quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

A descriminalização da gastança

 



Fernão Lara Mesquita, sobre a PEC de Emergência:


Com o rombo do setor publico previsto em R$ 250 bilhões, a “PEC de Emergência”, lançada para encontrar fontes de financiamento ou corte de despesas que zerassem o custo previsto do auxilio de sobrevivência por mais quatro meses (para começar) aos milhões de brasileiros desempregados ou proibidos pelos próprios governos de trabalhar na pandemia acabou reduzida a uma emenda de descriminalização do crime fiscal. Isto é, ela não anula os efeitos devastadores da irresponsabilidade fiscal que, em rara janela de lucidez, o legislador definiu como criminosa em tempos idos. É apenas uma licença para os agentes públicos gastarem consigo mesmos de forma criminosa impunemente.

O bode colocado na sala no último relatório do senador Marcio Bittar é o barulho da “quebra da vinculação” das verbas para educação e saude no orçamento nacional. Na verdade o que se propõe não é nem a liberdade para reduzir o total obrigatoriamente gasto com essas duas rubricas, é apenas dar liberdade ao governo para alterar a distribuição do total gasto entre elas, dada a experiência concreta do último ano em que a saúde teve o peso que teve e as escolas e universidades públicas e privadas permaneceram fechadas.

Eu ia começar este artigo dizendo que o Brasil fracassa porque todos os diagnósticos sobre ele ignoram a referência básica do resultado. O raciocínio ia na linha de conferir um dado simples. A educação e a saude publicas melhoraram no Brasil desde que essas vinculações foram estabelecidas? Houve melhoras nesses serviços a cada vez que a porcentagem do orçamento dedicado a eles foi aumentada?

A resposta é: nenhuma, muito ao contrário. Tudo no Brasil anda para trás desde que a Constituição de 88, que introduziu esse instrumento, foi inaugurada. E a razão disso é obvia e ululante. Junto com essas vinculações a constituição deu a cada categoria do funcionalismo público, ou o direito expresso, ou os meios práticos de estabelecer a sua própria remuneração e o seu próprio plano de carreira. O resultado é que todos eles, para além de serem indemissíveis, passaram a se aposentar cada vez mais cedo e com mais proventos, a ter seus salários aumentados por mero decurso de prazo e não contra a apresentação de resultados, e a inventar todo tipo de trapaça semântica ofensiva à inteligência para violar as leis ensaiadas para tentar deter esse assalto que pôs o país nessa condição maluca em que os 5% da população embarcados no serviço público comem mais de 50% do PIB e os 95% restantes estão relegados ao favelão nacional.

Uma das mais notórias dessas trapaças é essa das “vinculações orçamentárias”. Não havendo nada que obrigue os governos a limitar contratações nem os contratados a mostrar desempenho esses aumentos de verbas “para o setor” convertem-se, na prática, em aumento dos proventos dos servidores do setor (além da corrupção), e em rigorosamente mais nada que interesse aos servidos. Mas dá à canalha que arma essa arapuca dentro dos legislativos e à “sua imprensa” cativa um “argumento” fácil: “Como assim, tirar dinheiro da saude e da educação”!

Esse argumento é tão agressivamente contraditório com a iniquidade dos números da situação povo versus “representantes” e “servidores” do povo no orçamento nacional que alguns órgãos dessa imprensa cativa já não ousam repeti-lo inteiro. Admitem veladamente – e apenas veladamente – que tudo isso é uma empulhação criminosa, mas que “ainda não é hora de enfrentá-la”, mesmo com o país explodindo como está explodindo…

Daí ter eu recuado da premissa inicial. Os governos do Brasil, constituídos total e exclusivamente pela privilegiatura, agem sim, considerando o resultado das suas decisões porque sendo o sistema totalmente autorreferente e blindado contra os eleitores, o resultado que ele SEMPRE está buscando é o aumento dos privilégios da privilegiatura que, com os arranjos que fez no front eleitoral e de financiamento de eleições, nunca sai do poder com essa tapeação da alternância entre “esquerda” e “direita” que não passa da alternância entre duas formas sutilmente diferentes de mentir para que a nobreza continue sendo sustentada pelos plebeus.

A trajetória dessa PEC assume essa verdade.

Nascida para reafirmar a “regra de ouro”, o único instrumento de defesa do favelão nacional contra a fome de lagosta dos palácios, que torna ilegal e passível de impeachment o governo que aumentar mais que a inflação do ano anterior o endividamento publico para manter gastos correntes, acaba por descriminalizar esse crime. Sempre com o congresso em peso e mais os Bolsonaro contra o isolado Paulo Quixote Guedes de oponente solitário, tiraram dela, uma a uma, todas as medidas de cortes de gastos correntes (leia-se proventos do funcionalismo ativo e inativo porque não sobra um tostão pra mais nada). Ela foi amputada, sucessivamente, de todos os dispositivos contra despesas fora do teto: redução de salário e jornada de servidores, desobrigação de reajuste de salários e aposentadorias em meio a desastres nacionais, contenção de emendas parlamentares … tudo, enfim, que faça o menor dos barnabés abrir mão do mais ínfimo dos seus “penduricalhos” para que um zé a menos acabe morando na rua com sua família.

Ficou, pro forma, o congelamento de novos aumentos, contratações e progressão nas carreiras publicas por mais dois anos, medidas já devidamente arrombadas no primeiro ano de “vigência” com brechas amplamente exploradas nas três instâncias de governo.

Se a preocupação fosse com a qualidade da educação e da saúde publicas estávamos fazendo o que fazem as democracias: servidores diretamente eleitos para poderem ser diretamente cobrados e demitidos (recall) pelos servidos que não servirem a contento; escolas publicas fiscalizadas por conselhos de pais de alunos eleitos por cada bairro para aprovar ou não currículos e orçamentos de seus respectivos diretores; ninguém nomeado por político nem eternamente estável no serviço público. Estávamos abolindo, enfim, os instrumentos concretos da escravização do favelão nacional pela privilegiatura que a imprensa dela se proíbe até de nomear, o que deixa os que nos assaltam com a lei livres, leves e soltos para continuarem a estrangular o Brasil.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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