Racismo à brasileira: ideias soviéticas importadas para se firmar como vertente da luta de classes. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
O
militante inventou que racismo é relação de poder, de maneira que só
quem tem poder pode ser racista. Isso é uma evidente falsidade, já que,
segundo esse critério, Adolf Hitler não era racista antes de 1933, isto
é, antes de virar chanceler. O presidiário que escrevia Mein Kampf não
poderia ser um racista, senão uma “pessoa em privação de liberdade”, uma
“vítima da sociedade”, que escrevia um livro contra a raça dos
banqueiros. Um livro. Livro é coisa de intelectual, gente fina e
elegante. Ler livro não dá redução da pena?
Felizmente,
o senso comum do brasileiro não se deixa iludir. Racismo, entre nós, é
entendido como o ato de julgar das qualidades intelectuais ou morais de
alguém em função de características físicas ou étnicas. Trocando em
miúdos, é julgar a alma de alguém pelas coisas irrelevantes do corpo.
Ninguém escolhe ser judeu, nem negro, nem branco, nem mulato; é tudo
acidente de nascença. É abominável considerar alguém melhor ou pior por
causa de um acidente de nascença. É isso que entendemos usualmente como
racismo.
Por
isso, é evidente que o racismo negro é possível. Basta que alguém se
julgue melhor do que os outros por ser negro, ou que trate alguém como
escória pelo mero fato de não ser negro. Com o progressismo, muita gente
pensa – mas pouca gente tem coragem de falar – que essa forma de
racismo cresce e cresce.
Mas de onde surgiu ela?
Negros admiradores de Hitler
Ao
contrário do que pensa o senso comum brasileiro, o racismo foi uma
corrente ideológica reivindicada por seus adeptos. As pessoas diziam
“sou racista”. A palavra “racista” não surgiu como xingamento. Criou-se
em alguns países o “Dia da Raça”, comemorado até hoje na Argentina
(embora rebatizado por Cristina Kirchner como “Dia do Respeito à
Diversidade Cultural”). O verdadeiro racista não crê que tenhamos apenas
corpos, à maneira cristã. Crê que os corpos têm algo a ver com nossa
alma, como já expliquei aqui.
O
racismo floresceu no século XX, ao mesmo tempo que o fascismo e o
comunismo. O fascismo não necessariamente era racista. Em países de
cultura ibérica, tendia a associar-se a um catolicismo militante e a
usá-lo como traço de união, em vez da raça. Entre nós houve o
integralismo. O movimento brasileiro, seguindo sua cultura ibérica, foi
majoritariamente de natureza católica. Plínio Salgado era o nome mais
importante de um triunvirato composto também por Miguel Reale e Gustavo
Dodt Barroso. Plínio e Reale eram católicos, mas Gustavo Barroso era um
entusiasta do arianismo.
No
seio da Ação Integralista Brasileira (AIB) havia a Frente Negra
Brasileira (FNB), um típico movimento fascista criado em São Paulo que
tinha milícia, empastelava jornais e exaltava a raça. Tinham eles
próprios um jornal chamado A Voz da Raça, que afirmava coisas como a
seguinte: “Hitler, na Alemanha, anda fazendo uma porção de coisas
profundas. Entre elas a defesa da raça alemã. […] Que nos importa que
Hitler não queira, na sua terra, o sangue negro? Isso mostra unicamente
que a Alemanha Nova se orgulha de sua raça. Nós também, brasileiros,
temos raça. Não queremos saber de arianos. Queremos o brasileiro negro e
mestiço que nunca traiu nem trairá a nação!”
Tiro
esta citação de Os movimentos negros e a utopia brasileira, de Antonio
Risério, que a seu turno usa a pesquisa de Roger Bastide – ele próprio
um nome importante dessa história, um sociólogo francês que participou
da criação da sociologia na USP.
Um
nome que integrou tanto a Frente Negra Brasileira quanto a Ação
Integralista Brasileira é Abdias do Nascimento, de São Paulo. Guardem
este nome.
