No início da Idade Média, foram os bárbaros que quiseram civilizar-se. Os mais recentes, nazismo e comunismo, a liberdade venceu-os. O drama hoje é a rendição do Ocidente à nova barbárie. Guilherme Valente para o Observador:
Em memória de João Lobo Antunes
1 Os
novos bárbaros não precisam de espada nem de tanques para conquistarem e
saquearem as nossas cidades, de força física para nos escravizar.
Estamos a destruir com eles as nossas realizações, a oferecer-lhes a
nossa memória, História, a nossa civilização, até in extremis o que nos
faz humanos. Vencidos por dentro, a nossa esperança é que se devorem a
eles próprios antes de devorarem tudo.
2 Escreverei
sobre o futuro refugiado no passado, num mosteiro como já não existem,
escondidos em lugares inacessíveis de montanhas recônditas da Europa,
guardiões nessa outra idade de trevas ds centelha de civilização.
Mosteiros como hoje deviam ser as Universidades, elas próprias ocupadas,
centros de irradiação da nova barbárie, pior do que as anteriores. No
início da Idade Média, foram bárbaros que incorporaram o que traziam e
quiseram civilizar-se. Os mais recentes, nazismo e comunismo, a
liberdade venceu-os. O drama hoje é a rendição do Ocidente à nova
barbárie.
3 Também
nos anos terríveis do século XVI os demónios devastadores estiveram à
solta. Trinta anos antes Durer profetizara num conjunto de gravuras em
madeira ilustrando o Apocalipse o horror das guerras ditas religiosas
que devastariam durante 120 anos a Europa Ocidental, cada uma das partes
dizendo-se o instrumento da cólera divina. No mesmo século em que na
China Kang Xi proclamava o Edito da Tolerância para as grandes
religiões…
Que
podia fazer nessa Europa devastada de meados do século XVI um homem
inteligente aberto a ideias novas? Surge então um tipo de personagem
novo na civilização europeia, “familiar nas grandes épocas na China”: o
recluso intelectual voluntário. Sem ilusões sobre as consequências que
resultariam da Reforma, morto o pai amado e o amigo mais estimado,
Boécio, Montaigne, o humanista maior de meados do século, retira-se para
a sua torre, não uma “torre de marfim”, mas real. A única preocupação
foi procurar a verdade e escrevê-la. Mas a sua concepção de verdade era
diferente da que os homens respeitáveis tinham até aí procurado
sobretudo no Novo Testamento de Erasmo.
4 Para
Montaigne a verdade não era cegueira, ideologia como é hoje para tanta
gente. Para ele a verdade implicava um exame recorrente de cada aspecto
de um problema, mesmo que fosse contra o que então estava estabelecido.
Assentava sobre o juízo da única pessoa que podia interrogar sem receio
nem vergonha: ele próprio. Até aí o exame de consciência revestira o
aspecto penoso de uma mortificação. Com ele passaria a ser libertação e
prazer.
E nenhum saber tinha sabor para ele “se não o pudermos comunicar”. Por isso, para isso, inventou o “ensaio”, que se tornaria o meio de comunicação intelectual durante três séculos. A pesquisa interior de Montaigne romperia com o espírito heroico do Renascimento. “Podemos estar sentados no trono mais poderoso do mundo, mas não deixaremos por isso de estar sempre sentados sobre o nosso traseiro”.
Curiosamente,
os homens no cume do poder político não o hostilizaram ou perseguiram
pelo que escrevia, mas pelo contrário queriam-no perto deles. Henrique
IV, amigo dele, tê-lo-ia obrigado, se tivesse vivido mais tempo, a ser
chanceler de França!
Mas “o homem mais civilizado da Europa desse final do século XVI” preferia o isolamento, a que a Europa em chamas o obrigara.
5 Havia
no entanto um lugar onde os homens podiam viver sem temer a guerra
civil e represálias, “excepto se fossem jesuítas”: a Inglaterra. Até que
ponto então se pode dizer que a Inglaterra isabelina era civilizada? É
um facto que era turbulenta e sem escrúpulos, mas se considerarmos que o
empenho intelectual, a liberdade de espírito e um pendor para a beleza e
a vontade de imortalidade pelas grandes obras constituem factores da
civilização – exactamente o que hoje está ameaçado ou já se perdeu –
então aquela época foi uma manifestação de civilização.
6 Foi
nesse contexto que surgiu Shakespeare! Cujas grandes obras reflectem a
honestidade intelectual de Montaigne! Sabe-se que a tradução inglesa dos
Ensaios o impressionara profundamente, mas o seu cepticismo é mais
radical, mais perturbador. “Foi provavelmente o maior pessimista, maior
do que Baudelaire, nenhum sentiu tão fortemente a inutilidade da vida
humana.” Abundam nas suas peças, belíssimos, os exemplos.
7
Um cepticismo assim era impensável antes do cisma da cristandade, da
ruptura trágica que se seguiu à Reforma. E todavia a vivência e reflexão
sobre esse horror dariam ao espírito humano uma grandeza e um ímpeto
novos…
E
bastaram cinquenta anos para que Roma, a Roma da Igreja, recuperasse
territórios perdidos e voltasse a ser a grande força espiritual que
fora. Quem possuir um minimo de sensibilidade histórica e desprendimento
fiolosófico não poderá ignorar os grandes ideais, a fé apaixonada, a
manifestação exuberante de génio humano que triunfam a cada passo na
Roma barroca. É tudo, menos bárbara e provinciana. Acrescente-se que a
renovação católica foi um movimento popular, que através dos ritos,
imagens e símbolos deu às gentes simples os meios de satisfazer as
aspirações mais profundas e de encontrar paz de espírito. Não se pode
definir a palavra “civilização” sem conhecimento da Roma dos Papas.
Mas seria de novo uma força civilizadora?
8 Tenhamos esperança no futuro. Guardar a centelha. Resistir, como Churchill.
*
Selecciono sem aspas, texto do clássico admirável de Kenneth Clark,
Civilização, que a Gradiva publicará em Portugal em 2021, uma leitura
hoje ainda mais inspiradora. A montagem, a intenção e o sentido são
meus, claro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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