As Big Techs foram as verdadeiras vencedoras das eleições norte-americanas. Fernão Lara Mesquita, no blog Vespeiro:
O
NYTimes noticiou no fim-de-semana que Mark Zuckerberg, o dono do
Facebook e do Instagram, “convocou a Suprema Corte das suas redes
sociais” para reavaliar sua decisão de banir para sempre o ex-presidente
Donald Trump e as redes de mensagens através das quais se comunicavam
os seus apoiadores.
É
mais uma etapa do processo de “obsolescência planejada” daquela
democracia fundada pela Constituição assinada por “We, the people”, em
1788 que, na 1a Emenda do seu segmento conhecido como “Bill of Rights”,
proíbe o Estado americano de dizer que tipo de crença é boa ou ruim, e
de cassar a palavra a quem quer que seja.
Se
os Estados Unidos da América não podem fazê-lo, Mark Zuckerberg e as
empresas privadas podem. Quem se importa, portanto, com o processo do
congresso dos representantes eleitos do povo para o impeachment futuro
do presidente pretérito? Ou com o que possa vir a decidir a respeito a
outra Suprema Corte se e quando for acionada? Qualquer que seja a
sentença dessas instituições obsoletas será anulada de facto se destoar
da já passada pelos cinco donos do FATGA (Facebook, Apple, Twitter,
Google e Amazon): existirá, politica e economicamente, quem eles
concederem voz e canal para trabalhar; simplesmente deixará de existir
quem for “cancelado” das redes…
Este
o quadro simples e objetivo do atual estado da democracia moderna no
seu berço de nascimento que levou o historiador britânico Niall Ferguson
a afirmar em artigo recente que os “novos governantes”, que é como, já
em 2018, um artigo da Harvard School of Law chamava os donos do FATGA,
“foram os verdadeiros vencedores da eleição de 2020” pois, “com essa
demonstração de força incontestada as companhias, que transformaram a
rede mundial, de uma plataforma originalmente descentralizada num
ambiente hierárquico oligarquicamente organizado cujo acesso eles
controlam e que exploram para fazer dinheiro e comprar poder”,
estabelecem, agora oficialmente, “uma dominância sobre a esfera publica
inédita na História desde a que teve a Igreja Católica de antes da
Reforma Protestante”.
Definida
a nova fonte primária do poder, a história se repete. Estabelece-se um
sistema de cooptação e proteção mutua entre o(s) papa(s) (da internet) e
os reizinhos locais (nacionais), cada um com seus respectivos cardeais e
barões, para o estabelecimento de mais um “reich de mil anos”…
Ferguson
abria seu artigo citando George Orwell que dizia que “Enxergar o que
está diante dos nossos narizes requer uma luta constante”. O que está
vendo hoje quem ainda quer enxergar é o fim de um processo que começou
com a reforma do Telecomunications Act de 1996 que derrubou as barreiras
antitruste na industria da informação, primeiro passo para a derrubada
das barreiras antitruste de todo o resto da economia americana. Elas
proibiam a propriedade cruzada de jornais, rádios e televisões assim
como o controle de mais de 35% da audiência em cada praça em nome da
proteção da diversidade de informação e de opinião sem as quais a
democracia por definição não existe. É na famosa “Seção 230” dessa mesma
lei que inscreveram-se, inadvertidamente, as 26 palavras que fizeram da
internet o monstro em que se transformou ao isentar os donos de
plataformas de rede de responsabilidade legal pelo que se publica nelas
sem no entanto impor-lhes qualquer obrigação quanto a garantias de livre
acesso do publico a elas.
Não
se imaginava então que as redes seriam o que são, mas de lá para cá, a
Seção 230 ganhou o efeito prático de uma licença para roubar e, da
propriedade cruzada de todos os meios de comunicação velhos e novos
evoluiu o FATGA para a deglutição de todas as gravadoras, teatros,
livrarias, arquivos públicos ou privados e bibliotecas, primeiro, e para
a propriedade das lojas de tudo, das invenções, dos passos e dos
segredos de cada um de nós, dos meios de processamento do sistema
financeiro planetário e de pagamento das transações da internet (alguns
já estão na fila até para emitir moeda virtual) e do próprio esqueleto
físico (o backbone) que mantém as redes sociais em pé.