Freyre contra o Eixo
Isso
foi tudo antes do golpe do Estado Novo (1937 – 1945), quando Getúlio
monopolizou todos os poderes da república e pôs fim aos partidos e
associações políticas. Perseguiu sua antiga apoiadora AIB e o PCB de
Prestes. Plínio foi para o autoexílio em Portugal, Gustavo Barroso, o
arianista, foi para o Itamaraty, onde ficou perseguindo judeu europeu em
pleno Holocausto. Getúlio fez ainda de outro arianista – Oliveira
Vianna – uma espécie de ideólogo oficial do regime. Oliveira Vianna
inventou a tese de que o Brasil é um país caracterizado pela monocultura
de latifúndio e essa tese foi incorporada ao marxismo local por Caio
Prado Jr. (que Jorge Caldeira chega a acusar de plágio – de maneira
convincente, diga-se). Oliveira Vianna desdenhava dos portugueses por
serem mestiços e explicava os seus êxitos a partir dos louros do norte,
da diminuta área de Portugal que não pertenceu ao Califado Omíada.
No
mesmo ano da ascensão de Hitler, o sociólogo Gilberto Freyre lançava
seu primeiro livro, o célebre Casa Grande & Senzala. Tornou-se livro
proibido por Getúlio, incendiado em praça pública. Nele, Freyre nadava
contra a maré racista da academia e dizia que o Brasil não estava fadado
ao fracasso por ser mestiço. Ao contrário, ele celebrava a mestiçagem
brasileira e elogiava a conduta sincrética portuguesa, avessa à noção de
apartheid. Freyre não era uma andorinha solitária: estudou em Columbia e
era um discípulo de Franz Boas, o pai da antropologia cultural. (A
antropologia que vemos hoje no Brasil descende de Levy Strauss,
antropólogo estruturalista aproveitado pelo marxismo e espécie de
patrono da antropologia da USP).
Como
Freyre fazia sucesso celebrando o Brasil mundo afora, e isso enquanto
vigiam nos Estados Unidos as leis de segregação racial, a UNESCO
contratou cientistas sociais instalados em algumas cidades do Brasil
para explicar como as “relações raciais” se davam aqui. (Uso aspas
porque aqui não temos relações entre “raças” ou entre grupos unidos pela
raça. Temos relações entre indivíduos, que são de cores diferentes). Em
São Paulo, a redação ficou por conta de Roger Bastide e do jovem
uspiano Florestan Fernandes, que escreveram Brancos e negros em São
Paulo no ano de 1955. O livro inaugurava a tese de que Freyre é uma
farsa.
O
trabalho premiado foi o de Thales de Azevedo, um médico da Universidade
da Bahia que se convertera à antropologia cultural. Escrevera para a
UNESCO Les élites de couleur dans une ville bresilienne (1953),
publicado depois em português como As elites de cor numa cidade
brasileira. Tratava-se de um estudo de ascensão social de negros e
mulatos em Salvador, que descrevia em minúcias todo um balé social que
conciliava as contradições entre o preconceito contra a cor escura e a
aceitação de escuros na elite. O livro descrevia inclusive o fiasco que
foi uma parada organizada por um militante do movimento negro
recém-chegado de São Paulo: ele pôs uma porção de mulatos em andrajos
para desfilar na rua, discursou sobre a miséria dos mulatos e enfureceu a
elite mulata local, que detestava ver a sua cor representada daquele
jeito. Depois o militante teve que voltar para São Paulo, mesmo sendo
baiano.
Thales
de Azevedo é um escritor muito prazeroso de ler, e é uma pena que esse
livro esteja esgotado. Ele antecipava inclusive um problema que os
tribunais raciais trouxeram: entregava a baianos fotos de membros de
clubes e mandava classificar os fotografados como branco, negro, mulato
ou moreno. A classificação nunca era igual.Mais uma palavra útil sobre
Thales de Azevedo: ele escreveu uma novela baseada em sua experiência
como médico no interior, chamada Foi Deus não acontecer nada!, hoje
abundante em sebos virtuais. Nela, víamos o típico médico do racismo
científico, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, desprezando
todos os doentes de tuberculose. Bastava dizer que a tuberculose era um
mal terminal e natural aos mestiços, que são todos degenerados. Era um
médico assim que o jovem Thales substituía. E eram explicações dessa
ordem, para a miséria brasileira, que o antirracista Gilberto Freyre
rechaçava em Casa Grande & Senzala, lançado no ano de 1933, quando
Hitler subia ao poder.
