domingo, 31 de janeiro de 2021

A hora certa para um adolescente ler Machado de Assis é nunca

 



Machado de Assis, escreve Paulo Polzonoff em sua crônica na Gazeta do Povo, é leitura para olhos calejados:


Minha maior dúvida antes de começar a escrever este texto é como conseguir falar da perniciosidade de Machado de Assis lido por olhos adolescentes sem parecer um Felipe Neto. Ou, pior ainda, um Sílvio Romero. Outra dúvida, embora menor, é como expressar uma ligeira concordância com o YouTuber sem parecer que não gosto da obra machadiana. Tem ainda a dúvida recém-nascida de como escrever um texto inteiro sobre Machado de Assis sem chamá-lo pela alcunha de “Bruxo do Cosme Velho”. Tentemos.

Pois semana passada eu lá dando uma de Chapeuzinho Vermelho e caminhando distraidamente pelo perigoso bosque das redes sociais quando me deparei com a controvérsia da vez: Machado de Assis é leitura adequada para um adolescente? O educador Felipe Neto defende que não. E ecoa a ideia bastante comum de que ninguém jamais aprenderá a gostar de literatura sendo obrigado a ler Machado de Assis. Felipe Neto ainda menciona os livros do período romântico, mas nem vou tocar nesse ponto porque seria chutar cachorro morto.

O raciocínio do YouTuber tem vários problemas. O primeiro deles é nivelar os leitores por baixo. É bem verdade que se derem "Harry Potter" e "Dom Casmurro" a um menino de 15 anos ele provavelmente escolherá o primeiro. Mas isso tem mais a ver com uma necessidade natural de ser aceito pelo grupo do que com a capacidade de assimilar as obras. Outro é pressupor que o gosto pela leitura seja uma virtude em si. Não é. Aliás, a depender da literatura que a pessoa consuma ao longo de toda a vida, é bem provável que a leitura lhe seja extremamente danosa. Por fim, ele evoca a velha ideia hedonista de que ler é puro prazer e não exige sacrifício algum.

Oquei. Machado de Assis é um estilista maravilhoso. Concordo. Se bem que o saudoso Millôr Fernandes, quando lhe diziam que Machado era gênio, costumava argumentar que, se fosse mesmo gênio, ele não teria escrito coisas como “esta a gloria que fica, eleva, honra e consola”. Millôr se referia à péssima hierarquização das palavras. Como assim ela eleva e honra, para só depois consolar? Mas isso é picuinha milloriana e polzonoffiana discutida entre risadas no finado Garcia & Rodrigues. O fato de ele ser um estilista maravilhoso (alguns dirão que é perfeito), contudo, não o torna leitura obrigatória. Muito menos para um adolescente.

A maior qualidade da prosa machadiana, como ensina qualquer professor de cursinho e repete qualquer tuiteiro dado a crítico literário, é sua ironia. É por meio dela que Machado, vá lá, “investiga os subterrâneos da alma” (argh) e, sem fazer quaisquer concessões ao leitor, expõe o que há de mais perverso na alma humana. E não é só na traição de Capitu. Há tempos venho dizendo que, em "Dom Casmurro", mais importante é perceber a capacidade de Bentinho se convencer da história e, por extensão, convencer o leitor menos atento a essa armadilha.

Ao adolescente de orelhas de abano criado nas ruas de cascalho do Bairro Alto isso já era um problema. Imagine, então, para os adolescentes criados à base leite de soja e YouTubers como Felipe Neto. Ou ainda a adolescentes tardios obcecados por microagressões e por afirmar todas as suas identidades possíveis – racial, sexual, religiosa e política. Tirando as exceções de praxe, o adolescente de hoje é uma criança à qual lhe cabem apenas livros infantis ou semi-infantis. Não por incapacidade intelectual, e sim por incapacidade emocional.

Leitura para olhos calejados

Machado de Assis (e aqui estou pensando sobretudo em “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”) é leitura para quem já tem alguns valores básicos consolidados. Ler “Dom Casmurro”, por exemplo, sem conhecer o valor do perdão é jogar as mãos para o alto e sair correndo, gritando ao vento a sua desesperança. Ler “Memórias Póstumas” sem perceber o sarcasmo como mecanismo de defesa é enxergar no ser humano o que ele tem de pior e mais ridículo.

Pouquíssimos adolescentes (se é que algum) estão preparados para receber o que o... o... o... o... o Bruxo do Cosme Velho (é, realmente não deu para evitar) tem a oferecer a seus leitores. Para o bem da verdade, poucos adultos também estão preparados para entender, por exemplo, que por trás de todo o rancor de Bentinho esconde-se a dúvida de toda uma vida. Ou que o famoso discurso do “legado da nossa miséria” é, na verdade, um lamento de Brás Cubas por não ter sido capaz de comungar na deliciosa existência humana.

Falo por experiência própria. Apresentado a “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas” ainda antes dos 17 anos, posso dizer que os livros não interferiram no meu gosto pela leitura. Mas minha incapacidade de absorver os profundos dramas internos dos personagens, dramas que iam muito além do excesso de espinhas na cara, fez um estrago em minha vida. Graças à exposição precoce a Machado, por exemplo, fui apresentado muito cedo à desconfiança, à perversidade, à malícia. E, por isso, passei anos vendo a vida e as pessoas por um prisma entre o soturno e cruel. Não foi bom.

Levou um tempo e algumas releituras, além de umas boas e bem-vindas rasteiras da vida, para que eu entendesse que os valores dos personagens machadianos não são necessariamente os valores das pessoas cá no mundo real. Que há vilania, sim, mas também há bondade. Que há desconfiança, ah, se há, mas também é possível se jogar de bungee jumping num relacionamento. Que há amigos, e não só escobares. E assim por diante.

No mais, a educação de massa deveria se abster de recomendar livros para os estudantes. Quaisquer livros. Ainda mais para uma geração que absorve valores que lhe são dados por outros meios, como os videogames e os infames vídeos de Felipe Neto e seus colegas YouTubers. Além disso, a obrigatoriedade da leitura transforma a experiência literária (que, em essência, é uma experiência espiritual) numa experiência técnica, fria e vazia, traduzida numa nota de prova, num diploma ou, pior, no repugnante objetivo de ler qualquer autor “do jeito certo”.

E, antes que você diga que estou enganado porque você conhece um Enzo ou Mateus que leu Machado de Assis, se encantou e nem por isso virou um adulto mau ou contaminada pelo cinismo, me adianto: há exceções. Sempre há. Mas qual seria a graça de escrever sem poder dar uma generalizadinha de vez em quando, não é mesmo?
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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