A
reformulação do Telecomunications Act coincidiu com a globalização
virtual dos mercados e a inundação do Ocidente pelos produtos dos
monopólios larápios do capitalismo de estado chinês e seus pupilos e
assemelhados (entre estes o FATGA), que não respeitam nenhuma lei
nacional, internacional ou humanitária senão a que amanhece na cabeça do
dono de plantão do partido único, das forças armadas e de todos os
meios de comunicação e de produção da metade do mundo vítima do
socialismo que cada um deles distribui como quer aos barões que aceitam
comportar-se como barões.
Hoje
os Estados Unidos e o mundo inteiro amargamente sabem que as “reduções
de custos” dadas pela “escala de produção” são obtidas mediante a
redução dos salários em níveis só possíveis mediante o esmagamento da
liberdade de escolher patrões e fornecedores garantido pela crescente
monopolização da economia, mas é tarde. O Ocidente entregou sem luta os
milênios de sangue, suor e lágrimas que lhe custaram a substituição da
lei da selva pela arquitetura de proteção legal à dignidade e ao valor
do trabalho que definiram o ápice da sua civilização. Em vez de proteger
suas conquistas condicionando o acesso aos seus mercados ao respeito a
elas, achinezou o seu mercado de trabalho e o seu ambiente empresarial, o
que agora requer o achinezamento do seu sistema político que os xi
jinpings da internet que permitiu abrigar em seu seio estão se deixando
docemente constranger a providenciar.
Desde
o primeiro momento enxerguei no start de 1996 um final parecido com
este, como poderão conferir os leitores do Vespeiro na transcrição
publicada aqui da conferência “A ameaça da imprensa corporate”, de 2005 (neste link).
Mas o processo foi quase absolutamente ignorado pela imprensa do mundo
inteiro que, produto de empresas familiares despedaçadas pelo ataque
predatório das redes sociais num momento de troca de gerações, entrou em
colapso pela combinação da ocupação de suas diretorias por neófitos
alheios à função institucional do jornalismo e o consequente
aparelhamento ideológico das redações.
A famosa “tempestade perfeita”…
Fazer
as coisas voltarem ao trilho da civilização não seria nenhum bicho de
sete cabeças. O falso problema da “verdade” contra a “mentira” está
superado, em termos filosóficos desde sempre, e em termos práticos desde
1788 e a 1a Emenda à Constituição americana já mencionada acima. Ou
cada um tem liberdade para dizer o que quiser e escolher o que quer
ouvir ou em que quer acreditar, ou quem for mais forte decidirá por todo
mundo com poder de vida e morte sobre os dissidentes. A História não
registra outra alternativa. E como as plataformas de rede da internet
são, legalmente falando, um espaço privado, mas com funções e
atribuições próprias do espaço público, o que tem de prevalecer para
elas nessa matéria são as regras que valem para o espaço público no
mundo físico e ainda estão inscritas na Constituição e nas leis
americanas. Contra o excesso de poder dos xi jinpings do FATGA e
assemelhados, o remédio também é conhecido e testado nos Estados Unidos
desde a virada antitruste do século 19 para o 20. Embora não seja uma
panacéia como nada é, vai pelo mesmo rumo da legislação que, no seu
primeiro grande embate, dividiu a Standard Oil em 34 companhias
diferentes em 1911.
O
problema a ser superado, entretanto, não é apenas o técnico, é,
principalmente e como sempre, o da corrupção pelo poder adjacente ao
processo de agigantamento das big techs. E este, sem imprensa, toda ela
no bolso do FATGA e pedindo censura, nem Joe Biden, nem os dirigentes
europeus, nem muito menos a pequena política e a intelligentsia que
viveram os últimos 200 anos de tecer loas ao “trabalhador” hoje
massacrado pelos monopólios que eles ajudaram a construir e dos quais
agora dependem dão qualquer sinal de estarem dispostos a endereçar.
Mas este é o tema dos próximos artigos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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