Florestan importa o racismo soviético
Florestan
Fernandes (1920-1999) cresceu em lar alemão de elite, na condição de
filho da empregada solteira. Tornou-se garçom e, nessa função, conheceu
estudantes da USP que o achavam muito inteligente e lhe deram todo o
apoio para ingressar numa carreira universitária. Tornou-se sociólogo e
socialista. Pesquisou tupinambás, virou literatura obrigatória no tema.
Em 1960, criou com outros intelectuais paulistas a União Cultural
Brasil-URSS, existente até hoje, embora com o nome de União Cultural
pela Amizade dos Povos. Mais tarde, ele seria um dos fundadores do PT e
deputado constituinte eleito por São Paulo.
Retomando
a temática racial, Fernandes publica, em 1964, A integração do negro na
sociedade de classes. Esse é o livro responsável por difundir, no
Brasil, a ideia de que a luta de classes é indissociável da luta de
raças, porque os negros são a mesma coisa que os proletários e os
brancos são a mesma coisa que os donos dos meios de produção.
A
partir daí, as linhas entre comunismo e nazismo começam a se borrar.
Afinal, o discurso oficial do nazismo era que os arianos eram uma
maioria oprimida por judeus parasitários, os donos do capital e dos
meios de produção. Usar a expressão “luta de raças” daria muito na vista
e chocaria a moralidade ocidental do pós-guerra, então os soviéticos
enganavam os trouxas dizendo que a “luta antirracista” era uma
pré-condição para uma sociedade sem classes. Hoje os progressistas fazem
a mesma coisa, e com outros traços humanos também: guerra dos sexos,
homo contra hétero, cis contra trans, gordos contra magros, e sabe-se lá
o quê. Nem falam mais contra rico, se o rico for “do bem”.
Stalin
tinha um plano o Brasil. Quem conta é Oswaldo Peralva, um ex-comunista
que foi à União Soviética, desiludiu-se com o que viu, e escreveu o
livro O Retrato, lastimavelmente esgotado. Peralva criticava como um
absoluto inepto um tal Sivolóbov, burocrata responsável pela América
Latina e antissemita convicto. Conta Peralva: “A um escritor brasileiro
em visita a Moscou ele informou que no Brasil — ‘cuando tomemos el
poder’ — teria que ser formada a República Autônoma dos Negros.
Explicou-lhe o escritor que o número de negros puros em nosso país era
pequeníssimo, que nossos descobridores e colonizadores portugueses,
destituídos de preconceito racial, se misturaram com a população negra,
produzindo magníficas gerações mulatas. Mas não adiantou a explicação,
ele não podia compreendê-la, pois esse fenômeno não tinha sido
considerado nas obras do camarada Stalin sobre a questão nacional e
colonial...”
(A
propósito: existiu na URSS uma República Autônoma Hebraica, criada por
Lenin, lá perto do Japão. Sivolóbov reclamava justo da dificuldade de
deixá-los lá e considerava os judeus sem solução).
Assim,
consoante o espírito soviético, Florestan difundiu entre nós que era
necessária uma guerra racial, que negros têm a obrigação de ser
anticapitalistas e que – infâmia das infâmias – o Brasil é um país ainda
pior do que os Estados Unidos da segregação, porque o nosso racismo
seria velado, ao passo que os norte-americanos são ao menos honestos
quanto ao próprio racismo.
Mas
tinha um problema: Florestan era branco. Ungiu então como “o”
intelectual negro um agitador integralista e ator fracassado, chamado
Abdias do Nascimento. Que fica para a próxima.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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