho. Pergunto então de
que vive aquele povo, e a resposta é: Bolsa Família e seguro defeso.
Segundo me foi explicado (mas eu não percorri sites governamentais pra
checar), basta conseguir um pequeno número de pessoas dispostas a
assinar um papel dizendo que você é um pescador para ficar recebendo
defeso.
Nesse
ponto, o Bolsa Família faz mais mal ao Nordeste rural do que ao Sul
urbano. Mas o fator de maior peso nesse caso é o da influência política
da Igreja. (Mais precisamente, da CNBB, que, convenhamos, não é flor que
se cheire.)
Outra fonte de dinheiro, esta problemática
Falando
em Igreja, a concentração de dinheiro nas mãos das autoridades
políticas deve ter sido uma coisa de louco entre 1988 e 2003. Em 1988, a
Constituição resolveu que todos os políticos têm salário. Eu tenho
certeza de que a maioria dos municípios rurais nordestinos não tem
condições de bancar salário de vereadores, seus assessores e prefeito. E
tenho certeza de que isso é um brutal incentivo à corrupção também.
Ainda
assim, o Nordeste não tem nenhum dos estados problemáticos, que vivem
indo à União pedir que cubra seus gastos. Estes são: Rio Grande do Sul,
Rio de Janeiro e Minas Gerais. Este último tem uma infinidade de
municípios nanicos incapazes de custear uma Câmara. Enquanto isso,
distritos do Cerrado que vão enriquecendo e crescendo não conseguem
virar municípios, mesmo que estejam cheios de dinheiro de soja, porque
isso implicaria deixar o município preexistente incapaz de se custear.
Em
minha opinião, uma campanha a ser levada por todo cidadão preocupado
com o destino dos impostos é o fim de salário compulsório para
vereadores.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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